TODA LUZ QUE NÃO PODEMOS VER



Somos cidadãos de Saint-Malo em primeiro lugar, dizem os moradores. Depois, bretões. Franceses, em última alternativa.

Maldições, ele lhe assegura, não existem. Existe sorte, talvez, boa ou má. Cada dia com uma leve inclinação ao sucesso ou ao fracasso. Mas maldições, não.

Então, crianças, como o cérebro, que vive sem uma centelha de luz, constrói para nós um mundo tão iluminado?”
“Abram os olhos”, conclui o homem, “e vejam o máximo que puderem antes que eles se fechem para sempre”.

O pai lhe diz para refrear a imaginação. Pedras são apenas pedras, chuva é apenas chuva e maldições são apenas má sorte.

Cada vez que Marie-Laure repete algum boato para o pai, ele diz que todo mundo se lembra da última guerra, e ninguém é louco o suficiente para passar por aquilo de novo.

— Quase todas as espécies que já existiram estão extintas, Laurette. Não há motivo para pensar que conosco, seres humanos, será diferente!

Rádio: ele une milhões de ouvidos a uma única boca.

A voz sincopada do Reich cresce como uma árvore impassível; seus súditos se inclinam em direção aos seus galhos como se fosse em direção aos lábios de Deus.

Nós também somos mestiços, não somos? Metade da nossa mãe, metade do nosso pai? — sussurra Jutta.
— O que eles querem dizer é que ela é meio-judia. Mantenha a voz baixa. Nós não somos meio-judeus.
— A gente deve ser meio-alguma coisa.

Vagões de carvão rangem na escuridão úmida. Máquinas ressoam a distância: pistões martelando, esteiras girando. Suavemente. Insanamente.

Frau Elena diz que agora temos que vir direto para casa depois da escola. Ela diz que não somos judeus mas somos pobres o que é tão perigoso quanto ser judeu.

Há não muito tempo, ele se deixava sonhar com Berlim e seus grandes cientistas: Agora, em seus pesadelos, ele caminha pelos túneis das minas. As placas do teto caem sobre ele. Logo antes de despertar, sente a parte de trás do crânio ser perfurada.

Boa noite, ele pensa. Ou Heil Hitler. Todo mundo está preferindo a última saudação.

“Se eles atacarem…” “Por que eles atacariam?” “Seriam malucos de atacar.” “Bater em retirada é salvar vidas.”

O transporte cessa. Sacos de areia aparecem em torno dos portões do museu. As paredes do apartamento deles tremem com móveis sendo arrastados, baús sendo abarrotados e pregos lacrando as janelas.
Naquelas últimas noites em Paris, caminhando para casa com o pai à meia-noite, o enorme livro enganchado ao peito, Marie-Laure pensa poder sentir um arrepio no ar. Não tinha ela presumido que moraria com o pai em Paris para o resto de sua vida? Que o pai dela sempre iria cantarolar enquanto moldava pequenos prédios à noite, e ela sempre saberia quantos passos há desde a porta da frente até a padaria. E Agora? O que aconteceria agora?

— Estamos lançando bombas em Paris — diz ela. A voz dela soa alta, e ele resiste ao impulso de tapar-lhe a boca com a mão.

As milhares de chaves do claviculário tremem em seus pinos. Fora do museu, ondas de pânico viajam pelas fileiras de árvores como abalos sísmicos. Tudo desconectado da lógica, como nos pesadelos.

— O segundo batalhão está arrasado, o nono, aniquilado. As melhores frotas da França, dissipadas — diz uma voz na multidão.

— Sabe a maior lição da história? A história é aquilo que os vitoriosos determinam.

“Abram os olhos”, o francês do rádio costumava dizer, “e vejam o máximo que puderem antes que eles se fechem para sempre”.

