NÃO ME ABANDONE JAMAIS, UMA RESENHA MUITO DIFERENTE
Essa é a resenha da editora Companhia das Letras para o livro Não me Abandone Jamais, de Kazuo Ishiguro:
“Kathy H.
tem 31 anos e está prestes a encerrar sua carreira de "cuidadora".
Enquanto isso, ela relembra o tempo que passou em Hailsham, um internato inglês
que dá grande ênfase às atividades artísticas e conta, entre várias outras
amenidades, com bosques, um lago povoado de marrecos, uma horta e gramados
impecavelmente aparados. No entanto esse internato idílico esconde uma terrível
verdade: todos os "alunos" de Hailsham são clones, produzidos com a
única finalidade de servir de peças de reposição.
Assim que
atingirem a idade adulta, e depois de cumprido um período como cuidadores,
todos terão o mesmo destino - doar seus órgãos até "concluir". Embora
à primeira vista pareça pertencer ao terreno da ficção científica, o livro de
Ishiguro lança mão desses "doadores", em tudo e por tudo idênticos a
nós, para falar da existência. Pela voz ingênua e contida de Kathy, somos
conduzidos até o terreno pantanoso da solidão e da desilusão onde, vez por
outra, nos sentimos prestes a atolar.”
Capturado em - http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=14068
- 12/06/16
...
Vi críticas e opiniões de várias
pessoas a respeito desse livro, desde a que me fez comprá-lo até as que, caso eu tivesse lido antes, talvez teriam me convencido a não o
fazer. O fato é que comprei e li o livro e, durante e depois da leitura, algo
me incomodou demais, e esse algo talvez esteja em uma associação que não fiz
intencionalmente, que me deixou seriamente tocada e que provavelmente
o escritor não teve a intenção de passar a ninguém com sua história. Associei a
situação de Kathy H. e dos outros clones à nossa situação, como seres humanos,
em nossos corpos, em nossas vidas.
Deixa ver se consigo explicar
melhor: Na primeira fase do livro, Kathy está em Hailsham, uma “escola” ao
mesmo tempo agradável e intrigante instalada em espaço amplo, porém limitado.
Lá, enquanto aprende amenidades como pintura, desenho e artesanato, ela vai
aprendendo também a conviver com os outros e consigo própria. Essa segunda
aprendizagem é mais complicada e não se concretiza nunca. Todos são alunos de
adultos chamados Guardiões que, embora pareçam professores e pareçam muitas
vezes ter interesse genuíno pelo seu bem-estar, estão sempre escondendo alguma
coisa, dizendo meias verdades, contando histórias ao mesmo tempo realísticas e fantasiosas
impregnadas com seus preconceitos e suas segundas intenções nem sempre claras,
aparentemente, mesmo para eles próprios.
Essa primeira fase é a infância de
Kathy, Ruth, Tommy e seus amigos, e a mim pareceu muito com a infância de todos
nós. Nosso corpo infantil é como Hailsham. Acordamos nele sem termos estado -
ou sem nos lembrarmos de termos estado - em nenhum outro lugar antes disso. Não
temos referência. Aceitamos esse corpo e nele permanecemos porque não temos
opção. Aceitamos isso como natural porque nunca conhecemos outra realidade. As
limitações de nossa Hailsham mal chegam a ser percebidas por nós por causa da
nossa ingenuidade e do que dizem nossos “Guardiões”, que sabem pouco mais do
que nós.
Aos poucos, vamos descobrindo algumas coisas
sobre nossa Hailsham; umas parecem boas, outras são decididamente estranhas,
inquietantes e até constrangedoras. Nossos “Guardiões” nos ensinam trivialidades
como se fossem importantes e, dentro de limites estabelecidos, nos permitem
explorar Hailsham e procuram fazer com que nos sintamos em casa nesse nosso
espaço restrito. As “aulas” que nos dão sobre o corpo que habitamos vêm envolvidas
em preconceitos e em uma “ciência” cuidadosamente selecionada. Omitem informações,
dizem meias-verdades e, principalmente, ocultam o fato de que eles mesmos não
sabem muito sobre o que somos realmente. Exatamente como acontecia com os Guardiões de Hailsham.
Somos um corpo que, ao longo dos anos, vive
entre outros corpos, todos diferentes, todos semelhantes, todos estranhos,
todos misteriosos, todos Hailsham. Não escolhemos o corpo que somos nem quais outros
corpos dividirão conosco o mesmo espaço. Dentre esses corpos, sem que possamos
decidir e racionalizar totalmente essa escolha, ficamos mais próximos de uns,
mais distantes de outros, ignoramos muitos e de alguns nos afastamos com
aversão. Conhecemos a nossa Hailsham quase tão mal quanto conhecemos a Hailsham dos
outros.
