O ESPÍRITO DO ATEÍSMO - André Comte-Sponville




O ESPÍRITO DO ATEÍSMO
André Conte-Sponville – Tradução: Eduardo Brandão – Martins Fontes: São Paulo – 2009

Preâmbulo

Revivescimento da espiritualidade? Só poderíamos felicitar por ele. Revivescimento da fé? Não seria um problema. Mas com frequência o dogmatismo volta junto, assim como o obscurantismo, o integrismo, e às vezes o fanatismo. 9

A luta pelas luzes continua, raramente foi tão urgente, e é uma luta pela liberdade. Uma luta pela tolerância, pela laicidade, pela liberdade de crença e de descrença. 9

Até meu modo de ser ateu permanece marcado por essa fé da minha infância e da minha adolescência. 9

A espiritualidade é importante demais para que a abandonemos aos fundamentalistas. A tolerância, um bem precioso demais para que a confundamos com a indiferença ou a frouxidão. 10

A laicidade é o nome dessa luta. 10

I PODE-SE VIVER SEM RELIGIÃO?

Deus, por definição, está além de nós. A religião não. Eles são humanos. 11

As religiões fazem parte da história da sociedade, do mundo. 11

Deus é tido como perfeito. Nenhuma religião pode sê-lo. 11

A existência de Deus é duvidosa, a das religiões não. 11

Não se trata de saber se as religiões existem (às vezes, infelizmente, elas nos dão a sensação de que existem até demais!). 11

O que é uma religião?

Buda, Lao-tsé ou Confúcio não são deuses, nem invocam nenhuma divindade. 12

“Uma religião é um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos que a ela aderem”. Durkheim 12/13

Nem todas as religiões veneram deuses. Todo teísmo é religioso; nem toda religião é teísta. 13

Uma religião, em nossos países, é quase sempre uma crença numa ou em várias divindades. 13

“Chamo de religião todo conjunto organizado de crenças e de ritos que remetem a coisas sagradas, sobrenaturais ou transcendentais (é o sentido amplo da palavra), em especial há um ou vários deuses (é o sentido estrito), crenças e ritos esses que unem numa mesma comunidade moral ou espiritual os que com ele se identificam ou os praticam. 13/14

O budismo histórico, em suas diferentes correntes, tornou-se uma religião – com seus templos, seus dogmas, seus ritos, suas preces, seus objetos sagrados ou supostamente sobrenaturais. 14

Que sabedoria, no começo! Quantas superstições ao longo do tempo! A necessidade de crer tende a preponderar, quase em toda parte, sobre o desejo de liberdade. 14

Fé e razão, mythos e logos coexistem, e é a isso que se chama civilização. 14

O judaísmo, o cristianismo e o islamismo são evidentemente religiões e, para nossos países, são antes de mais nada esses três monoteísmos que importam. 14

Um depoimento pessoal

De minha parte, posso viver muito bem sem religião! 15

Perdi a fé e foi como que uma libertação. Tenho a sensação de viver melhor desde que sou ateu. Vários conversos poderiam dar depoimentos em sentido inverso, constatando que vivem melhor desde que têm fé. 15

Sou ateu e contente de sê-lo. Mas outros, sem dúvida mais numerosos, não estão menos satisfeitos com ter fé. Talvez porque tenham necessidade de um Deus para se consolar, ou simplesmente para dar uma coerência à sua vida. 15

Cada um, em face das suas necessidades, se arranja como pode. 16

Lutos e rituais

A perspectiva do inferno é mais inquietante do que a do nada. 16

As religiões dão à morte uma realidade que a morte não tem. (Epicuro) 16

Ter medo da morte é, portanto, ter medo de nada. 16

Há algo mais aterrador do que a perspectiva de uma danação eterna? 16

Muitos cristãos deixaram de acreditar nela. O inferno seria apenas uma metáfora; somente o paraíso deveria ser levado ao pé da letra. 16/17

Resta a morte dos outros, e ela é muito mais real, muito mais dolorosa. E é aí que o ateu fica mais exposto. Nenhum consolo para ele, nenhuma compensação. 17

Trabalho do luto: trabalho do tempo e da memória, da aceitação e da fidelidade. Mas na hora é, evidentemente, impossível. Só há o horror. 17

É esse o ponto forte das religiões. Será essa uma razão para crer? Para alguns, sem dúvida. Para outros, eu entre eles, seria antes uma razão para se recusar a crer. 17/18

Estes, apesar da dor, sentem-se como que fortalecidos em seu ateísmo. 18

Quando se perde um ente querido, a religião traz não apenas um consolo possível, mas também um ritual necessário. 18

O casamento civil, quando não é feito de qualquer jeito, oferece um substituto aceitável. O cartório pode ser suficiente. Mas, e em se tratando da morte? 18/19

O recolhimento poderia bastar. O silêncio e as lágrimas poderiam bastar. No entanto, é forçoso reconhecer que raramente é assim. 19

A força da religião nesses momentos, não é mais que nossa própria fraqueza em face do nada. É o que a torna necessária para muitos. As igrejas estão aí para eles. E não vão desaparecer tão cedo. 19

Eu ficaria zangado comigo mesmo se levasse a perder a fé quem dela necessita ou, simplesmente, quem vive melhor graças a ela. 19

A fé deles não me incomoda nem um pouco. Por que eu deveria combate-la? Procuro simplesmente explicar minha posição, argumentá-la, e mais por amor à filosofia do que ao ódio à religião. 19/20

O ateísmo não é nem um dever nem uma necessidade. A religião também não. 20

Nenhuma sociedade pode viver sem comunhão...

