MRS. DALLOWAY



Sempre sentira que era muito, muito perigoso viver, por um só dia que fosse.

Importava mesmo que tivesse de desaparecer um dia, inevitavelmente? Tudo aquilo continuava sem ela. Ou seria um consolo pensar que a morte acabava com tudo, absolutamente?

Êxtase religioso insensibiliza as criaturas; embota-lhes os sentimentos, do príncipe saudando; ao pensamento da vida celestial que Deus outorga aos reis.

Maravilhosa descoberta, na verdade — que a voz humana, em certas condições atmosféricas (pois sejamos científicos, antes de tudo científicos) possa dar vida às árvores!

O amor torna a gente solitária, nada é tão estranho quando se ama (e que era aquilo senão amor?), como a completa indiferença dos demais.

Veio então o mais raro momento de toda a sua vida, ao passarem por uma urna de pedra com flores. Sally parou; colheu uma flor; e beijou Clarissa nos lábios. O mundo inteiro podia ter desabado!

“Foi isto o que eu fiz da minha vida! Isto!” E que havia feito? Que havia feito dela, afinal?

O rio que diz: adiante, adiante, adiante; embora saiba que não pode haver nenhuma finalidade para nós, mas: adiante, adiante.

Inventada, aquela aventura com a moça; fabricada, como se fabrica a melhor parte da vida, pensou — como a gente se fabrica a si mesmo; a vida; tudo o que não se podia compartilhar... esvaía-se em pó.

Nada existe fora de nós além de estados de espírito, pensa ele; um desejo de escape, de alívio, de alguma coisa alheia a esses miseráveis pigmeus, a esses desleais, feios, covardes humanos.

Assim se sentia ele aproximar-se da vida, pois o sol era mais quente, os gritos, mais fortes, e alguma coisa tremenda ia acontecer.

Tudo aquilo, assim tranquilo e razoável, constituído de coisas ordinárias, era a verdade; beleza, esta era a verdade. A beleza estava em toda parte.

“Ele não lê nada, não pensa nada, não sente nada”.

Dizia que nenhum homem decente devia ler os sonetos de Shakespeare, pois era o mesmo que escutar pelo buraco da fechadura.

Era essencialmente feminina; com esse extraordinário dom, peculiar às mulheres, de fazer-se num mundo próprio, onde quer que se encontrasse.

Embora duas vezes mais inteligente que o marido, via as coisas pelos olhos deste — uma das tragédias da vida conjugal.

Somos uma espécie condenada, prisioneira num barco que naufraga.

Como tudo é uma farsa de mau gosto, desempenhemos, afinal de contas, nosso papel; mitiguemos as penas dos nossos companheiros de prisão.

Esses rufiões, os deuses, nem sempre teriam a melhor parte; pois a sua ideia era que os deuses nunca perdem ocasião de ferir, contrariar e arruinar as vidas humanas, e que ficavam seriamente desapontados quando ela, apesar de tudo, se conduzia como uma grande dama.

Mais tarde já não seria tão positiva, talvez; pensava que não havia deuses; que não tinha culpa de coisa alguma; e assim fora evoluindo para essa religião dos ateus, de fazer o bem pelo próprio bem.

A compensação de a gente envelhecer, era simplesmente esta: que as paixões permanecem tão fortes como antes, mas adquire-se — afinal! — o poder que dá o supremo sabor à existência: o poder de nos apoderarmos da experiência e volteá-la, lentamente, em plena luz.

Que coisa mais estúpida, ser infeliz!

Era, de resto, o homem mais feliz do mundo, e o mais digno de compaixão?

Bem podia ser que o próprio mundo não tivesse sentido.

Então abriu Shakespeare de novo. O juvenil pendor de intoxicar-se com palavras havia enfraquecido.

Desprezava a humanidade, o vestir-se, o ter filhos, a sordidez da boca e do ventre!

O secreto sinal que, disfarçadamente, uma geração passa a outra não é mais que desprezo, ódio, desespero.

O amor entre homem e mulher era repulsivo para Shakespeare. Isso da cópula lhe parecia uma imundície.

Não se podem trazer crianças a um mundo como este. Não se pode perpetuar o sofrimento, ou aumentar a espécie desses animais sensuais, que não têm emoções perduráveis.

A verdade é que os seres humanos não têm bondade, nem fé, nem caridade, senão o necessário para aumentar o prazer do momento. Caçam em matilhas.

Não havia mesmo desculpa; não tinha absolutamente nada, exceto o pecado pelo qual a natureza humana o condenava à morte, o pecado de não sentir.

Em suma, a natureza humana estava no seu encalço, aquela repelente besta de focinho ensanguentado.

— A guerra? — perguntou o paciente. A guerra europeia — aquela miserável choldra de colegiais e pólvora?

E se, depois de tudo, não houvesse Deus?

Mas, em suma, viver, ou não viver, não é um assunto particular?

De resto, a diferença entre um homem e outro nunca é muito grande.

Há uma dignidade nas pessoas; uma solidão; até entre marido e mulher, um abismo; mas que se devia respeitar.

O que ela amava era simplesmente a vida. Esperaria até o último momento. Não desejava morrer. A vida era boa. O sol aquecia. Se não fossem os seres humanos...

Pertencia a uma outra época, mas tão inteira e completamente que permaneceria sempre de pé no horizonte, branco vulto de pedra, alto, como um farol a assinalar uma passada etapa naquela aventurosa, longa, longa viagem, naquela interminável, naquela interminável vida...

Apenas parecia impossível que uma criatura de lábios esverdeados e faces escanhoadas houvesse cometido o erro de complicar-se com filhos.

De cada vez que dava uma festa, vinha-lhe aquela sensação de não ser ela própria e de que cada pessoa era irreal em certo sentido.

Considerou um alívio, talvez, para a angústia que sentia às vezes, ao despertar de manhã cedo, a certeza de que temos de morrer.

Tinha uma vez acusado Hugh Whitbread de a ter beijado no salão de fumar, para castigá-la de haver dito que as mulheres deveriam votar.

A morte era uma tentativa de união ante a impossibilidade de alcançar esse centro que nos escapa; o que nos é próximo se afasta; todo entusiasmo desaparece; fica-se completamente só... Havia um enlace, um abraço, na morte.

E, depois (sentira-o ainda naquela manhã), havia o terror; a acabrunhante incapacidade, pois nossos pais a puseram em nossas mãos, esta vida, para que a vivamos até o fim, para que andemos serenamente com ela; havia nas profundezas do seu coração um terrível medo.

Era fascinante, com toda aquela gente ainda a rir e a falar no salão, contemplar aquela velha mulher que se preparava tranquilamente para ir dormir sozinha. Fechou a cortina. O relógio começou a bater. O jovem se havia suicidado; mas não podia lamentá-lo; com o relógio a bater a hora, uma, duas, três, não podia lamentá-lo, com tudo aquilo indo para diante.

A gente, quando envelhece, entende as coisas sem necessidade de palavras.

— A inteligência era uma estupidez. Devia-se dizer simplesmente o que sentia. — Mas eu não sei — disse Peter Walsh —, eu não sei o que sinto.

Pode-se acaso saber alguma coisa, mesmo da gente com quem se vive todos os dias?, indagou.

Lera uma peça maravilhosa a respeito de um homem que escrevia na parede da sua cela, e ela achava que essa era a verdade da vida: a gente escrevia coisas na parede.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GÊNEROS LITERÁRIOS - Angélica Soares

O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS - Douglas Adams

DO GROTESCO E DO SUBLIME de Victor Hugo