...
Na segunda parte do livro os personagens
centrais não são mais crianças. Os Guardiões não estão mais por perto. De Hailsham vão para o Casario. Acreditam que não são mais inocentes porque são inocentes
demais para perceber o que são. Aos poucos se tornam mais ousados; pensam que
são mais livres. Não são. Encontram outros personagens como eles mas
diferentes, que vieram de outros lugares como Hailsham mas diferentes. Começam
a explorar com mais intensidade e mais confusão a sexualidade que descobriram
nos últimos tempos de Hailsham. Confundem o sexo com os sentimentos e se
relacionam entre si de forma confusa, por vezes tomando atitudes impensadas
das quais se arrependem e cujas consequências nem sempre têm volta. Graças a
essas confusões é Ruth e não Kathy que se torna a namorada de Tommy, por mais
que o "erro" pareça óbvio desde o começo.
Em meio aos encontros e desencontros, não são
felizes nem infelizes o tempo todo. Têm momentos de maior ousadia e momentos de angústia, de arrependimento, de confusão. Exploram mais longe o espaço que habitam, mas não tão longe que
se afastem do que são. Amam, brigam, fazem as pazes, cometem erros que corrigem
ou não; não sabem lidar com os próprios sentimentos. Sonham, mas não deixam que os sonhos sejam muito altos porque não sabem como
realizar sonhos. Veem os outros partirem, um a um, para a próxima
etapa e sabem que logo partirão também.
Não pude, nesse momento da leitura, evitar a
comparação com a nossa adolescência. Nessa fase, como os personagens no Casario
com relação aos Guardiões e aos colegas dos quais se afastaram, não nos
sentimos mais tão dependentes da nossa família, não estamos tão convencidos quanto
aos conhecimentos que nossos pais nos transmitiram e já aceitamos que sua
infalibilidade era apenas uma fantasia nossa. Mas, assim como Kathy e seus
amigos não se desligam totalmente do que viveram em Hailsham e do que os Guardiões
transmitiram, nós, na adolescência, ainda refletimos o que aprendemos de nossa
família. Não podemos evitar.
Como Kathy, Ruth e Tommy no Casario, na
adolescência nós também vamos mais longe e pouco percebemos os limites que nos
aprisionam. Conhecemos pessoas que vêm de famílias diferentes, com essas pessoas
exploramos novas experiências e novos sentimentos. Os outros se tornam nossos
rivais, nossos aliados e nossos modelos. O sexo e as relações amorosas são
confusos e, via de regra, plenos de ousadias desmedidas, atitudes impensadas,
alegrias, tristezas e arrependimentos. A adolescência é uma fase turbulenta e
passageira da qual alguns saem mais cedo do que outros e alguns saem mais
amadurecidos do que outros.
O Casario, para os personagens, foi uma Hailsham
diferente, menos abstrata, mais intensa e mais perturbadora. Nosso corpo, na
adolescência continua sendo a mesma prisão da qual nem sempre temos consciência
e da qual não podemos sair, mas se torna diferente. Ao mesmo tempo fascinante,
incômodo, estranho, agradável e perturbador. O corpo muda como muda o ambiente
em que vivem os personagens e há muita semelhança entre esses ambientes que
mudam mas são os mesmos e esse corpo que é o mesmo mas muda tanto que parece
outro.
O tempo de decidir passa rápido para os
personagens assim como a adolescência passa rápido para nós. Para eles - Como
para nós - chega a hora de assumir seus lugares dentro dessa estrutura que não
conhecem totalmente mas na qual foram inseridos e da qual fazem parte. Não há
fuga possível, não há conhecimento suficiente sequer para idealizar uma possibilidade
de fuga que seja realmente fuga e não apenas simulacro. Uns mais cedo, outros
um pouco mais tarde, todos nós nos tornamos adultos. Os ex-alunos de Hailsham saem
do Casario e se tornam Cuidadores, nós saímos da adolescência, nos tornamos adultos
e, na maioria dos casos, nos tornamos também essa espécie de “Guardiões-cuidadores”
que são vulgarmente chamados de pais.
...
Quando os personagens do livro se tornam Cuidadores
tudo muda sem que nada mude. Eles se tornam de certa forma autônomos, mas têm
uma função a cumprir com horários e lugares estipulados.
