O VERMELHO E O NEGRO

 


O talento desse homem se limita a fazer-se pagar com toda a exatidão o que lhe devem e a pagar o mais tarde possível o que ele próprio deve.

Tirania da opinião e que opinião? É tão estúpida nas pequenas cidades da França quanto nos Estados Unidos da América.

Aprendera de cor todo o Novo Testamento em latim, conhecia também o livro Do papa, do Sr. de Maistre, e acreditava tão pouco num quanto noutro.

Ocultava a resolução inabalável de preferir expor-se à morte do que não fazer fortuna!

Tudo o que sentia era ódio e horror em relação à alta sociedade.

Quanto respeito servil por um homem que evidentemente duplicou e triplicou sua fortuna desde que administra o bem dos pobres!

A grosseria e a mais brutal insensibilidade a tudo o que não era interesse por dinheiro, prerrogativa ou condecoração.

Todos os que não são fidalgos que vivem em sua casa e recebem salário são seus criados.

Ali, como na serraria do pai, desprezava profundamente as pessoas com quem vivia, e era odiado por elas.

Não tenha ilusões sobre o que lhe aguarda a condição de padre.

Se pensa em cortejar os homens poderosos, sua perdição eterna está garantida. Poderá fazer fortuna, mas terá de prejudicar os miseráveis, bajular o subprefeito, o prefeito, os homens importantes, e servir suas paixões.

Trata-se de fazer fortuna neste mundo ou no outro, não há outra saída.

É sobretudo a ele que me importa enganar, e ele me adivinha.

Eis como são as mulheres, disse o Sr. de Rênal, com uma risada grosseira. Há sempre algo a consertar nessas máquinas!

Ao gesticular, tocou a mão da Sra. de Rênal, que estava apoiada no encosto de uma dessas cadeiras de madeira. A mão retirou-se bem depressa; mas Julien pensou que era seu dever fazer que essa mão não fosse retirada quando ele a tocasse. Ele a observava como um inimigo com o qual terá de bater-se. Decidiu que sua mão devia absolutamente, naquela noite, permanecer na dela. Não que ele amasse a Sra. de Rênal, mas um terrível suplício acabava de cessar.

A Sra. de Rênal, transportada pela felicidade de amar, era tão ignorante que não se fazia quase nenhuma censura. A felicidade tirava-lhe o sono. Um sono de chumbo apoderou-se de Julien. No dia seguinte, despertaram-no às cinco horas; e – o que teria sido cruel para a Sra. de Rênal se o soubesse – teve apenas um pensamento: havia cumprido seu dever, e um dever heroico. Disse a si mesmo, num tom leve, ao descer para a sala: preciso dizer a essa mulher que a amo.

Nem por isso o descontentamento do Sr. de Rênal deixou de se manifestar por uma série de palavras grosseiras. A tudo o que a Sra. de Rênal lhe dizia, Julien apenas respondia a meia voz: — Gente rica é assim! Certamente, foram momentos de humilhação como esse que produziram os Robespierre. O ódio extremo que animava Julien contra os ricos ia explodir.

Ele desprezava essas mulheres e todos os sentimentos ternos. O pouco que se dignava compreender das palavras atenciosas das duas amigas desagradava-lhe como vazio de sentido, tolo, fraco, em suma: feminino.

Viu na Sra. de Rênal apenas uma mulher rica, deixou cair sua mão com desdém e afastou-se.

Essas crianças me acariciam como o fariam a um jovem cão de caça que lhes compraram ontem.

Efetivamente enfurecido, Julien exclamou:
— Saindo de sua casa, senhor, sei para onde ir.
A essas palavras, o Sr. de Rênal viu Julien instalado na casa do Sr. Valenod.
— Concordo com seu pedido. A partir de depois de amanhã, que é o primeiro dia do mês, dar-lhe-ei 50 francos por mês.
Eu não desprezava o bastante esse animal, pensou. Eis aí certamente o maior pedido de desculpa que pode apresentar uma alma tão baixa.

Por um momento, quase foi sensível à beleza deslumbrante dos bosques no meio dos quais caminhava.

Logo viu-se de pé sobre uma rocha imensa e com a certeza de estar separado de todos os homens. Essa posição física o fez sorrir, ela pintava-lhe a posição que ansiava atingir no plano moral.