A história, por mais longe que remontemos no passado, não conhece sociedade que tenha sido totalmente desprovida de religião. 21

Não se conhece grande civilização sem mitos, sem ritos, sem sagrado, sem crenças em certas forças invisíveis ou sobrenaturais, resumindo, sem religião, no sentido lato ou etnológico. 21

Vale para a espiritualidade o que vale para as cotações da bolsa: os resultados passados não predizem os resultados futuros. 21

Vários autores pensam que o latim “religio” vem do verbo “religare”, que significa amarrar, ligar bem. Isso não prova que o único liame social possível seja a crença em Deus. A história provou o contrário. 22

Uma etimologia, ainda que comprovada, não prova nada (por que a língua teria razão?) 22

O que liga os crentes entre si, do ponto de vista de um observador externo, não é Deus, cuja existência é duvidosa, é o fato de que eles comungam a mesma fé. 23

Comungar é compartilhar sem dividir. Não se pode comungar um bolo. 23

Se cinco ou seis comemos o bolo, o prazer não será em nada diminuído em relação ao prazer que haveria em comê-lo sozinho. 24

Os estômagos, por certo, terão uma parte menor. Mas os espíritos um prazer maior. Somente o espírito sabe compartilhar sem dividir. 24

Numa sociedade pode-se comungar o amor à pátria, à justiça, à liberdade, à solidariedade. 24

Não há sociedade sem vínculo: não há sociedade sem comunhão. Isso não prova que toda comunhão, nem portanto que toda sociedade, necessite da crença num Deus. 25

Uma eleição é melhor que uma sagração; o progresso é melhor que um sacramento ou que um ofício. 25

A humanidade, a liberdade ou a justiça não são entidades sobrenaturais. Por isso um ateu pode respeitá-las – e até se sacrificar por elas -, da mesma maneira que um crente. Um ideal não é um Deus. Uma moral não faz uma religião.

... nem sem fidelidade

Muitos linguistas pensam, com Cícero, que “religio” vem de “relegere”, que podia significar “recolher” ou “reler”. 27

A religião, de acordo com essa etimologia, deve menos à sociologia do que à filologia: é o amor a uma palavra, a uma lei ou a um livro – a um “logos”. 27

A fidelidade é o que resta da fé quando a perdemos. 29

Há que renunciar, ao mesmo tempo que ao Deus socialmente morto (como poderia dizer um sociólogo nietzschiano), a todos esses valores – Morais, culturais, espirituais – que foram ditos em seu nome? 29

Isso não prova que esses valores necessitem de um Deus para subsistir. 29

Fé e fidelidade podem andar juntas; é o que chamo de piedade. 29

Mas também pode-se ter uma sem a outra. É o que distingue a impiedade (a ausência de fé) do niilismo (a ausência de fidelidade). 30 [Não acho que niilismo seja esse horror que parece estar explícito aqui, pode-se ser niilista e muito fiel, não à religião, mas a valores racionalmente reconhecidos]

Quando não se tem mais fé, resta a fidelidade. Quando não se tem mais nem uma nem outra, resta apenas o nada e o pior. 30

Será que você precisa acreditar em Deus para pensar que a sinceridade é melhor do que a mentira, que a coragem é melhor do que a covardia, que a generosidade é melhor do que o egoísmo, que a doçura e a compaixão são melhores do que a violência ou a crueldade, que a justiça é melhor do que a injustiça, que o amor é melhor do que o ódio? Claro que não! 30

Só por não crer mais em Deus, alguém tem que se tornar um covarde, um hipócrita, um canalha? Claro que não! 31

Tenha-se ou não uma religião, a moral continua sempre, humanamente valendo. [Mesmo para um niilista!] 31

Toda moral vem do passado: ela se arraiga na história, no caso da sociedade, e na infância, no caso do indivíduo. 31

Niilismo e barbárie

Os niilistas não creem em nada: só conhecem a violência, o desprezo, o ódio. [Mentira! E preconceito, não se vive sem crer em alguma coisa no sentido pragmático ao menos. Um niilista pode ser tão moral, ético e decente quanto qualquer pessoa] 32

A barbárie dos fanáticos. São cheios de certeza. [E dificilmente serão niilistas] 32

Eles não hesitam. Eles conhecem a verdade e o bem. Para que necessitam de ciências? Para que necessitam de democracia? Tudo está escrito no livro. Basta crer e obedecer. Entre Darwin e o Gênesis, entre os direitos do homem e a Sharia, entre os direitos dos povos e a Torá, eles escolheram de que lado estão, de uma vez por todas. Eles estão do lado de Deus. Como poderiam estar errados? 32/33

Fundamentalismo. Obscurantismo. Terrorismo. Eles querem fazer-se de anjos; fazem-se de bestas ou de tiranos. 33

São prisioneiros da sua própria fé, escravos de Deus ou do que consideram ser – sem provas – sua Palavra ou sua Lei. 33

O que resta do Ocidente cristão
quando ele já não é cristão?

Nossa civilização é indissoluvelmente greco-latina e judaico-cristã, e isso me convém plenamente. Ela se tornou laica, e isso me convém ainda mais. 35

A riqueza nunca bastou para fazer uma civilização. A miséria menos ainda. 36

“Ateu cristão” ou “gói assimilado”?

A velha piada: “Deus não existe, mas somos seu povo eleito...” 41

Dois rabinos, um dalai-lama e um perigordino

“Quando não sabemos aonde vamos, é bom nos lembrar de onde viemos” – Provérbio africano 45

Perder a fé muda alguma coisa?