Daniel LeBlanc, chaveiro-chefe do Museu Nacional de História Natural. É melhor, disse o diretor, que nenhum dos três saiba se carrega o diamante verdadeiro ou uma réplica. O chaveiro diz a si mesmo que o diamante que ele carrega não é real. “Todos os três devem se comportar como se carregassem a verdadeira”.

Portas são arremessadas de seus batentes. Tijolos se transformam em pó. Grandes jatos de cal e terra e granito se expandem como nuvens pelo céu. As labaredas assomam paredes. As chamas desfilam e se agrupam; se derramam pelas ruas, por cima dos telhados. De dentro de porões e criptas em toda a cidade, os habitantes de Saint-Malo fazem suas preces: “senhor deus proteja esta cidade este povo não nos abandone em seu nome rogamos amém.”

Um diamante, não passa de um pedaço de carbono comprimido nas entranhas da terra. Pode acolher uma maldição tanto quanto uma folha, ou um espelho, ou uma vida. Só existe o acaso neste mundo, o acaso e a física. Siga a lógica.

Todo efeito tem sua causa, e todo problema tem sua solução. Toda fechadura tem sua chave.

— Você quer pêssego, querida? — murmura madame Manec. Marie-Laure ouve um pote se abrir e o caldo sendo despejado em uma tigela. Segundos depois, ela está comendo fatias úmidas de raios de sol.

Paredes rachadas, teto caindo, bancos que sustentam criança após criança após criança desde que as minas começaram a produzir órfãos.

No segundo dia, um débil frenologista faz uma apresentação para todo o corpo discente. O chefe do dormitório anuncia uma grade horária de complicação babilônica: nas segundas-feiras, Mecânica, História Nacional, Ciências Raciais. As terças-feiras são para Arte da Cavalaria, Orientação, História Militar. Alguns rapazes foram admitidos não porque sejam bons em algo, mas porque os pais deles trabalham nos ministérios. Há cadetes com pele de leite, íris de safiras e redes ultrafinas de veias azuis nas costas das mãos. Por enquanto, todavia, com as rédeas nas mãos da administração, eles são todos iguais, todos Jungmänner. Cada um é uma porção de argila, e o ceramista, que é o imponente comandante, está moldando quatrocentos jarros idênticos.

Ele é perseguido por medos tão imensos, tão múltiplos, que ela quase sente o terror pulsando dentro dele. Como se alguma fera espreitasse o tempo todo nas janelas de sua mente.

— Meu pai precisa que eu frequente a Schulpforta. Minha mãe também. Não interessa o que eu quero.
— Para que então serviria tudo isso se não fosse para nos tornarmos o que queremos?
— Seu problema, Werner — diz Frederick —, é que você ainda acredita que a sua vida lhe pertence.

“É certo fazer algo apenas porque todas as outras pessoas estão fazendo?” — Bastian fala com horror de qualquer tipo de corrupção. No entanto, medita Werner na calada da noite, a vida não é uma espécie de corrupção? Uma criança nasce, e o mundo se apossa dela. Arrancando coisas dela, alojando coisas nela. Cada porção de comida, cada partícula de luz entrando no olho — o corpo nunca pode ser puro.
— A senhora nunca fica cansada de acreditar, madame? A senhora nunca quer uma prova?

“O trabalho de um cientista, cadete, é determinado por dois fatores. Os interesses dele e os interesses da época dele.”

Todo mundo, ele está descobrindo, gosta de se ouvir falar. Empáfia, como nas histórias mais antigas. Presumem que o mundo oferece segurança e racionalidade, quando naturalmente isso não acontece.

Werner sente que está fitando os circuitos de um imenso rádio, cada soldado lá embaixo como um elétron flutuando em sua trajetória particular, com tão pouco livre-arbítrio sobre seu próprio destino quanto um elétron.

— Mas nós somos os mocinhos. Não é, tio?
— Espero que sim. Espero que sim.