O prefeito de Verrières continuava sendo, para ele, o representante de todos os ricos e de todos os insolentes da terra; mas Julien sentia que o ódio que há pouco o agitara, apesar da violência de seus gestos, nada tinha de pessoal.

Nesse indivíduo singular, quase todos os dias eram de tempestade.

Julien cobria a mão que lhe fora cedida com beijos apaixonados ou, pelo menos, que assim pareciam à Sra. de Rênal.

Pela primeira vez na vida era arrastado pelo poder da beleza.

Pressionando suavemente aquela mão que lhe agradava como perfeitamente bela. Mas essa emoção era um prazer e não uma paixão.

Ao voltar a seu quarto, ele só pensou numa felicidade, a de retomar seu livro favorito.

De repente, a terrível palavra, adúltera, surgiu-lhe. O futuro aparecia-lhe em cores terríveis. Via-se desprezível.

Encontrou na memória um preceito dado outrora por sua tia, às vésperas do casamento, sobre o perigo das confidências feitas a um marido, que afinal é um senhor.

Assim são as mulheres, repetiu o Sr. de Rênal, há sempre uma peça defeituosa nessas máquinas complicadas.

Julien permaneceu nessa gruta mais feliz do que estivera em toda a sua vida.

O jovem aldeão não via, entre ele e as ações mais heroicas, senão a falta de oportunidade.

Ela está amando, a infortunada, pensou a Sra. Derville. Compreendeu todos os sintomas singulares de sua doença.

Sentiu que ela apertava sua mão, o que não lhe causou nenhum prazer.

Essa mulher não pode mais me desprezar: nesse caso, pensou, devo ser sensível à sua beleza, devo obrigar-me a ser seu amante.

O amor não é senão, com frequência, o mais tedioso dos deveres.

Pelo menos, acrescentou, meu pequeno namoro com a dona da casa irá distrair-me um pouco.

Aproveitando o momento em que passavam de uma peça para outra, julgou ser seu dever dar um beijo na Sra. de Rênal.

Algumas horas depois, quando Julien saiu do quarto da Sra. de Rênal, poder-se-ia dizer, em estilo de romance, que ele não tinha mais nada a desejar.

Meu Deus! Ser feliz, ser amado, é apenas isso? Tal foi o primeiro pensamento de Julien ao voltar a seu quarto.

Nada faltou do que impus a mim mesmo? Desempenhei bem meu papel?

A atenção contínua com que estudava suas menores ações, na ideia insana de parecer um homem experiente, só teve uma vantagem; quando tornou a ver a Sra. de Rênal no almoço, sua conduta foi uma obra-prima de prudência.

A diferença de idade é, depois da de fortuna, um dos grandes lugares-comuns das pilhérias de província, sempre que se fala do amor.

Que seria desses nobres, se nos fosse dado combatê-los com armas iguais? Como a justiça triunfaria em Verrières!

Os talentos deles não seriam um obstáculo para mim; os homens de sua sociedade repetiam que a volta de Robespierre era possível por causa desses jovens das classes baixas, muito bem-educados.

Seria possível que aqueles padres tão velhacos... tivessem razão? Eles que cometem tantos pecados teriam o privilégio de conhecer a verdadeira teoria do pecado? Que coisa mais estranha!

Que bom senso pode-se esperar de uma mulher? Jamais presta atenção no que é razoável;

As verdadeiras paixões são egoístas.

A palavra foi dada ao homem para esconder seu pensamento. R. P. MALAGRIDA

Tudo ali era magnífico e novo, e diziam-lhe o preço de cada móvel. Mas Julien via nisso algo de ignóbil, que exalava a dinheiro roubado. Pôs-se a pensar que, do outro lado da parede da sala de jantar, achavam-se pobres detentos cuja porção de carne talvez tivesse sido economizada para comprar todo aquele luxo de mau gosto com que queriam impressioná-lo.

Julien dizia-se: Eis aí a fortuna imunda a que chegarás, e somente a terás nessa condição e em tal companhia! Terás talvez um cargo de 20 mil francos, mas será preciso que, enquanto te empanturras de carne, impeças de cantar o pobre prisioneiro; oferecerás almoços com o dinheiro que tiveres roubado de sua miserável ração, e durante teu almoço ele será ainda mais infeliz!

