A ODISSEIA DE PENÉLOPE



(Com um bônus no final)

O caráter do “ardiloso Odisseu” tem sido muito comentado: ele ganhou fama de mentiroso persuasivo e mestre nos disfarces.

Você gostaria mesmo de ler a mente? Pense bem.
[Eu pensei bem e não gostaria]

Não refutava, não fazia perguntas inconvenientes, não me aprofundava. Queria finais felizes naquela época, e os finais felizes são alcançados quando mantemos certas portas trancadas e dormimos na hora da confusão.
[Se é que se pode chamar anulação de felicidade]

Sempre fui determinada. Paciente, diziam. Gosto de ver o final da história.

Nascemos dos pais errados. De pais pobres, pais escravos, pais camponeses e pais servos; pais que nos venderam, pais de quem nos roubaram. Quando chorávamos, ninguém enxugava nossas lágrimas. Se dormíssemos, nos acordavam a pontapés. Se nossos donos, seus filhos, um nobre visitante ou os filhos dele quisessem deitar conosco, não poderíamos recusar. Isso tudo aconteceu conosco quando éramos crianças. Se fôssemos lindas crianças, a vida era pior ainda.
[Fala das 12 escravas de Penélope que foram mortas por Ulisses e seu filho Telêmaco]

Temos os campos de asfódelo. Podemos caminhar por eles [Asfódelo — lindas florezinhas brancas]. Teria sido melhor certa variedade. Eu teria preferido jacintos. Os costumes mudaram. Nosso refúgio foi suplantado por outro vizinho, muito mais espetacular. Chamas, gritos e dentes rangendo, demônios com tridentes — e muitos efeitos especiais.

Eu me interessei muito pela invenção da lâmpada elétrica, por exemplo.
[É interessante pensar em um espírito acompanhando a evolução da ciência]

Os mágicos nunca me invocaram. E eu era famosa, não queriam me ver, enquanto minha prima Helena era muito requisitada.

Os deuses pelo jeito não conseguiam manter mãos, patas ou bicos longe das mulheres mortais.
[Nem mesmo o deus bíblico, né? Transformou-se em pomba para fazer com Maria o mesmo que Zeus fez com Alcmena, mãe de Hércules]

Meu casamento foi arranjado. Faziam as coisas assim, só pessoas importantes casavam, pois apenas as pessoas importantes tinham herança.

Os deuses nunca desprezavam a chance de arranjar encrenca.

Casamentos existem para gerar filhos, filhos são veículos para a transmissão dos bens. Bens podem ser reinos, ressentimentos, rixas familiares. Graças aos filhos, as vinganças ocorriam. Ter um filho era lançar no mundo uma força desconhecida.
[E era essa a única utilidade das mulheres, que eram criadas para acreditar que essa era sua "nobre missão"]

Homens capazes de combater viviam procurando pretextos para atacar um rei ou nobre qualquer e carregar tudo que pudessem, pessoas inclusive. Taças de ouro, tigelas de prata, cavalos, mantos, armas, todo o lixo que tanto valorizavam quando eu ainda vivia.
[Os "heróis" e os nobres não passavam de ladrões. E de certa forma isso se perpetua até hoje]

Não estavam atrás de mim, de Penélope, a Pata. Queriam o que vinha junto comigo — o parentesco real, a pilha de lixo reluzente.

“Quem é aquele de peito largo?”, indaguei. “Aquele é Odisseu, coitado”.
“Não jogue com Odisseu, diziam. “É impossível ganhar.” Isso equivalia a afirmar que ele era trapaceiro e ladrão.
[Coitado porque era um "nobre" de uma ilha bem pobre. Mas era esperto e venceu a corrida pela mão - e o dote - de Penélope]

Fui assim entregue a Odisseu, como um naco de carne. Vale lembrar que a carne era muito valorizada entre nós.

Odisseu não se embriagou. Transmitia a impressão de beber muito sem que fizesse isso. Só os tolos, afirmava, se gabavam do quanto conseguiam beber.

Eu não estava apenas nervosa, estava apavorada de verdade. A noiva havia sido roubada, e a consumação do casamento seria um estupro consentido.
[Por MUITO tempo foi assim. Em alguns lugares ainda é]

Eu havia desenvolvido sentimentos amigáveis em relação a ele e ele se comportava como se isso fosse recíproco.
[Mulher esperta o suficiente para não acreditar no amor de um trapaceiro, mesmo quando ele é charmoso]

Segunda escrava: É “sim senhor” e “não senhora” dia após dia. Por baixo do sorriso escorre a lágrima, Enquanto arrumo a cama fofa da paz alheia.
[Uma das 12 que foram enforcadas]

Eu tinha apenas quinze anos.
[Muitas eram obrigadas a se casar antes dessa idade]

Por nove meses ele singrou os mares rubros do sangue materno. E nós, as doze que morreríamos por suas mãos navegamos também pelos mares turbulentos de nossas mães. Que não eram rainhas. Atracamos ao mesmo tempo que ele, bebês quando ele era bebê, seu nascimento foi ansiado e festejado, e o nosso não. Sua mãe ofertou um príncipe. Nossas diversas mães Desovaram apenas, pariram. Éramos jovens animais, para sermos dispostas à vontade. Quando ele era criança, éramos seus brinquedos e mascotes. Ele nos via como coisa sua, para fazer o que bem entendesse. Não sabíamos, quando brincávamos com ele, que aquele se destinara a ser nosso frio algoz.
[Fala das 12 escravas que foram mortas por Ulisses e seu filho Telêmaco]

Ninguém, nem mesmo minha sogra, poderia me acusar de indolência quando eu me sentava para tecer. Quem, entre nós, pode resistir à tentação de ser considerado indispensável?

