LENDO UMA FRASE DE KANT




“Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e freqüentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.”

Kant está, nessa frase, maravilhando-se com duas miragens. Nenhuma das duas coisas existem realmente ou existem sempre como nos aparece no momento, vejamos por que: o céu estrelado que vemos é todo um aglomerado de luz, belíssimo sem dúvida, que chega a nós naquele momento. Algumas dessas luzes viajaram centenas de anos, outras viajaram dezenas e, de fato, é possível que nenhuma delas seja nesse momento o que sua fonte nesse momento é; algumas das luzes que vemos pertencem a estrelas que já se apagaram há séculos, portanto, olhar para o céu é mais do que, como alguém já disse, olhar para o passado; é na verdade olhar para diversos passados ao mesmo tempo e para um presente que nunca existiu. 
O fato é que aquilo que vemos quando olhamos para o céu não é absolutamente aquilo que está lá, e não é nem mesmo, pela diferença de distância dos vários corpos celestes com relação a nós, o que um dia lá esteve; quando vemos duas estrelas lado a lado uma delas pode na verdade ter se apagado antes de a outra surgir; ou seja, as duas estrelas que vemos ao mesmo tempo podem não ter existido ao mesmo tempo; e isso certamente pode ser verdade sobre muitas das estrelas que vemos, não sobre apenas duas. Na verdade então, olhar para o céu é olhar para uma mentira.
Quando eu era criança minha mãe considerava moralmente aceitável e recomendável que os pais batessem nos filhos, apanhei dela várias vezes por conta disso. A lei moral que minha mãe tinha dentro dela naquela época dizia que se deve bater nos filhos sempre que eles se comportam mal. Quando me batia ela não sentia estar violando sua lei moral, pelo contrário, estava me educando e fazendo a sua parte para que eu me tornasse uma pessoa de bem. No entanto, quando tive meu filho, vários anos depois da última surra, minha mãe havia mudado e achava que não se deve bater nos filhos ou em criança nenhuma que esteja sob nossos cuidados. 
Em todas as vezes que minha mãe me bateu ela sentiu que estava agindo corretamente e de acordo com a moral que tinha dentro de si, mas, se, nas vezes em que meu filho passou as férias com ela, ela tivesse batido nele, então ela teria certamente sentido que estava agindo contra a moral que existia dentro dela naquele momento. Ou seja, a moral dentro de minha mãe mudou com o tempo e, pensando bem a meu respeito, sei que posso achar exemplos de mudanças do mesmo tipo que ocorreram também em mim e acho que o mesmo pode acontecer com muitas pessoas, se não com todas. 
Tem gente que adora pescar, faz da pesca um esporte, ensina essa paixão para os filhos e sempre que está cansado, estressado ou aborrecido com as muitas atribulações do dia a dia, se encontra oportunidade para isso, a pessoa pega sua vara de pesca, suas iscas, suas roupas adequadas e vai se divertir e relaxar pescando. Nunca passaria pela cabeça dessa pessoa que pescar é ir contra a moral que está dentro dela, não existe isso; a moral que existe dentro dessa pessoa não a impede e nem mesmo sussurra de maneira alguma contra essa sua atividade que é um esporte, um passa-tempo, uma maneira de relaxar e desestressar. 
A moral que tenho dentro de mim jamais me permitiria pescar a não ser que eu estivesse em situação limite, prestes a morrer de fome ou a ver alguém morrer de fome e sem outra possibilidade de ação que não fosse essa. Se eu pegasse uma vara e uma isca e jogasse na água para esperar que um peixe agonizante saísse brilhando e se debatendo de dentro d’água a moral que tenho dentro de mim berraria em alto e bom tom que estou cometendo um crime, um assassinato, uma injustiça, um aviltamento, um desrespeito a uma vida. A moral que tenho dentro de mim é diferente da moral que as pessoas que gostam de pescar têm dentro de si, e se pensar bastante tenho certeza de que acharei vários exemplos que provam que a moral que as pessoas têm dentro de si difere de pessoa para pessoa mesmo quando elas são fisicamente e psicologicamente saudáveis e perfeitas.
Daí que admirar a moral que existe dentro de mim acaba por ser admirar uma mentira tanto quanto admirar o céu estrelado é admirar uma mentira. Essa moral que tenho dentro de mim agora pode não ser a moral ideal, pode não ser a moral correta e eu não tenho como saber disso, é apenas a minha moral e a minha moral desse momento em que estou vivendo agora, não há como saber, em muitos pontos e situações, se é assim que vou sentir necessidade de agir sempre, não dá para saber nem mesmo se é assim que todas as pessoas deveriam agir. Se minha noção de moral, ou a moral que tenho dentro de mim como diz Kant, pode mudar de mim para mim mesma com o tempo e de mim para com as outras pessoas dependendo das situações, então nunca posso ter certeza sobre ela, por que então admirá-la tanto?
Kant mandou colocar essa frase em seu túmulo, mas é uma frase fraca; ele está na verdade admirado e respeitosamente deslumbrado por duas mentiras... ou por duas miragens.

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