Que gente! dizia-se Julien; mesmo que me dessem a metade de tudo o que roubam, não viveria com eles.

As pessoas em cuja casa almoçava faziam, a propósito de um assado, confidências humilhantes para elas e nauseabundas para quem as ouvia.

A menção desse metal, ele dizia, é sempre um prefácio a algum achaque sobre meu dinheiro.

Quando um indivíduo poderoso e nobre depara com um homem corajoso, ele o mata, o exila, o aprisiona ou o humilha de tal maneira que o outro comete a tolice de morrer de dor.

São como os reis, amáveis mais que nunca com o ministro que, ao voltar para casa, encontrará sua carta de exoneração.

Mulher a todo instante varia, Muito louco é quem nela se fia.

O tédio da vida matrimonial faz seguramente morrer o amor, quando o amor precedeu o casamento. E somente as almas secas, entre as mulheres, não buscam de novo o amor.

Estava muito emocionado. Mas a uma légua de Verrières, onde deixava tanto amor, não pensou mais senão na felicidade de conhecer uma capital.

Por quem me tomam? disse a si mesmo; creem que não compreendo o que falar quer dizer?

O resto dos trezentos e vinte e um seminaristas compunha-se apenas de indivíduos grosseiros, não muito seguros de compreender as palavras latinas que repetiam ao longo da jornada. No olhar apagado deles, Julien lia tão somente a necessidade física satisfeita após a refeição, e o prazer físico esperado antes da refeição.

Ser bem-sucedido nos estudos, mesmo sagrados, é suspeito, e com razão. Pois quem impedirá o homem superior de passar para o outro lado?

Ele trabalhava muito e conseguia aprender rapidamente coisas muito úteis para um padre, muito falsas para ele, e nas quais não punha interesse algum.

Ai! Meu único mérito consistia em meus progressos rápidos, em meu modo de apoderar-me dessas futilidades. Será que no fundo eles as estimam em seu verdadeiro valor?

Venderei aos fiéis um lugar no céu.

Julien descobria em quase todos um respeito inato pelo homem que veste um traje de pano fino.

Que se pode ganhar, eles repetiam com frequência entre si, movendo uma causa contra um graúdo?

Que se julgue pelo respeito que eles têm diante do mais rico de todos: o governo! Não sorrir com respeito à simples menção do Sr. prefeito é tido como uma imprudência. E a imprudência, no pobre, é rapidamente punida pela falta de pão. Que há então de surpreendente, pensava Julien, se o homem feliz, aos olhos deles, é em primeiro lugar aquele que come bem, e a seguir aquele que possui uma boa roupa? Veem no estado eclesiástico uma longa continuação desta felicidade: comer bem e ter uma roupa quente no inverno.

Eles chegarão ao poder, mas a que preço, meu Deus!

Vivi o bastante para ver que diferença engendra ódio.

Deus pode fulminá-lo como um ímpio, como um Voltaire.

O governo, criatura tão terrível aos olhos deles, só tinha poder real e legítimo em virtude da delegação do vigário de Deus na terra.

Quando os assuntos não eram salsichas e boas paróquias, falava-se da parte mundana das doutrinas eclesiásticas, das disputas entre bispos e governadores, entre prefeitos e párocos.

Julien via aparecer a ideia de um segundo Deus, mas de um Deus bem mais temível e poderoso que o outro: esse segundo Deus era o papa.

Todo bom raciocínio ofende.

Os sons tão graves desse sino deveriam suscitar em Julien apenas a ideia do trabalho de vinte homens pagos a cinquenta centavos.

Ele nunca será um bom padre, nem um grande administrador. Almas que se comovem desse modo servem no máximo para produzir um artista.

Assim impeço os progressos do jesuitismo e da idolatria, dizia a si mesmo.

Doze anos antes, o abade de Frilair chegara a Besançon com uma sacola das mais exíguas, a qual, segundo a crônica, continha toda a sua fortuna. Agora, era um dos homens mais ricos da região.

A ambição de querer ser deputado, a glória e as centenas de milhares de francos ganhos por Mirabeau sempre tirarão o sono dos homens ricos da província: chamarão isso ser liberal e amar o povo.

Na nave do Estado, todo o mundo quer ocupar o comando, pois é bem pago.

Haveria hoje fidalgos insolentes se teu Bonaparte não tivesse nomeado barões e condes?