Odisseu enfrentara um gigante ciclope de um olho só, nada disso, foi só um taberneiro caolho. Odisseu residia numa ilha encantada como hóspede de uma deusa, que nada, diziam outros, era só um puteiro chique, ele tomava dinheiro da cafetina.

Eu imaginava a cena claramente. Odisseu voltava e eu lhe revelava meu sucesso nas atividades consideradas masculinas. Para o bem dele, claro. Sempre para ele. Odisseu, o épico masculino! Odisseu, o mais esperto dos trapaceiros!

“Os deuses queriam nos destruir”, disse. “Todo mundo que se comporta mal dá essa desculpa”, falei.

Meu filho Telêmaco estava crescendo, começava a me olhar de esguelha, a melhor solução para ele seria uma conveniente morte de minha parte, de maneira que não fosse possível acusá-lo. Se agisse como Orestes atrairia as Eríneas.

Finalmente pensei num ardil. Depois, eu costumava dizer que Palas Atena, dera a ideia, creditar aos deuses uma inspiração era sempre um bom modo de evitar acusações de orgulho indevido. Eu passava o dia trabalhando em meu tear, mas de noite eu desfazia o que tecera.
Quando descobriram o truque da mortalha os pretendentes invadiram meus aposentos durante a noite e me flagraram ao tear. A mortalha em si ganhou fama instantânea. “A teia de Penélope”.

Os pretendentes pegaram as escravas assim como pegaram carneiros, porcos, cabras e vacas. Algumas ficaram mesmo apaixonadas pelos homens que as usavam com tanta crueldade.

Tudo daria certo no final, ela acrescentou, pois os deuses eram justos. Evitei argumentar que as provas disso eram raras até agora.

Fora enviada pela própria Atena, pois os deuses não queriam meu sofrimento. Até parece que os deuses não queriam meu sofrimento. Eles zombam de nós. Não é a carne e a gordura dos animais que eles gostam de saborear, e sim o nosso penar.
Quem disse que as preces surtem algum efeito? Eu sabia que o mendigo era Odisseu.

Menelau; o cabeça-dura; Menelau, de voz potente; Menelau, o cornudo.

Nosso número, o número de escravas — o número doze. A consideração dos eventos em questão se amarra com a corda de navio com a qual nos penduraram, o enforcamento propriamente dito.
Estupro e assassinato não são assuntos agradáveis —, mas golpes assim certamente ocorreram por toda a região mediterrânea, como as escavações em sítios arqueológicos demonstraram repetidamente.

Desempenhei o papel da esposa que o reconhecia. Derramei um número conveniente de lágrimas, abracei-o e Odisseu relatou sua viagem e as dificuldades — as versões nobres, com monstros e deusas, em vez da sórdida, com taberneiros e prostitutas. Eu falei das lágrimas copiosas que derramara enquanto esperava por ele vinte anos, e que eu fora fiel apesar de tudo. Nós dois éramos mentirosos rematados, desavergonhados e confessos de longa data. Chega a admirar que tenhamos acreditado nas palavras um do outro.

Odisseu partiu pouco depois de sua chegada. Precisava iniciar uma nova aventura. Precisava se purificar levando um remo terra adentro. Só assim limparia o sangue dos pretendentes de suas mãos, além de apaziguar Posseidon. Era uma história convincente. Mas todas as histórias dele eram convincentes.

Alego inocência de meu cliente Odisseu, acusado de múltiplos homicídios. Os aproximadamente cento e vinte rapazes devoravam sua comida sem permissão e incomodavam sua esposa, planejando assassinar seu filho e usurpar seu trono. Odisseu apenas agia em legítima defesa.
Não podem soltá-lo! Fomos enforcadas a sangue-frio! Doze de nós! Por nada! Ele agia conforme seu direito, meritíssimo. As escravas pertenciam a ele.
O que essas moças fizeram para merecer a forca?
Fizeram sexo sem permissão com os inimigos de meu cliente.
As escravas foram violentadas. Os pretendentes as violentaram. Foram obrigadas pelos pretendentes a servi-los em seus propósitos hediondos e revoltantes.
A maioria das escravas acaba sendo violentada mais cedo ou mais tarde, trata-se de uma característica deplorável, mas comum na vida palaciana. Não foi o fato de terem sido violentadas que as condenou, na mente de Odisseu. Foi terem sido violentadas sem permissão. Sem permissão do proprietário.
Convoco a grande Palas Atena para defender os direitos de propriedade de um homem.

Mesmo com meu acesso limitado, vejo que o mundo é tão perigoso quanto na minha época.

Não tínhamos voz Não tínhamos nome Não tínhamos escolha. Levamos a culpa. Não foi justo.
[As 12 escravas assassinadas]

Agora o bônus:

As pessoas não veem e escutam as coisas tão objetivamente quanto se imagina. As informações visuais e auditivas que entram na nossa mente são distorcidas por experiências, pensamentos, circunstâncias, fantasias, preconceitos, preferências, e também pelo conhecimento, pela consciência e por outros inúmeros processos cerebrais.
Em: Antes que o café esfrie, de Toshikazu Kawaguchi

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