A PROMESSA
[A história se passa na África do Sul e começa durante o apartheid e centra em uma personagem branca de uma família razoavelmente importante]
Há que se lidar com o corpo, o horroroso fato corpóreo do corpo, a coisa que faz todo mundo lembrar, até as pessoas que nem ligavam para a falecida, e sempre tem umas pessoas assim, que um dia elas também estarão deitadas aqui, igualzinho a ela, completamente esvaziadas, meras formas, incapazes até de olhar para si próprias. E a mente abomina sua própria ausência, não pode pensar que não vai poder pensar, o mais frio dos vazios.
[A morte alheia tornando realidade a própria morte]
Eles esqueceram que eu estava ali, no cantinho. Não me viram, e eu fui como uma negra para eles.
[Uma criança constatando, talvez sem perceber, o racismo em que está inserida]
Os números não param, mas de que é que serve a matemática? Numa vida humana qualquer há sempre um único exemplar de cada coisa.
As únicas pessoas que estavam com Rachel Swart quando chegou sua hora eram o marido, vulgo Pai ou Manie, e a negrinha, como é que ela se chama mesmo, Salome, que obviamente não conta.
Às vezes suspeita que os outros podem ler sua mente em segredo, ou que sua vida é um complexo espetáculo em que todo mundo está representando um papel e ela é a única que não está.
[Quem nunca se sentiu assim?]
Vá se trocar, Astrid ordena, tentando fazer voz de adulta, agora que abriu uma vaga.
[Abriu uma vaga porque a mãe acabou de morrer]
Quando a própria menina está ausente, o quarto é como página em branco, quase sem marcas ou pistas que dissessem algo a respeito dela, o que talvez de fato diga alguma coisa a respeito dela.
Alguma coisa que ela pegou lá fora. Sempre trazendo uns retalhos pesteados da natureza.
Ele e o Pai estão sentados na sala, vendo o noticiário da TV, que traz más notícias do país inteiro.
Terrível se afastar do que você um dia, brevemente, amou, ou achou que amava, ou quis achar que amava. Aquilo a que no entanto continua presa, para sempre.
Como é que você saberia que se trata de um fantasma? Muitos dos vivos são vagos e vagantes também, não se trata de um defeito exclusivo dos finados.
Rabinhos pendurados para fora de uma boca sorridente como pedaços de fio dental. O que é que nós somos, que precisamos comer outros corpos para seguir adiante?
[Uma das muitas perguntas que fizeram de mim uma ateia]
De onde esse coalho? Tem uma mentira no coração de todas as coisas e eu acabei de descobrir essa mentira em mim. Cospe. O que é que tem de errado com você, cara? Nada errado comigo. Tudo errado comigo.
Espanto, de certa maneira. De ele poder falar daquele jeito. Dizer o que disse. Deve ser maravilhoso ser homem!
[Quantas vezes uma menina, quando exposta à cultura machista, disse isso a si mesma?]
Não pode responder sinceramente. Pressente que o ministro quer alguma coisa, mas dar-lhe o que ele quer pode colocar sua posição em perigo. Nem sempre é possível agradar dois brancos ao mesmo tempo.
[A mulher negra escravizada diante da realidade que não pode mudar]
Se sente emocionalmente ligado a seu compatriota negro, ou lhe parece que sejam iguais ante os olhos de Deus, embora devam sempre sentar em bancos diferentes do carro. Deus decretou que fosse assim.
[Quantas vezes deus naturalizou os horrores criados, mantidos e perpetrados pelo animal humano?]
Por que eles ficam me desejando vida longa? Ele não quer que a vida seja longa, não hoje, quer mais curta, já não aguenta mais.
Você acha que as coisas fazem sentido, você acha que as suas ações fazem diferença, que em algum juízo final elas hão de ser pesadas e julgadas. Mas não tem juízo. Pra cada um, a morte é o dia final.