No tempo da morte de Voltaire. Jamais a moda e o belo estiveram tão distantes um do outro.

Havia muito orgulho e muito tédio no fundo do caráter dos donos da casa; estavam acostumados a ultrajar por desfastio.

Contanto que não se falasse mal de Deus, nem dos padres, nem do rei, nem das pessoas distintas, nem dos artistas protegidos pela corte, nem de tudo que está estabelecido; contanto que não se falasse bem nem de Béranger, nem dos jornais da oposição, nem de Voltaire, nem de Rousseau, nem de tudo o que se permite quem não tem papas na língua; contanto, principalmente, que jamais se falasse de política, podia-se discorrer livremente sobre tudo.

A menor ideia viva parece uma grosseria.

Ele quase não compreendia que pudessem escutar a sério a conversação ordinária daquele salão, tão magnificamente dourado. Às vezes, observava os interlocutores para ver se eles próprios não zombavam daquilo que diziam.

O que talvez mais faltasse a esse pobre conde de Thaler era a faculdade de querer. Por esse lado de seu caráter, seria digno de ser rei.

Julien ficou espantado; em seu espírito, a ideia da religião estava invencivelmente ligada à hipocrisia e à esperança de ganhar dinheiro. Ele admirou aqueles homens piedosos e severos que não pensavam no caixa. Esse estranho contraste, a devoção e o amor à liberdade, o impressionou.

Os outros provincianos que chegam em Paris admiram tudo, pensava o marquês; este odeia tudo. Os outros têm afetação demais, este não a tem suficientemente, e os tolos acham-no um tolo.

As pessoas afeiçoam-se a um cão de raça, dizia-se o marquês, por que tanta vergonha de afeiçoar-me a esse padrezinho?

A ideia mais útil aos tiranos é a de Deus.

E tenho apenas dezenove anos! pensava: é a idade da felicidade, dizem todos esses livros tolos com bordas douradas.

Só a condenação à morte distingue um homem, pensou Mathilde: é a única coisa que não se compra.

Conspiração cheira a coisa de jacobino. E o que há de mais feio que um jacobino sem sucesso?

Sou bela, tenho essa vantagem pela qual Madame de Staël teria sacrificado tudo, e no entanto morro de tédio.

Ela o olhava fixamente, examinando seus traços para encontrar aquelas altas qualidades que podem valer a um homem a honra de ser condenado à morte.

O homem que pensa, se tem energia e novidade em suas tiradas, é chamado cínico.

Napoleão roubou milhões na Itália, sem isso teria sido barrado pela pobreza.

Em suma, senhorita, disse ele, aproximando-se dela com um ar terrível, o homem que quer expulsar a ignorância e o crime da terra deve ser como a tempestade e fazer o mal como por acaso?

Amor! Em que loucura não nos fazes encontrar prazer? CARTAS DE UMA RELIGIOSA PORTUGUESA

Eis a imensa vantagem que eles têm sobre nós: A história de seus antepassados os eleva acima dos sentimentos vulgares, e eles não precisam pensar em sua subsistência!

Cada um por si nesse deserto de egoísmo que se chama a vida.

Direi a mim mesma, como Medeia: Em meio a tantos perigos, resta-me EU.

Esse remorso irá perseguir-me a vida inteira, não por ela, pois há muitas amantes! ...Mas a honra é uma só!

É como um duelo, pensou, rindo, há contragolpe para tudo, diz meu mestre de esgrima, mas o bom Deus, que quer encerrar o assunto, faz que um dos dois esqueça de desviar um golpe.

Nunca seu aspecto lhe pareceu tão nobre, estava realmente bela e imponente. Quase sentiu paixão por ela.

Por que não confessar? Ele tinha medo. Como estava decidido a agir, entregava-se a esse sentimento sem nenhuma vergonha.

Julien estava muito embaraçado, não sabia como se comportar, não sentia nenhum amor. Em seu embaraço, pensou que era preciso ousar, tentou beijar Mathilde. Não! disse ela, afastando-o. Contente de ser suavemente repelido, ele apressou-se a lançar um rápido olhar em volta.

Tanto sangue-frio, tanta sabedoria nas precauções mostram-me claramente que não triunfo do marquês de Croisnois como ingenuamente acreditava, mas que simplesmente lhe sucedo. Em realidade, que me importa? Será que a amo? Venço o marquês no sentido de que ele ficará muito zangado de ter um sucessor, e mais zangado ainda que esse sucessor seja eu.