Quem só se impedisse de matar por medo de uma sanção divina teria um comportamento sem valor moral. 46

Não é porque Deus ordena alguma coisa que está certo. 47

Não é mais a religião que funda a moral; é a moral que funda a religião. 47

Roubar, estuprar, matar? Não seria digno de mim – não seria digno do que a humanidade se tornou, não seria digno da educação que recebi, não seria digno do que sou e quero ser. Proíbo-me de fazê-lo, portanto, e é isso que se chama moral. Não é preciso crer em Deus para isso. 47

A moral não tem de se imiscuir entre parceiros adultos e conscientes. A homossexualidade, por exemplo, talvez seja um problema teológico (é o que sugere, no Gênesis, a destruição de Sodoma e Gomorra). Ela não é – ou já não é – um problema moral, ou só o é, hoje ainda, para os que confundem moral e religião, especialmente se buscam na leitura da Bíblia ou do Corão o que os dispense de julgar por si mesmos. 48

E é nosso direito não concordar com eles, combatê-los se quisermos. 48

Por que deveria eu submeter meu espírito a uma fé que não tenho, a uma religião que não é a minha, enfim, aos ditames impostos, séculos ou milênios atrás, por um chefe de clã ou de guerra? 48

Quer você tenha ou não uma religião, isso não o dispensa de respeitar o outro, sua vida, sua liberdade, sua dignidade. 49

Um ateu pode ser virtuoso tanto quanto um crente pode não sê-lo. 49

As duas tentações da pós-modernidade

Pós-modernidade é uma modernidade que não crê mais na razão, nem no progresso (político, social, humano) nem portanto em si mesma [Não concordo, pelo menos não dessa forma generalizada] 49

Não é verdade que nada é verdade. Que nenhum conhecimento é a verdade (absoluta, eterna, infinita), está claro. Mas ele só é um conhecimento pela parte de verdade (sempre relativa, aproximativa, histórica) que comporta, ou pela parte de erro que refuta. 53

Como dizia Kant, ouse distinguir o possivelmente verdadeiro do certamente falso! 53

Não é verdade que tudo é permitido, ou antes, depende de cada um de nós que não o seja. 53

O alegre desespero

Perder a fé não muda em nada o conhecimento, e muda em pouca coisa a moral. Mas muda consideravelmente a dimensão da esperança – ou do desespero – de uma existência humana. 54

Se você crê em Deus o que lhe é permitido esperar? Tudo. Se você não crê, ao contrário, o que lhe é permitido esperar? Nada. 54

A natureza é cega, nossos desejos são insaciáveis e somente a morte é imortal. Isso não nos impede de lutar pela justiça, mas nos veda acreditar plenamente nela. 54/55

Um ateu lúcido não pode escapar do desespero. 55

Me afundar na infelicidade? Ao contrário! Mostrar que a felicidade não é para ser esperada mas para ser vivida, aqui e agora! 55

Com ou sem Deus: de tanto esperar a felicidade para amanhã, nós nos impedimos de vive-la hoje. 55

“Como eu seria feliz se fosse feliz!”, brinca Woody Allen 55

A felicidade? Seria ter o que desejamos. Mas como, se o desejo é carência? Se só desejamos o que não temos, nunca temos o que desejamos. 55

O sábio só deseja o que é ou o que depende dele. 56

Desejar o que depende de nós (querer) é proporcionar-se os meios para fazê-lo. Desejar o que não depende (esperar) é condenar-se à impotência e ao ressentimento. [O problema é que o desejo não é um sentimento voluntário, como a maioria dos sentimentos não são] 56

O fato de que uma viagem tem de ter fim é motivo para não realizá-la ou não aproveitá-la? O fato de que só temos uma vida é motivo para desperdiçá-la? O fato de que não há, para a paz e a justiça, nenhum triunfo garantido, nem mesmo nenhum progresso irreversível, é motivo para deixar de lutar por elas? 57

A vida é tanto mais preciosa quanto é mais rara e mais frágil. 57

O Reino e o amor

O que constitui o valor de uma vida humana não é o fato de a pessoa em questão acreditar ou não em Deus ou numa vida após a morte. 59

Somos do Ocidente. É uma forte razão para não esquecer os horrores de que nossa civilização se fez culpada (a Inquisição, o escravagismo, o colonialismo, o totalitarismo...) 64

Para o ateu fiel que procuro ser grande parte dos Evangelhos continua a valer. No limite, quase tudo me parece verdadeiro neles, salvo Deus. 65

“Afinal, se o seu Jesus teve de andar sobre as águas é porque devia ter uma argumentos bem fracos!” – Marcel Conche 65

Antecipação da laicidade: “Dai a César o que é de César”. 66

Há uma vida depois da morte? Não podemos saber. Mas há uma antes da morte, e isso pelo menos nos aproxima! 67

Não esperemos ser salvos para ser humanos. 67

II DEUS EXISTE?

Uma definição prévia

Entendo por “Deus” um ser eterno, espiritual e transcendente (ao mesmo tempo exterior e superior à natureza) que teria criado consciente e voluntariamente o universo. Supõe-se que ele seja perfeito e bem-aventurado, onisciente e onipotente. É o Ser supremo, criador e incriado (ele é causa de si), infinitamente bom e justo, de que tudo depende e que não depende de nada. É o absoluto em ato e em pessoa. 70

Ateísmo ou agnosticismo

Ágnostos, em grego, é o desconhecido ou o inconhecível. Se tivéssemos de aceitar essa definição, seríamos todos agnósticos, salvo cegueira particular, e o agnosticismo perderia em compreensão o que ganharia em extensão: seria menos uma posição particular do que uma característica geral da condição humana. 71

Se você topar com alguém que lhe diga “Eu sei que Deus não existe”, ele não é um ateu, é um imbecil. Se você encontrar alguém que diga “Eu sei que Deus existe”. É um imbecil que confunde a sua fé com um saber. 72

Um amigo, “Sou um imbecil: estou convencido de que Deus não existe”. 72

Kant estabelece três graus de crença: A opinião, que tem consciência de ser insuficiente; a , que só é suficiente subjetivamente; enfim, o saber, que é suficiente tanto subjetiva quanto objetivamente. 72

Se uma dessas religiões tivesse alguma prova a apresentar, não necessitaria de exterminar os outros. 74

“É dar às suas conjecturas um valor bem elevado, assar um homem vivo por causa delas”. Montaigne 74

Ninguém dispõe de um saber verdadeiro. É o que nos fada às guerras de religião ou à tolerância, conforme prevaleça a paixão ou a lucidez. 74

A tolerância não exclui a reflexão. 74

Filosofar é pensar mais longe do que se sabe. Fazer metafísica é pensar tão longe quanto se pode.75

“Sobre os deuses, não posso dizer nada, nem se existem, nem se não existem, nem o que são. Muitas coisas impedem de sabê-lo: primeiro a obscuridade da questão, depois a brevidade da vida humana”. Protágoras 75

Não sou nem neutro nem indiferente. Reconheço não ter provas. Mas isso não impede nem as convicções nem as crenças. 75

O ateísmo é uma crença negativa, mas mesmo assim é uma crença – menos que um saber, portanto. 75

Um ateu não dogmático não é menos ateu do que outro qualquer. 76

Periculosidade da religião ou do fanatismo?