Kathy, Ruth e Tommy, como todos os outros
clones, seguem o curso natural do qual não tiveram forças suficientes sequer
para tentar para fugir. Cada um deles se torna Cuidador por um tempo e depois
começa a fazer as doações. A duração e o sucesso da fase de Cuidadores pela
qual passam os personagens do livro parece estar diretamente ligada à
eficiência e boa vontade que demonstram nessa atividade.
Kathy é uma Cuidadora
especialmente bem-sucedida, por isso consegue adiar um pouco sua passagem para
a fase seguinte. Mas sua habilidade como Cuidadora se deve ao seu caráter, já
demonstrado diversas vezes ao longo do livro, não a qualquer tipo de esforço ou
desejo de adiar o tempo em que ela própria precisará de um Cuidador. Para ela,
ser Cuidadora por mais tempo do que a maioria, não parece ser uma recompensa já
que seu sucesso não a livra de ser o que é, não a livra de seu destino e não a
livra de perder as pessoas das quais cuida, nem mesmo as duas pessoas que mais
importaram para ela: Ruth e Tommy.
Toda ousadia que tiveram no final das contas
não passou de um arremedo de ousadia, mais para aceitação do que para fuga. Num
último momento de valentia e de esperança, os três descobrem o endereço de
Madame - uma mulher “importante” que aparecia em Hailsham com frequência e
levava consigo os melhores trabalhos dos alunos sem que ninguém soubesse com
que finalidade. Eles fazem a viagem até lá. Isso exige um certo esforço porque
Ruth e Tommy já tinham começado as doações. Na casa encontram também uma antiga Guardiã e ambas se revelam em toda sua impotência.
Então, com suas tênues
esperanças perdidas, Ruth e Tommy se entregam ao destino e, cada um na sua vez, Concluem. Para Kathy não há alegria, não há sequer uma tristeza realmente
profunda. Ela se mostra quase apática, totalmente resignada com o que não tem o
poder de mudar.
Daí o paralelo é bastante óbvio. Nossa fase
adulta é tão controlada e plena de obrigações quanto a fase de Cuidadora de
Kathy e somos, em geral, tão apáticos e tão resignados quanto ela porque também
sabemos que não importa o quanto nos esforcemos e o quanto obtenhamos sucesso como
“Guardiões-cuidadores”, não evitaremos o inevitável. Nossos filhos (de quem
somos Guardiões) seguirão seus caminhos. Não evitaremos que nossos pais (de
quem em algum momento passamos a ser Cuidadores) “concluirão”, e nossos amigos,
em geral Guardiões e Cuidadores como nós, também como nós, estarão inseridos e
perfeitamente adaptados ao curso natural das coisas.
Talvez percebamos que
somos Hailsham, talvez percebamos que somos parte da Hailsham de nossos filhos,
talvez percebamos que nossos pais e nossos amigos são outras Hailsham, mas não
conseguimos perceber que Hailsham é uma prisão.
...
E, finalmente os personagens se tornam aquilo
que nasceram para ser. Finalmente se tornam Doadores. E nessa fase vão perdendo
órgãos do corpo a intervalos pequenos, e vão se tornando debilitados e
enfraquecidos até que, em uma última doação, eles Concluem. Entre uma doação
e outra, todos têm seus Cuidadores que podem ser mais ou menos eficientes na
tarefa de tornar esse período o menos desconfortável possível, sem, no entanto,
conseguir evitar o fim.
Essa fase é incrivelmente semelhante à nossa
velhice. Sem data precisa para iniciar, mas com datas relativas até que bem
definidas, cada um de nós se torna velho - se não morrer antes - e começa a
perder partes importantes do corpo. A saúde, a força, o vigor, a aparência, vão
esmaecendo. Nós doamos a nós mesmos sem termos direito a escolha. Ou, em outros
termos, vamos nos devolvendo aos poucos ao ambiente em que vivemos assim como
os personagens do livro vão se devolvendo à sociedade que os fabricou para
isso.
Ao final, com mais ou menos doações, assim como
os personagens do livro, nós também “concluímos” e esse fim é aceito sem
protesto porque é natural, parte especialmente essencial do ciclo da vida.
Como
os personagens, resistimos, quando o fazemos, apenas para ficar um pouco mais de
tempo. Ou então inventamos fantasias para driblar nosso medo da “conclusão” da
qual ninguém retorna. Nunca uma genuína rebeldia. Estamos tão inseridos e
aceitamos tão bem a ordem natural das coisas que na maioria das vezes fechamos nossos
olhos pela última vez com resignação.
Num último suspiro, pela vida que
tivemos, agradecemos aos fantasmas que criamos para que eles dissessem por nós,
porque sozinhos não seríamos capazes de dizer, que a vida vale a pena. E como
disse Shakespeare: o resto é silêncio.
Hello
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