UMA VIDA
Guy de Maupassant
A
linguagem é bem acessível e a leitura flui com facilidade. O autor constrói um bom
perfil psicológico da personagem principal e dá uma visão não muito profunda,
mas também não muito superficial, dos demais personagens centrais. Muitos
leitores poderão se aborrecer com o estilo detalhista, principalmente nas
descrições da natureza, que envolve, reflete e afeta a subjetividade dos
personagens. Mas vale a pena atentar para essa característica e procurar
perceber a diferença da descrição em um momento e em outro da trama e tentar
perceber a razão dessas diferenças. A construção do tempo da narrativa funciona
bem, embora não se possa dizer que Guy de Maupassat nos dê um painel histórico da
vida e da sociedade da época.
O romance
relata a vida de Jeanne, a filha única de um nobre barão que é descrito como um
amante fervoroso da natureza, paixão essa que o personagem parece ter herdado
do autor e transmitido à filha e a toda a narrativa do romance. A moça sai do
convento onde passou muitos anos para iniciar um futuro de felicidade plena que
ela tem como uma certeza e um fato. Talvez por isso não se dê ao trabalho de
pensar e apenas se deixe levar pelos acontecimentos aceitando como bens naturais
e verdadeiros todos os acontecimentos, até a decepção em sua noite de núpcias. Levando-se
em conta a época, muito da personalidade e das atitudes da protagonista se
torna compreensível, mas nem tudo.
Se olhamos
com nossos olhos de hoje (e muitas vezes é impossível não fazê-lo) somos
tentados a mudar o título do livro para algo como “Uma vida ... de uma mulher
muito idiota”. E mesmo para os padrões da época, talvez o novo título não seja
de todo descabido. Afinal, depois de dizer e pensar que agora que estava livre
do convento aproveitaria a vida e curtiria ao máximo cada minuto dessa
liberdade, ela se casa com o primeiro rapaz bonitinho que vê. Nem passa pela
cabeça da bobinha que o cara possa estar interessado no dinheiro! No mínimo, ela
deveria dar um tempo e atentar para os sinais. Se fizesse isso logo perceberia
- porque foi possível notar na primeira conversa - que Julien era um pão duro. E
o pão-durismo dele a levaria a perceber que seria muito razoável e lógico que
ele escolhesse se casar com alguém que tivesse mais dinheiro que ele e que essa
coisa de amor decididamente não entrava e nem cabia nos seus planos. E quanto a
conhecer outras pessoas? Outros rapazes? Nada disso sequer passou pela cabeça
de alguém que ansiava tanto pela liberdade?
Como era
de esperar a um leitor mais atento, a vida de casada de Jeanne é uma surpresa
desagradável. Mas ainda assim ela não acorda! O que faz é transformar sua letargia
otimista em uma letargia triste, ou seja, continua não fazendo nada, continua
não percebendo nada, apenas deixou de ter certeza de que será feliz para sempre
como em um conto de fadas.
Quando a empregada fica diferente - mais calada e retraída - Jeanne não desconfia nem de leve do que, no mínimo, mereceria uma investigação. Ou ela era muito burra ou o preconceito contra pessoas pobres era tão grande que não permitia que considerasse a hipótese de que o mesmo homem que dormia com ela pudesse sequer olhar para uma reles empregada.
Quando a empregada fica diferente - mais calada e retraída - Jeanne não desconfia nem de leve do que, no mínimo, mereceria uma investigação. Ou ela era muito burra ou o preconceito contra pessoas pobres era tão grande que não permitia que considerasse a hipótese de que o mesmo homem que dormia com ela pudesse sequer olhar para uma reles empregada.
Aliás, embora
a empregada seja descrita de forma agradável no início do romance “Era tratada na família quase como uma
segunda filha, porque fora irmã de leite de Jeanne”, o fato é que a moça
parecia não ver a empregada como um ser humano. A humanidade de Rosalie não era
notada por Jeanne, da mesma forma que a existência da tia Lison não era notada,
nem por ela nem por seus pais. E da mesma forma também que - mais tarde e mais
de uma vez - a existência do cachorro Massacre também foi esquecida.
Enfim, Jeanne
mantém seu casamento de aparência aceitando apaticamente as convenções sociais
que a levam a isso. Mesmo depois que descobre a relação entre seu marido e a empregada,
a personagem não abandona sua apatia, e quando tem seu filho agarra-se à
criança como forma de se negar a encarar a realidade do seu casamento
fracassado para não ter que tomar qualquer tipo de ação contra isso. Para não ter
que pensar nem mesmo raiva ela se permite sentir.
Jeanne parece
esquecer propositadamente qualquer revolta e qualquer crítica que a descoberta da
semelhança de caráter entre o marido e o pai pudesse ter gerado. Continua a
endeusar o pai descrevendo, ele e a mãe, como as duas únicas pessoas puras e
boas que restam no mundo. Acaba tendo a mesma atitude de negação quando
descobre que a mãe também teve um amante. As máscaras sociais vão sendo rompidas,
uma após outra, e ela continua sendo pouco ativa e aparentemente pouco
inteligente.
Depois de
descobrir que a atitude de garanhão era apenas o menor dos defeitos de seu
marido, ela passa um tempo enorme sem perceber que o marido era amante de
Gilbert! E era TÃO óbvio! Por puro egoísmo e com a ajuda do pároco, ela supera
a aversão e, mesmo consciente da traição, chega a usar de artifícios para engravidar novamente. Mais tarde o
choque pela morte do marido - assassinado junto com a amante - aparentemente é a causa
da perda do segundo filho que esperava.
Jeanne se
agarra ao filho de forma irracional e cega, o que logicamente leva o menino -
agora homem - a decepcioná-la e afastar-se, tornando-se um jogador, caloteiro e
explorador que dilapida a fortuna da família.
Ao
contrário do que se poderia esperar, o livro não termina com a morte de uma Jeanne
falida e abandonada. Aparentemente o autor resolveu deixar um toque final de
otimismo e encerra a narrativa quando e protagonista é tomada pela emoção ao pegar
no colo a neta recém-nascida. É a mesma emoção que teve quando o filho nasceu e
gera a frase final do livro, dita por Rosalie, a antiga empregada que, em uma
mostra de fidelidade um tanto inverossímil, voltou do limbo do esquecimento
para cuidar da velha solitária em que Jeanne se transformou. Rosalie diz: "A
vida não é tão boa nem tão má como as pessoas julgam" e é como se isso
encerrasse as atribulações e transformasse todo o futuro em esperança. Acontece
que o leitor está livre para imaginar que o futuro foi transformado na mesma
esperança com que o livro se inicia: a certeza de uma felicidade que não se concretizará.
Enfim, ao
longo do livro há uma série de “crônicas de uma morte anunciada” tanto com
relação ao casamento como ainda com relação a outros temas; o principal deles é
o que acontece com o filho. Era óbvio que Jeanne estava criando um desastre,
mas como sempre ela não percebe nada. Depois reclama que a vida foi ingrata e
que sofreu muito. O leitor (pelo menos eu) chega a sentir raiva dessa
personagem fraca e estúpida, e se pergunta se só a criação e o ambiente podem
mesmo justificar tanta burrice em uma pessoa só.
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