A Inquisição ou o terrorismo islâmico, para tomar esses dois exemplos, ilustram claramente a periculosidade das religiões, mas não dizem nada sobre a existência de Deus. 77

Não é a fé que leva aos massacres. É o fanatismo, seja ele religioso ou político. 77

O horror é incalculável, com ou sem Deus. Isso nos ensina mais sobre a humanidade, infelizmente, do que sobre a religião. 77

Tenho demasiada admiração por Pascal e Leibniz, Bach e Tolstói – para não falar em Gandhi, Etty Hillesum ou Martin Luther King – para desprezar a fé que eles tinham. E afeto demais por muitos crentes, entre os meus próximos, para querer magoá-los no que quer que seja. 77

FRAQUEZA DAS PROVAS

Faz muito tempo que os filósofos, inclusive os crentes, renunciaram a provar Deus. 78

A prova ontológica

Prova surpreendente, fascinante, exasperante. Não sei se ela convenceu alguém algum dia. Curiosa prova, que só convence... os convictos! É o mesmo que pretender enriquecer definindo a riqueza. 79

O ser não é nem uma perfeição suplementar, nem um predicado real: ele não acrescenta nada ao conceito nem pode ser deduzido deste. . 80

Em mil euros reais, explica aproximadamente Kant, não há nada mais do que em mil euros possíveis. [exceto que existe]. 80

Essa “prova” não é uma prova. 80

Aliás, mesmo que um argumento provasse a existência de um ser absoluto infinito, o que nos provaria que esse ser fosse um Deus? 80

A prova cosmológica

O fato de nossa razão, diante do abismo da contingência, perder o pé ou ser tomada de vertigem explica que procuremos um fundo para esse abismo, mas não poderia provar que existe um. 82

O que nos prova que há uma ordem e que a razão tem razão? 82

De resto, mesmo que déssemos razão a Leibniz e ao princípio de razão, isso provaria somente a existência de um ser necessário. Mas o que nos prova que esse ser seja Deus? 83

A Substância de Espinosa é absolutamente necessária, causa de si e de tudo, eterna e infinita, mas imanente e desprovida, como eu lembrava a propósito da prova ontológica, de todo e qualquer traço antropomórfico: ela não tem consciência, não tem vontade, não tem amor. Espinosa chamava-a de “Deus”, mas não é um bom Deus: é tão somente a Natureza. 83

Esse panteísmo está mais próximo do ateísmo do que da religião. 83

O mistério do ser

A grande questão de Leibniz: “Por que há algo em vez de nada?” A questão vai além de Deus, pois que o inclui. Por que Deus em vez de nada? 84/85

Afirmar que o ser é eterno não é explicá-lo: que sempre houve o ser, nos dispensa de buscar seu começo, mas não de buscar sua razão. 85

A questão “Por que há algo em vez de nada?” se coloca tanto mais necessariamente quanto não tem resposta possível. 85

A prova físico-teológica

A prova ontológica não prova nada. A prova cosmológica, no melhor dos casos, só prova a existência de um ser necessário, não a de um Deus espiritual ou pessoas. 86

Parte-se da observação do mundo; constata-se nele uma ordem, de uma complexidade insuperável, conclui-se daí que há uma inteligência ordenadora. É o que se chama hoje de teoria do “desenho inteligente”. 86

[Analogia do relógio] A analogia tem as suas debilidades. Primeiro porque não passa de uma analogia. Segundo porque ela faz pouco caso das desordens, dos horrores, das disfunções, que são inúmeras. 87

Enfim, a analogia de Voltaire e Rousseau envelheceu

A vida cria ordem, mas essa neguentropia do vivo, além de ser localizada e provisória, se explica, desde Darwin, cada vez melhor. 88

Se o acaso cria ordem não há mais necessidade de um Deus para explicar o aparecimento do homem. A natureza basta. Isso não prova que Deus não existe, mas retira um argumento dos crentes. 88

Desconfiemos das analogias. 88

Se encontrássemos um relógio num planeta até então inexplorado, ninguém duvidaria de que ele resultava de uma ação voluntária e inteligente. Mas se encontrássemos uma bactéria, uma flor ou um animal, nenhum cientista duvidaria que esse ser vivo resultava tão somente das leis da natureza. 88

O que há de ordem e de aparente finalidade se explica  cada vez melhor; o que há de desordem e de acaso é cada vez mais contestável. 89 

A ausência de prova: uma razão para não crer

Descartes: Encontro em mim a ideia de Deus, como ser infinito e perfeito. 90

Mas essas ideias são elas próprias finitas e imperfeitas. 91

A partir do momento em que essa ideia do infinito em nós é finita, nada impede que o cérebro baste para explicá-la. 91

O que concluir disso tudo? Que não há prova da existência de Deus, que não pode haver. Azar dos dogmáticos. A metafísica não é uma ciência. A teologia, menos ainda. 91

A coisa, todavia, é menos embaraçosa para o ateísmo do que para a religião. 91

A ausência de prova é um argumento contra toda religião teísta. Se isso ainda não é uma razão para ser ateu, é pelo menos uma para não ser crente. 92 

A FRAQUEZA DAS EXPERIÊNCIAS

Para mim, é mais importante que o precedente. 92

Ninguém me tira a ideia de que, se Deus existisse, deveria ser muito mais visto ou sentido. 92

Se Deus quisesse que eu acreditasse nele, num instantinho resolveria o assunto! 93

Espanta-me um Deus que se esconde com tanta obstinação. 93

A onipotência o dispensa do medo; a perfeição, da vergonha. Então por que ele se esconde tanto assim? 93

A resposta mais frequente, dada pelos crentes, é que Deus se esconde para respeitar nossa liberdade, ou até para torná-la possível. 94

Se Deus estivesse “sem cessar diante de nossos olhos”, ou mesmo se pudéssemos provar sua existência, o que dá na mesma, essa certeza nos destinaria à heteronomia. 94 [?]

