SE VIVÊSSEMOS EM UM LUGAR NORMAL



Havia um grupo especializado em chorar pelos que tinham passado para o outro lado, mas não para a morte, só para os Estados Unidos, cuide deles, Nossa Senhora!

A confusão é em essência preguiçosa e oportunista, não se esforça para se manifestar em ambientes controlados, ela pede cenários propícios e nunca desperdiça uma turba.

As turbas são como os extraterrestres: estão cagando e andando para a lógica.

Estávamos em um desses momentos de falsa urgência, quando parece que é tarde demais para muitas coisas; mas pode o presente ser tarde em relação a alguma coisa?

Era o caso de se suicidar. E teria feito isso se minha tristeza fosse de uma natureza mais romântica, se eu não tivesse essa merda de tristeza acinzentada que nem me matava nem deixava eu me resignar.

A educação religiosa tinha inclinações muito distorcidas a favor da preservação da vida.

Esbarrei com gente rica, com gente empenhada em sua estupidez de pensar que a classe média existia, com gente pobre, gente mais pobre, mais pobre, infinitamente mais pobre.

A fraude da normalidade estava muito expandida. Os que se empenhavam de vez em quando, aqueles que em determinada manhã acordavam com a convicção disparatada de que bem naquele dia sua vida iria mudar. Os que haviam optado por se autoimpor a quimera de que conquistariam o mundo só porque tinham decidido assim.

As quesadillas da penúltima oportunidade, transbordantes como as promessas de um futuro esplendoroso, um futuro em que se imaginava, despreocupadamente, que se você fizesse as coisas direito, cedo ou tarde o conforto do sucesso chegaria. No entanto, isso só aconteceria em outra vida, ou pelo menos em outro país.

A vida era assim, este maldito país especialista em desabrigar ilusões era assim.

Como eu, que conseguia não morrer de fome graças ao simples método de explorar a ingenuidade tecnológica das pessoas.

Quantas coincidências terão se perdido pela falta de atenção de suas vítimas? A vida seria uma festa de coincidências!

Era a hora da novela, cuidado!, todo mundo andava numa terrível dúvida de se finalmente os ricos iam chorar de uma maldita vez.

— Fala sério, Nossa Senhora não entende nada de sinais analógicos — sentenciou meu tio, baseado na conjectura de que Nossa Senhora era uma pessoa que viveu há muito tempo, antes do advento da eletrônica, e sugerindo a heresia de que as entidades celestiais não são onissabichonas.
Também não acreditaram na minha explicação. O que me pediam é que eu começasse de uma maldita vez a inventar umas mentiras que coincidissem com suas ideias do mundo.

Às vezes é se humilhando que se alcança a dignidade; parece confuso, mas não é: é a vida que os pobres têm que viver.

Heniuta não disse nada, ficou conversando com o silêncio.

Eu precisava manter o escravo ocupado, sem descanso, para que não tivesse tempo de pensar e se rebelar.

Por que você precisa de um psicanalista se tem um primo maconheiro?

Um salto qualitativo do caralho, que ia da literalidade para a alegoria, sem fazer escala na metáfora, era o que acontecia quando os pais achavam que você tinha crescido.

— Nesta vida de tudo se aprende, Oreo.
É mesmo, mamãe? Será que serve mesmo para alguma coisa acumular tanto conhecimento inútil?

Havia uma coisa pior que o orgulho de pobre: o orgulho do pobre que tinha ficado rico.

Haveria eleições no ano seguinte e agora tudo que importava era especular sobre quem seria o novo orquestrador de cataclismos.

Exigiam que se rezasse um rosário antes ou depois da assembleia, um rosário completo, com suas catorze estações. Começávamos a rezar porque meu pai dizia que realmente precisávamos deles, mas para mim eles estavam tão magros, tão derrotados, tão esfarrapados que só conseguia imaginá-los caindo de costas ao primeiro sopro dos policiais. Além do mais, como podíamos nos animar se das catorze estações Jesus Cristo perdia em doze? E, como se fosse pouco, quando ele finalmente ganhava já estava morto.

Eram mudos em linguagem corporal!

— Não pode ser verdade — meu pai se apressou a nos desiludir.
E por que não? Por que não, papai? Por acaso não morávamos no país em que morávamos? Não era para acontecerem coisas fantásticas e maravilhosas o tempo todo? Não conversávamos com os mortos? Todo mundo não dizia que éramos um país surrealista?
— Não pode ser verdade. Deve ser uma alucinação, um delírio, estamos com dengue! Deve ser a febre da dengue!
Cala a boca, pai, cala a boca! Não achávamos que Nossa Senhora de San Juan tinha curado milhares de pessoas sem saber nada de medicina? Não havíamos colocado fronteiras em um território só para bancarmos os idiotas uns com os outros? Não continuávamos a ter esperança de que um dia as coisas iriam mudar? Não é possível, papai? Tem certeza?

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