Não era aquela volúpia da alma que ele encontrara às vezes junto da Sra. de Rênal. Nada havia de terno em seus sentimentos daquele primeiro momento. Era antes a mais viva felicidade da ambição, e Julien era sobretudo ambicioso.

Ele então é meu senhor! pensou, e já começava a sentir remorsos.

Jamais coisas tão ternas foram ditas num tom mais frio e mais polido. O amor apaixonado era ainda um modelo que se imitava, em vez de uma realidade. Nenhum lamento, nenhuma reprovação vieram estragar essa noite que, para Julien, pareceu antes singular do que feliz.

A felicidade que, de tempo em tempo, vinha ocupar sua alma, era como a de um jovem subtenente que, depois de uma ação espantosa, acaba de ser nomeado coronel pelo comandante-chefe.

Terei me enganado, não sinto amor por ele? ela se perguntava. Não era a mesma mulher que, na noite precedente, tinha ou fingia transportes de felicidade demasiado excessivos para serem verdadeiros.

No dia seguinte, e no outro, a mesma frieza da parte dela; Julien estava a mil léguas dos sentimentos de triunfo que o haviam animado no primeiro dia. Seria por acaso, pensou, um retorno à virtude?

Nas situações ordinárias da vida, ela praticamente não crê na religião, pensava Julien, apenas a considera útil aos interesses de sua casta. Não pode ela reprovar-se vivamente a falta que cometeu?

Julien acreditava ser seu primeiro amante. Seria digno dela reprovar-se o que fez por mim, unicamente por causa da humildade de meu nascimento.

Enquanto Julien perseguia a quimera de uma amante terna e que não pensasse mais em sua própria existência a partir do momento em que fez a felicidade do amante, a vaidade de Mathilde enfurecia-se contra ele.

Nada era mais capaz de agitá-la e de curá-la de um tédio sempre a renascer, quanto a ideia de que jogava no cara ou coroa sua existência inteira.

Então acredita, senhor, ter adquirido direitos muito poderosos sobre mim? Sabe que ninguém no mundo jamais ousou tanto?

Nada tão curioso como o diálogo desses dois amantes; sem suspeitarem, estavam animados um contra o outro do sentimento do mais vivo ódio.

Certamente ele não a amava três dias antes, quando se escondera no grande armário de mogno.

Julien teve a fraqueza de dizer a ela, com o tom mais terno que lhe vinha da alma: Então, não me ama mais?

- Tenho horror de ter-me entregue ao primeiro que apareceu, disse Mathilde, chorando de raiva contra si mesma.

Se pudesse matá-la, teria sido o mais feliz dos homens.

Então estive a ponto de ser morta por meu amante! ela pensava. Essa ideia transportava-a aos mais belos tempos do século de Carlos IX e Henrique III.

Eis aí uma criatura que se precipitava em meus braços com tanto furor, não faz oito dias...

No momento de uma ação tão extraordinária, tão interessante para mim, não fui sensível!...

Extasiada, a srta. De la mole só pensava na felicidade de ter estado a ponto de ser morta. Ele é digno de ser meu mestre, pois esteve a ponto de matar-me. Afinal, não fui tão louca de amá-lo.

Mathilde fazia-se uma imagem encantadora dos breves instantes durante os quais o amara, e sentia saudade deles. Passou a contar-lhe os movimentos de entusiasmo passageiros que sentira pelo Sr. de Croisenois, pelo Sr. de Caylus...

Mathilde parecia-lhe adorável, qualquer palavra era fraca para exprimir o excesso de sua admiração. Uma moça comum, pensava, teria buscado o homem que ela prefere entre esses jovens que atraem todos os olhares num salão; mas um dos traços do gênio é não arrastar seu pensamento no carreiro traçado pelo vulgo.

Tratava um pouco Julien como um ser inferior, por quem a gente se faz amar quando quer.

Fui seduzida, ela respondia a seus remorsos, sou uma mulher fraca, mas ao menos não fui enganada como uma boneca pelas vantagens exteriores.

Por que Julien Sorel não desempenharia o papel de Roland e eu o de madame Roland? Prefiro esse papel que o de Madame de Staël.