Se a ignorância fosse a condição da nossa liberdade, seríamos mais livres que o próprio Deus. Seríamos mais livres na terra que os bem-aventurados em seu paraíso, que veem Deus “face a face”. 94/95

Há menos liberdade na ignorância do que no conhecimento. 95

A ignorância em que Deus nos mantém, no que concerne à sua existência, não poderia se justificar pela preocupação que ele teria de nos deixar livres. É o conhecimento que liberta, não a ignorância. 95

Kant: Se Deus se mostrasse a nós, todas as nossas ações se explicariam, a partir de então, pela esperança e pelo medo, nenhuma seria consumada por dever. 96

Concordo. Agir moralmente é agir de forma desinteressada. Mas isso constitui um argumento contra o inferno e o paraíso, muito mais do que uma justificativa para a ignorância humana ou para a ignorância humana ou para a dissimulação divina. 96

O que vocês pensariam de um pai que se escondesse dos seus filhos? 96

Que pai seria este para se esconder em Auschwitz, no Gulag, em Ruanda? 96

A ideia de um Deus que se esconde é inconciliável com a ideia de um Deus pai. E torna a própria ideia de Deus contraditória: esse Deus não seria um Deus. 96/97

Oh, o vazio de Deus nas igrejas cheias! 97

“Deus não fala porque ouve”. Como saber se é o silêncio da escuta ou da inexistência? 97

A humanidade é fraca demais e a vida difícil demais para que eu possa me permitir desprezar a fé de quem quer que seja. 97

Uma experiência que nem todos compartilham, não deixa de ser frágil. Muita gente viu fantasmas ou se comunica dom espíritos fazendo mesas girarem... devo acreditar nisso? O que isso prova? A autossugestão, nesses domínios, é menos improvável do que uma intervenção sobrenatural. 98

Se Deus se mostra – em todo caso não a mim nem a todos –, talvez seja porque ele quer se ocultar. Mas também pode ser, e essa hipótese parece mais simples, porque ele não existe. 98 

UMA EXPLICAÇÃO INCOMPREENSÍVEL

Crer em Deus equivale sempre a querer explicar algo que não compreendemos por meio de outra coisa que compreendemos menos ainda. 98

Se todo progresso científico parece fazer a religião recuar nem por isso ele pode refutá-la globalmente. 98/99

As explicações que as religiões pretendem dar têm em comum... o fato de não explicarem nada. 99

Há coisas desconhecidas; é o que possibilita o progresso do conhecimento. Mas por que esse mistério seria Deus? 99

As pessoas se refugiam nele para explicar o que não compreendem. Que vale essa explicação se Deus mesmo é incompreensível? 99

Por que há alguma coisa em vez de nada? Não sabemos. Por que as leis da natureza são o que são? Também não sabemos. Chamar esse mistério de “Deus” é uma solução barata, que não dissipa o mistério. 100

Orar? Interpretar? É apenas compor uma letra para o silêncio. 100

O mundo me interessa mais do que a Bíblia ou o Corão. Ele é mais misterioso, mais vasto, mais insondável, mais surpreendente, mais estimulante, mais verdadeiro do que a Bíblia e o Corão. 100

“Se Deus nos fez à sua imagem, nós lhe retribuímos à altura”. Voltaire 100

“A verdade está no fundo do abismo” dizia Demócrito, e o abismo não tem fundo. 101

O universo é um mistério suficiente. Para que inventar outro? 101

Longe de ser uma objeção contra o ateísmo, esse mistério intrínseco e irredutível seria, ao contrário, muito mais uma objeção à religião. 101

“Em que vocês, místicos que afirmam a incompreensibilidade absoluta da divindade, diferem dos céticos e dos ateus, que pretendem que a causa primeira de todas as coisas seja desconhecida e ininteligível?” Hume

Se o absoluto é inconhecível, o que nos permite pensar que ele é Deus? 101

Se a fé excede toda razão, como saber em que se crê? 101

“Credo quia absurdum”, creio porque é absurdo. Que tenham bom proveito! Mas por que o absurdo seria Deus? E como isso seria um argumento? 102

O verdadeiro Deus é desconhecido... muito bem. Mas, se não o conhecemos, como saber que é Deus? 102

“Se os triângulos fizessem um Deus, lhe dariam três lados”. Montesquieu

O que se possa afirmar positivamente sobre Deus, essa afirmação será marcada pelo antropomorfismo. Não basta proibir as imagens de Deus. 102/103

O que dizer sobre Deus, além de todo antropomorfismo, a não ser, muito exatamente, nada? 103

Se o Uno existe, não se pode dizer nada dele: não se tem nenhum motivo para ver nele um Deus. 103

Teologias negativas: Elas procuram dizer o que Deus não é. No fim das contas, o que isso nos faz saber sobre o que ele é? 103/104

Nesse caso, o próprio conceito de Deus se torna vazio ou inconcebível. 104

Se Deus é inconcebível, nada nos autoriza a pensar que ele é um sujeito ou uma pessoa, nem que ele é Criador, nem que é Justo, nem que é Amor, nem que é Protetor ou Benfeitor... Se não se pode dizer nada de Deus, não se pode tampouco dizer que ele existe, nem que ele é Deus. 104

Crer em Deus é pensar que o Absoluto se parece conosco. Ser ateu é pensar que, se a ideia de Deus se parece conosco o real último ou primeiro não se parece. 104/105 