Amor está sozinha. É a impressão que tem. Jamais tão solitária quanto nesta floresta de gente.
A luta para sobreviver não é educativa, é só aviltante.
Você segue em frente porque assim o fim um dia chega.
O apartheid caiu, sabe, agora a gente morre um do ladinho do outro, numa proximidade íntima. Falta só resolver esse negócio de viver.
Ontem foi feriado, Dia da Juventude, dezenove anos do levante de Soweto, e hoje é o dia da semifinal da Copa do Mundo de Rúgbi, a África do Sul vai jogar contra a França, e as calçadas tremem e fremem lotadas. Jamais o centro da cidade teve essa cara, tantos negros andando tranquilos por ali, como se estivessem em casa. Quase parece uma cidade africana!
Há situações em que a nudez parece a solução mais autêntica, ainda que você não possa sair por aí nesse estado, infelizmente.
Eu não estou entendendo, finalmente diz. Peça desculpas e pronto. São só palavras. Por que isso é tão importante? Você é advogada. Devia saber que as palavras são tudo.
Alwyn e a sua esposa, perdão, irmã, não foi pra insinuar nada, há muito tempo abandonaram os aposentos úmidos dos fundos da Igreja Reformada Holandesa, agora que Deus quis que lhe coubesse a prosperidade. Muita coisa mudou. Ele não se chama mais de dominee, agora é pastoor, e sua mercadoria é uma linha menos dura de salvação, que oferece aos seus clientes, ops, quer dizer, ao seu rebanho, numa situação em que saem todos ganhando. O ministro nunca deu importância a bens materiais e propriedades, quaisquer que sejam, mas puxa vida, como a vida fica mais confortável com isso tudo.
O meu coração ainda está duro no que se refere a vocês, não pais números um e dois. Mais duro que nunca. Eu sou o lobo, não o cordeiro. Nunca esqueça.
É tudo pelo dinheiro. Uma abstração que te molda o destino. Cédulas com números, cada uma delas uma promissória críptica e não a coisa em si, mas os números denotam o poder que você tem, e jamais serão suficientes.
Está há algumas horas trabalhando em Manie. A parte básica está feita, orifícios limpos e tapados, para evitar vazamentos. Você libera muita coisa na hora agá, do mesmo jeito que entrou no mundo você sai, incontinente e gritalhão, mas não conte pra ninguém. Faz o que pode. Muitas cartas na manga, encher uma bochecha encavada com algodão, prender partes frouxas com cola. Tudo prestidigitação. Ele é o sensível, podia ter sido pintor, ou talvez homossexual, mas em vez disso usa seus pincéis de maquiagem em cadáveres, impressionante o que você pode esconder com pó e pigmento.
[O patriarca morreu e o funcionário da funerária está preparando o corpo para o velório]
Eles têm um acordo, em benefício mútuo. Deo volente, claro, mas pode apostar que o Senhor entende, Ele não se opõe a que você ganhe um dinheirinho em nome d’Ele, desde que a sua alma mais profunda seja pura.
Querem me culpar pela morte do pai também. Não é culpa minha se a fé do sujeito não era suficiente.
Tão improvável que até parece sonho, mas não esqueça que toda coincidência é improvável,
Um certo horror nisso de ser o mensageiro, você sempre fica maculado pela mensagem.
O padre se dirige a todos indiscriminadamente, fazendo chover latim sobre todo mundo, sem distinção, Requiem aeternam dona eis, Domine, a opacidade de Deus a todos une brevemente antes que Suas claridades voltem a dividir.
É isso o que está errado com o mundo, ele não é original, não tem surpresas na manga, ele se repete que nem uma tia velha com demência.
Desirée não se considera culpada de muita coisa, nunca se considerou. A ordem natural das coisas, na opinião dela, é que o mundo está ali para ser legal com ela, e ela está ali para se sentir decepcionada com ele.
[A personalidade de uma mulher rica, branca, extremamente racista. Quantas como ela há?]
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