Pois é, senhores, um romance é um espelho que se leva por uma grande estrada. Ora ele reflete a vossos olhos o azul do céu, ora a imundície do lodaçal da estrada.

Se vinte homens tivessem se apresentado, atacá-los sozinho, naquele instante, teria sido apenas um prazer a mais. Felizmente, sua virtude militar não foi posta à prova.

Ela não pensava mais em amor; naquele dia, estava cansada de amar.

Sentia-se, de certo modo, arrasada pela terrível ideia de ter dado direitos sobre ela a um padrezinho, filho de um camponês.

Nos caracteres ousados e orgulhosos há somente um passo da cólera contra si mesma à violência contra os outros.

As pessoas são consideradas, em Paris, por causa de sua carruagem e não por causa de sua virtude.

Julien pensou que saber indispor-se contra um lacaio era toda a ciência desse grande personagem.

A política, responde o autor, é uma pedra atada ao pescoço da literatura e que, em menos de seis meses, a submerge. Essa política irá ofender mortalmente uma metade dos leitores e aborrecer a outra, não se engana duas vezes uma nação pelos mesmos meios... nossa cabeça está a prêmio. Entre a liberdade de imprensa e nossa existência como fidalgos, há uma guerra de morte. Quereis continuar a falar sem agir? Dentro de cinquenta anos não haverá mais na Europa senão presidentes da república, e nenhum rei. Não vejo senão candidatos fazendo a corte a maiorias enlameadas.

Está profundamente ocupada consigo mesma, como todas as mulheres que receberam do céu ou muita nobreza, ou muito dinheiro.

Serviços! Talentos! Mérito!... Qual nada! Faça parte de um grupo. TELÊMACO

Só percebo de real um medo abominável do ridículo.

O gênio de Tartufo veio em socorro de Julien.

Meu Deus, dai-me a mediocridade! MIRABEAU

O conde Altamira contou-me que, na véspera de sua morte, Danton dizia com sua voz grossa: É estranho, o verbo guilhotinar não pode se conjugar em todos os tempos; pode-se dizer: serei guilhotinado, serás guilhotinado, mas não se diz: fui guilhotinado. Por que não, continuou Julien, se há uma outra vida?... Mas, se encontro o Deus dos cristãos, estou perdido: é um déspota e, como tal, está cheio de ideias de vingança; sua Bíblia fala apenas de punições cruéis. Nunca o amei; nunca pude sequer acreditar que o amassem sinceramente. Ele é impiedoso.

Para os outros, não sou senão, quando muito, um talvez.

É possível tornar-se sábio, fino, mas a coragem... a coragem não se aprende.

Ah! como é curioso! Desde que devo morrer, todos os versos que eu nunca soube na vida voltam-me à memória. Deve ser um sinal de decadência...

O céu devia à glória de tua raça ter feito nasceres homem, disse ele.

Mas há uma corte, trata-se de ganhar ou perder um cargo ministerial, e os honestos homens de salão cometem crimes exatamente iguais aos que a necessidade de almoçar inspirou a esses dois condenados...

Não há de modo algum direito natural: Antes da lei, natural é somente a força do leão, ou a necessidade da criatura que tem fome, que tem frio, a necessidade, em suma...

As pessoas reverenciadas não passam de tratantes que tiveram a sorte de não serem pegas em flagrante delito.

Amei a verdade... Onde está ela?... Onde está a verdade? Estaria num verdadeiro cristianismo em que os padres não mais seriam pagos, como não o foram os apóstolos?...

Ah! Se houvesse uma religião verdadeira... um homem religioso verdadeiro... nos falaria de Deus. Mas qual Deus? Não o da Bíblia, pequeno déspota cruel e cheio da sede de vingança... mas o Deus de Voltaire, justo, bom, infinito...

E por que ainda ser hipócrita maldizendo a hipocrisia?

Uma efemérida nasce às nove horas da manhã nos dias de verão, para morrer às cinco da tarde; como ela compreenderia a palavra noite?

Um Deus justo, bom, todo-poderoso, sem maldade, sem avidez de vingança. Ah! Se ele existisse... eu cairia a seus pés!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GÊNEROS LITERÁRIOS - Angélica Soares

O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS - Douglas Adams

DO GROTESCO E DO SUBLIME de Victor Hugo