EXCESSO DO MAL

O primeiro argumento é a existência do mal, ou ainda, sua amplitude, sua atrocidade, sua enormidade. O mal apresenta uma forte razão para ser ateu. 106 [uma razão impossível de ser refutada de forma satisfatória por qualquer crente, por mais “racionais” que sejam os argumentos usados por ele]

Epicuro: Ou Deus quer eliminar o mal e não pode; ou pode e não quer; ou quer e pode. Se quer e não pode é impotente, o que não corresponde a Deus. Se pode e não quer, é mau, o que é estranho a Deus. Se não pode nem quer, é ao mesmo tempo impotente e mau, logo não é Deus. Se quer e pode, o que corresponde somente a Deus, de onde então vem o mal ou por que Deus não o suprime? 106

A quarta hipótese, a única conforme à nossa ideia de Deus, é portanto refutada pelo próprio real. 106

[Segundo] Lucrécio, a natureza mostra bastante bem, com suas imperfeições, “que não foi criada para nós por uma divindade”. 107

A vida é difícil demais, a humanidade é fraca demais, o trabalho é extenuante demais, os prazeres vãos ou raros demais, a dor é demasiado frequente ou demasiado atroz, o acaso é demasiado injusto ou demasiado cego para que se possa crer que um mundo tão imperfeito seja de origem divina! 107

Para os ateus, o mal é um fato, que temos que reconhecer, enfrentar, superar se possível, mas não é nada difícil de compreender. A existência do mal para o ateu, é natural. É menos um problema (teórico) do que um obstáculo (prático) e uma evidência. 107

E para os crentes? Que haja bem no mundo, a natureza e a história poderiam bastar para explicar. Mas que haja o mal, e que haja tanto mal, e tão atroz, e tão injusto, como torná-lo compreensível com a existência , a onipotência e a infinita perfeição de Deus? 107

Se o mundo não comportasse mal algum, seria perfeito; mas se ele fosse perfeito, seria Deus e não haveria o mundo.. 108

Como não haveria mal no mundo, se o mundo só é mundo com a condição de não ser Deus? 108

Seja. Isso pode explicar que haja mal no mundo. Mas tinha de haver tanto mal assim? 108

O mal, o bem. A natureza basta para explicar um e outro, ao passo que um Deus tornaria os dois incompreensíveis. 109 [Na verdade os três]

Há horrores demais nesse mundo, sofrimentos demais, injustiças demais para que a ideia de ele ter sido criado por um Deus onipotente e infinitamente bom me pareça aceitável. 109

Os crentes vão me responder que Deus nos criou livres, o que supõe que possamos praticar o mal... Isso nos remete à aporia já invocada: Somos então mais livres do que Deus, que só é capaz – perfeição obriga – de praticar o bem? 109

Banalidade do mal, raridade do bem! Parece-me que um Deus, mesmo nos deixando livres e imperfeitos, poderia obter uma proporção mais favorável. 109

Há todos esses sofrimentos, desde há milênios, pelos quais a humanidade não é responsável. Quem ousaria falar de pecado original? 109/110

Há a desgraça do justo e o sofrimento das crianças. Ao que o pecado original dá uma explicação ridícula ou obscena. 110

E há o sofrimento dos animais. 110

Mas como inserir tantos sofrimentos e por tanto tempo, num suposto plano divino? 110

A vida, tal como se supõe que Deus a criou, e muito antes do aparecimento do homo sapiens, é de uma violência e de uma injustiça assustadoras. 110

Deus torna o horror inexplicável. 111

Alguns crentes combatem hoje em frentes invertidas, invocando não mais a onipotência de Deus mas sua impotência. 111

O conceito de Deus depois de Auschuwitz, de Hans Jonas 111

Seria necessário aceitar a trágica fraqueza de um Deus em devir e em sofrimento, de um Deus que “Se despojou de sua divindade”. Que só pode criar o mundo e o homem renunciando à onipotência. 111

Esse tema do Deus fraco pode ser autorizado pela própria imagem de Cristo, em seus dois extremos, o menino nu, entre a vaca e o burro, e o inocente crucificado, entre dois ladrões. 111

Tenho mais dificuldade para conceber esse Deus fraco de que nos falam, que teria potência suficiente para criar o universo e o homem, ou até para nos fazer ressuscitar de entre os mortos, mas não para salvar uma criança ou seu povo. 112

O mel, dizem eles, é um “mistério”. O Deus deles é que é um mistério, ou que torna o mal misterioso. 112 

MEDIOCRIDADE DO HOMEM

Os humanos: Quanto mais os conheço, menos posso crer em Deus. 113

A ideia de que Deus tenha podido consentir em criar tamanha mediocridade – o ser humano – me parece, mais uma vez, de uma plausibilidade baixíssima. 113

“Deus criou o homem à sua imagem”, lemos no Gênesis. Isso nos faz duvidar do original. 113

O homem não é estranhamente mau. Ele é estranhamente medíocre, mas não tem culpa disso. Ele faz o que pode com o que tem ou o que é, e ele não é grande coisa e não pode muito. 113/114

É porque os homens são animais que não vale a pena odiá-los. 114

Como cópias de Deus, seríamos ridículos e inquietantes. Como animais produzidos pela natureza, não somos de todo desprovidos de qualidades e de méritos. 114

Os direitos dos animais, inclusive, só existem para os humanos. 114

A religião do homem? Claro que não. Que péssimo Deus ele daria! 114

Devemos perdoar os homens por serem apenas o que são. 114

O que ele fez de melhor, nenhum animal teria feito. O que ele fez de pior, também não. Daí a imaginá-lo criado por um Deus... Como? 115

Seria necessário um Deus para explicar isso? Coitado! Como ele deve se chatear, se existir, se é que não se envergonha! 115

Como, diante de tamanha mediocridade das criaturas, ainda crer na infinita perfeição de um criador? 115

Dentre alguns verdadeiros canalhas, uma larga maioria de gente de bem. 116

A miséria do homem me parece muito mais compatível com sua origem divina do que sua grandeza com sua origem natural! 116