Werner fica impressionado ao perceber exatamente naquele momento como é extraordinariamente frívolo construir prédios esplêndidos, compor música, cantar canções, imprimir livros colossais repletos de pássaros coloridos diante da indiferença sísmica e controladora do mundo — quanta pretensão têm os seres humanos! Por que alguém vai acender as luzes se as trevas vão inevitavelmente apagá-las? Teatros para óperas! Cidades na lua! Ridículo.

Todos eles fariam melhor se dessem o ar da graça quando chegassem os rapazes que atravessam a cidade carregando trenós com cadáveres empilhados.

“Na verdade, crianças, matematicamente, toda luz é invisível.”

Só existe a sorte, seja ela boa ou má. Acaso e física. Lembra-se? “Você está viva.” Só estou viva porque ainda não morri.

Não basta apenas fechar os olhos para tentar descobrir o que é a cegueira. Por trás do seu mundo de céus, rostos e edifícios, existe um mundo mais antigo e mais cru, um local onde os planos da superfície se desintegram e os sons se movimentam em faixas formando grupos no ar. Marie-Laure pode estar em um sótão bem acima do nível da rua e ouvir os lírios farfalhando a três quilômetros de distância.

“Ele está aqui. Está bem aqui, logo abaixo.” Faça algo. Salve a garota. Deus, porém, é apenas um olho frio e branco, uma meia-lua suspensa na fumaça, piscando, piscando, à medida que a cidade gradativamente vai se deteriorando até virar pó.

Tenho conseguido refletir muito mais ultimamente, e o assunto sobre o qual gostaria de escrever hoje é o mar. Algumas vezes, eu me apanho encarando o mar e me esqueço de minhas tarefas. Parece grande o suficiente para conter qualquer coisa que as pessoas possam sentir.

Metade da parte norte da França está em chamas. As praias estão devorando homens — americanos, canadenses, britânicos, alemães, russos —, e, por toda a Normandia, pesados bombardeiros pulverizam cidades do interior.

“Então, crianças, como o cérebro, que vive sem uma centelha de luz, constrói para nós um mundo cheio de luz?” “Abram os olhos e vejam o máximo que puderem antes que eles se fechem para sempre.”

A guerra, pensa Etienne distante, é um bazar onde vidas humanas são trocadas como qualquer outra mercadoria.

No espaço entre aquilo que já aconteceu e aquilo que está para acontecer surge um território invisível, o conhecido de um lado e o desconhecido do outro.

Etienne conheceu soldados da artilharia que, com o auxílio de binóculos, olhavam para os campos de batalha e discerniam o dano efetuado pelas bombas de acordo com as cores que explodiam em direção ao céu. Cinza era pedra. Marrom, solo. Cor-de-rosa era carne.

Nada mais complicado do que o cérebro humano, diria Etienne, a coisa mais complexa que existe; um órgão, dentro do qual giram universos. “O cérebro obviamente está fechado em escuridão total, crianças… No entanto, o mundo que constrói…”

Todos passamos a existir a partir de uma única célula, menor do que um grão de areia. Muito menor. Dividir. Multiplicar. Somar e subtrair. A matéria muda de sentido, os átomos flutuam para dentro e para fora, as moléculas giram, as proteínas se grudam umas nas outras, as mitocôndrias transmitem ordens oxidantes; começamos como uma aglomeração elétrica microscópica. Os pulmões, o cérebro, o coração. Quarenta semanas mais tarde, seis trilhões de células se espremem através de nossa mãe e soltamos um berro. Só então o mundo começa para nós.

— Quando perdi a visão, Werner — continua ela — as pessoas disseram que eu era corajosa. Quando meu pai foi embora, as pessoas disseram que eu era corajosa. Mas não era coragem; eu não tinha escolha. Acordo todos os dias e vivo minha vida. Você não faz a mesma coisa?

A cada hora, pensa ela, alguém para quem a guerra era uma memória deixa este mundo. Nós retornamos na grama. Nas flores. Na música

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