Que sejamos a tal ponto capazes de ódio, de violência e de mesquinharia, isso me parece exceder os recursos de qualquer teologia. Não sou exceção. 116

Crer em Deus é pecado de orgulho. Seria atribuir a nós mesmos uma causa muito grande para um efeito tão pequeno. 116 

O DESEJO E A ILUSÃO

Se sou ateu, é também porque eu preferiria que Deus existisse! 117

Ser ateu não é necessariamente ser contra Deus. Por que ser contra o que não existe? 117

O que há de mais amável, por definição, do que um Deus de amor? 117

“A justiça não existe; é por isso que temos de fazê-la”. Alain 117

Um infinito de amor, de justiça, de verdade... sou a favor dele, preferiria que ele existisse; mas não é uma razão suficiente para nele crer, aliás, é uma, e bem forte, para me recusar a crer. 117/118

Eu também preferiria que nunca mais houvesse guerras, nem pobreza, nem injustiça, nem ódio. Mas se alguém me anunciar isso para amanhã, vou considerá-lo um sonhador que confunde seus desejos com a realidade – ou um terrorista, se pretender me impor seu sonho. 118

Uma crença que corresponde a tal ponto aos nossos desejos, é de temer que tenha sido inventada para satisfazê-los. 118

O que desejamos acima de tudo? Não morrer, encontrar os seres queridos que perdemos; que a justiça e a paz terminem por triunfar; ser amados. O que diz a religião? Que não morreremos; que encontraremos os seres queridos que perdemos; que a justiça e a paz prevalecerão; que já somos amados com um amor infinito... 118/119

“A fé salva, logo mente”. Nietzsche 119

É justamente porque Deus é definido como “soberanamente perfeito” que convém não crer nele. 119

Pascal está convencido de que não há prova da existência de Deus, que não pode haver e, aliás, que, se houvesse uma, não seria Deus que ela provaria. 119

[Aceitar a aposta de Pascal] seria indigno de nós, da razão e de Pascal. 120

Não é o meu interesse que busco acima de tudo, é a verdade, e nada garante que os dois coincidam. 121

Toda religião é otimista. É isso que torna a coisa improvável. Como não desconfiar que ela tem a estrutura de uma ilusão? 121

Uma ilusão é “uma crença derivada dos desejos humanos”. 122

Deus é por demais incompreensível, de um ponto de vista metafísico, para não ser duvidoso. A religião é por demais incompreensível, de um ponto de vista antropológico, para não ser suspeita. 122

Imagine que eu queira comprar um apartamento em Manhattan, com vista para o Central Park, pelo menos quatro quartos por um preço que não ultrapasse 100.000 dólares. Você me dirá que acalento uma ilusão. E se eu lhe digo que existe um Deus imortal, onisciente, onipotente, perfeitamente bom e justo, todo de amor e misericórdia, você acha mais crível do que um apartamento desses no melhor lugar de Nova York por menos de 100.000 dólares? Só se você fizer uma ideia muito pouco elevada de Deus ou elevada demais do ramo imobiliário. 123

“Estamos dispostos por natureza a crer facilmente no que esperamos e, ao contrário, dificilmente no que tememos” 123

Se dependesse de mim, pode ter certeza de que Deus existiria faz tempo! 123

O próprio desejo que temos de Deus é um dos argumentos mais fortes contra a crença na sua existência. 123 

O direito de não crer

Seis argumentos principais me levam a não crer em Deus: A debilidade dos argumentos opostos (as supostas “provas” da existência de Deus); A experiência comum (se Deus existisse deveríamos vê-lo ou senti-lo mais); Minha recusa a explicar o que não compreendo por meio de algo que compreendo menos ainda; A enormidade do mal; a mediocridade do homem; O fato de que Deus corresponde tão bem a nossos desejos que sobram razões para pensar que ele foi inventado para satisfazê-los, pelo menos fantasmaticamente (o que faz da religião uma ilusão, no sentido freudiano do termo) 123/124

Deus existe? Não sabemos. 124

São minhas razões, não pretendo impô-las a ninguém. Contento-me com reivindicar o direito de enunciá-las publicamente e submetê-las, como convém, à discussão. 124

Dogmatismo e terrorismo se alimentam reciprocamente. O que é o fanatismo? É confundir a sua fé com um saber, ou querer impô-la à força. 124

A religião é um direito. A irreligião também. Logo, devemos proteger ambas (inclusive uma contra a outra, se necessário). É o que se chama laicidade. 125

A liberdade de espírito é talvez o único bem mais precioso que a paz. É que a paz, sem ela, não passa de servidão. 125 

III 

QUE ESPIRITUALIDADE PARA OS ATEUS?

O fato de eu não crer em Deus não me impede de ter um espírito, nem me dispensa de utilizá-lo. 127

O espírito é uma coisa importante demais para ser abandonado aos padres, aos mulás ou aos espiritualistas.127

Não ter religião não é um motivo para renunciar a toda vida espiritual. 127 

Uma espiritualidade sem Deus?

O que é uma espiritualidade? É a vida do espírito. Mas o que é um espírito? ”Uma coisa que pensa”. 128

Pouco importa que essa coisa seja o cérebro, como creio, ou uma substância imaterial, como acreditava Descartes. 128

O que é o espírito? É o poder de pensar, na medida em que tem acesso ao verdadeiro, ao universal, ou ao riso. 128

“Espiritual” seria mais sinônimo de “mental” ou de “psíquico”. 128

Toda religião pertence, ao menos em parte, à espiritualidade; mas nem toda espiritualidade é necessariamente religiosa. 129

Ser ateu não é negar a existência do absoluto, é negar que o absoluto seja Deus. 129 [Se o absoluto existir, é claro]

“Absoluto”, o que existe independentemente de qualquer condição, de qualquer relação ou de qualquer ponto de vista.129

A natureza é para mim o todo do real (o sobrenatural não existe), e existe independentemente do espírito (que ela produz, que não a produz). 130

Faz parte da definição de Todo que ele seja único. 130

A natureza, isto é, tudo. 131

Ser materialista, no sentido filosófico do termo, é negar a independência ontológica do espírito. Não é negar sua existência. 131

O fato de o espírito ser corporal, não é uma razão para deixar de utilizá-lo. 131

Acabou-se acreditando que “religião” e “espiritualidade” eram sinônimos. Nada disso! 132

Se tudo é natural, a espiritualidade também é. 132 

Mística e mistério

Espiritualidade [é] quase um sinônimo de “ética” ou de “sabedoria”. Isso concerne à nossa relação com a humanidade. 133

Todas as nossas explicações são palavras. Mas não se trata tampouco de esquecer o silêncio que todas as nossas explicações encobrem, que as contém e que elas não contém. 135

Aquilo de que falam todos os nossos discursos, e que não é um. Não o Verbo, mas o silêncio. Não o sentido, mas o ser. É o domínio da espiritualidade ou da mística, quando escapam da religião. 135 

A imanensidade

Se temos uma ideia, não temos uma experiência dele. 136

Estamos no Todo. Ele nos envolve. Ele nos contém. Ele nos supera. Uma transcendência? Não, já que estamos dentro. 136

Não enxergamos 100 passos à nossa frente. Vemos, mesmo a olho nu, a milhares de quilômetro. 137

De noite, toda escala muda. 137

Mal posso perceber o solo em que ando. Mas percebo, melhor do que em pleno dia, o inacessível que me contém. 137

O mundo é nosso lugar; o céu, nosso horizonte; a eternidade, nosso cotidiano. Isso me comove mais que a Bíblia ou o Corão. Isso me espantaria mais que os milagres, se eu acreditasse neles. Andar em cima das águas, que insignificância perto do universo! 137

“Quando considero a pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade precedente ou seguinte, o pequeno espaço que preencho e, inclusive, que vejo, abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, eu me aterrorizo e me espanto com me ver aqui, em vez de lá; porque não há razão de por que aqui e não lá, de por que agora em vez de então. Quem me pôs aqui? Por ordem e direção de quem esse lugar e esse tempo foram destinados a mim?” Pascal 138

O universo está aí, ele é tudo, e nós não somos quase nada. Pascal vê nisso uma fonte de inquietude. Vejo, de minha parte, um oceano de paz, pelo menos quando mais sinto do que penso. 138

E é contemplando essa imensidade que nos contém que melhor tomamos consciência, por diferença, da nossa pequenez. 138

“ – Crês que um homem dotado de grandeza d’alma, a quem é dado contemplar todos os tempos e todos os seres, possa olhar a vida humana como uma coisa grandiosa?
 – Impossível.
 – Logo, ele não verá na morte nada de terrível”.
                                                                                              Marco Aurélio citando Platão 139

O eu é uma prisão. Tomar consciência da sua pequenez já é sair dela. É por isso que a experiência da natureza, em sua imensidade, é uma experiência espiritual – porque ela ajuda o espírito a se libertar, ao menos em parte, da pequena prisão do eu.139

Minhas angústias são quase todas egoístas, só tenho medo por mim ou pelos que amo. É por isso que o longínquo me faz bem: ele põe minhas angústias à distância. 140

Que peso têm nossas preocupações diante da Via Láctea? 141 

O "sentimento oceânico"

“sentimento oceânico, um sentimento de união indissolúvel com o grande Todo e de pertencimento ao universal” Freud 141

Quem se sente “em unidade com o Todo” não precisa de outra coisa. Um Deus? Para quê? O universo basta. Uma igreja? Inútil. O mundo basta. Uma fé? Para quê? A experiência basta. 141

É possível que essa experiência possa ser dita em termos religiosos, quando ela cai, por assim dizer, num crente. Mas não é necessário. 141/142 

Uma experiência mística

Deixei a eternidade continuar sem mim... Não sou dos que sabem habitar duradouramente o absoluto. 149 

Falar do silêncio

O fato de a verdade não ser um discurso não impede que um discurso seja verdadeiro. 151

“A ideia de círculo não é redonda, o conceito de cão não late”. Espinosa 151

O que podemos calar, e somente isso, também podemos dizer. 151 

O mistério e a evidência

“A resposta é sim. Mas qual pode ser a pergunta?” Woody Allen 152 

Serenidade

“Viver feliz é viver sem esperança” Krishnamurti 164 

Aceitação

Não contemos com o absoluto para combater a injustiça em nosso lugar. 169

“O amor é uma alegria que a ideia de uma causa externa acompanha”. Espinosa 171 

Mística do ateísmo

“Ou o Evangelho, ou a contemplação – ou a metafísica, ou a palavra”. Emil Brunner 177

Ou o silêncio, ou o verbo. Ou a experiência, ou a fé. Ou a meditação, ou a prece. 177

A intuição mística de certo modo hipostasiada: o que nos parece ser a forma mais profunda do ateísmo. 177

“Toda mística autêntica é, de fato, mais ou menos ateia”. Kojère 177

“Sou místico, e não creio em nada”. Nietzsche 177 

O absoluto e o relativo

Somos separados do absoluto ou da eternidade apenas por nós mesmos, eis o que creio. 179

Enquanto você vir uma diferença entre a sua vida, tal como ela é – decepcionante, cansativa, angustiante – e a salvação, você está na vida como ela é. 179 

Interioridade e transcendência, imanência e abertura

Que triste mundo esse mundo. Que triste coisa um eu obrigado a hospedar o ser: formidável tropa. 184

O sábio se contenta, modestamente, com tudo. 185

O eu é nada mais que o conjunto das ilusões que ele tem sobre si mesmo. Podemos sair delas. [será que podemos?

CONCLUSÃO 

O AMOR E A VERDADE

À força de concentrar todo valor e toda realidade em Deus, quando a fé se retira não encontramos mais que um mundo vazio e vão, sem valor, sem sabor, sem importância. 188

O fato de a verdade ser sem amor não condena o amor a ser sem verdade. 190

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