RESSURREIÇÃO - Leon Tolstói



Trabalhou no doce aconchego do lar no seu maior e mais celebrado romance, que foi Guerra e paz. Perfeito pela crítica de costumes da alta sociedade, perfeito pela reconstituição histórica e pela análise das campanhas militares, perfeito pelos retratos que o enxameiam.

Deus, segundo ele, está em nós mesmos. A felicidade alcança-se pela atividade natural temperada no amor do próximo. Proscreveu toda violência, e apontou o Estado como uma impostura intolerável. Condenou a propriedade particular e a exploração do homem pelo homem, sob qualquer nome. Pregou o vegetarianismo. Teve complicações com a família. Foi mesmo excomungado pela Igreja Ortodoxa.

Os homens, somente os homens, continuavam a enganar-se e a torturar a si próprios, e aos outros.

A mãe não era casada, mas todos os anos dava à luz uma criança; e, como é muito comum em casos semelhantes, as crianças nem bem nasciam eram batizadas, depois do que a mãe não as amamentava, pretextando terem vindo ao mundo sem que ela quisesse, e lhe atrapalhando o serviço: e assim iam morrendo de fome as pobrezinhas.

Tinha profunda convicção de sua superioridade, considerava como muito justas as homenagens que recebia, e a falta delas feria-o como uma afronta.

Vendo e ouvindo a princesa e Kolossoff, Nekhludov chegou à conclusão de que a conversa nada tinha a ver diretamente com a peça comentada, nem interesse comum, mas era simplesmente a satisfação de uma necessidade física: ativar a digestão, movimentando os músculos da face e do pescoço. Nekhludov concluiu que a ilustre senhora, no auge da conversa, não deixava de lançar olhares inquietos para a janela de onde entrava um raio de sol poente, que indiscretamente vinha mostrar-lhe as rugas do rosto.

— Quanto a Darwin — continuou Kolossoff mexendo-se sobre a banqueta —, devo confessar que há muita coisa exata em sua doutrina; mas às vezes vai um pouco longe. Concorda comigo?

Brincando, tudo é possível, mas na realidade somos tão miseráveis... pelo menos assim me considero, que não concebo a possibilidade de dizer sempre a verdade.

Nekhludov sentiu o que os cavalos devem sentir quando os preparam para pôr-lhes o freio e os atrelar: de modo algum queria ver-se freado.

“Mas sem dúvida!”, respondeu-lhe uma voz íntima. És um miserável, um indigno! Pouco importa o juízo que façam de ti; podes enganar os outros, mas a ti não te enganas!”

Pela maneira natural com que os magistrados, advogados, testemunhas e toda a sala receberam a leitura da sua condenação, avaliou perfeitamente a realidade. Num momento de desespero, gritou com todas as suas forças que era inocente. Entretanto, logo viu que também aquele grito fora recebido como uma coisa natural, esperada e incapaz de alterar sua situação.

“Um elemento tão perigoso como a condenada de ontem!”, pensou Nekhludov ao ver desenrolarem os detalhes do processo. “Ambos são perigosos! Que seja! E nós, nós todos que os julgamos? Eu, por exemplo, um devasso, um mentiroso, um impostor. Nós então não somos perigosos? É fato bem evidente que esse moço não é criminoso profissional, nem um tipo degenerado. Todos veem e sentem isso. Coisa não menos evidente a qualquer criatura de bom senso é que, para impedir atos semelhantes, o primeiro passo é procurar destruir as condições que têm por efeito inevitável a perdição de tantos homens. E o que fazemos nós? jogamo-lo numa prisão, condenamo-lo à completa ociosidade ou então a um trabalho deprimente e estúpido em companhia de outros pobres diabos da mesma espécie; e depois o enviamos às expensas do Estado, do governo de A... para o governo de Irkutsk, desta vez em companhia de criminosos piores. Mas, para destruir as condições que produzem tais seres, nada fazemos. Ao invés de abolirmos, perpetuamos esse estado de coisas, declarando-as necessárias, incentivando-as e dando-lhes o apoio da lei. Formamos assim não um criminoso, mas milhares deles. Nós, homens ricos e instruídos, nos reunimos numa sala, com toda a solenidade, para julgar um infeliz que é nosso irmão e para cuja perdição nós mesmos contribuímos!

Naquela noite deixou de crer em Deus. Até então acreditava em Deus; agora Deus não existia, mais ninguém cria nele e todos aqueles que lhe falavam de Deus e das suas leis só o faziam para enganá-la. No mundo, cada um vive para si e tudo quanto dizem de Deus e do bem é pura invencionice!

O sacerdote, vestindo uma casula de brocado, tão singular quanto incômoda, partia pequenas fatias de pão e as colocava numa bandeja. Molhava-as em seguida num cálice cheio de vinho, acompanhando a cerimônia com inúmeras orações e invocações. Essas orações se destinavam especialmente a implorar a bênção divina para o imperador e sua família. Em todas elas faziam-lhe referências, e havia algumas destinadas só a esse fim, que deviam ser rezadas de joelhos. Os pedacinhos de pão molhados no vinho, mediante certos gestos do sacerdote e orações especiais, deviam transformar-se no corpo e no sangue do Cristo. Em seguida, o padre, levantando o guardanapo que cobria a bandeja, cortava um dos pedaços de pão em quatro fragmentos, umedecia-os no vinho e comia-os; isso significava que estava comendo e bebendo a carne e o sangue de Deus.

[O autor narra uma missa acontecendo na igreja de um presídio]
E assim terminou a cerimônia religiosa, destinada a consolar as ovelhas transviadas e reconduzi-las ao bom caminho. E a nenhum dos assistentes, desde o sacerdote e o diretor até Maslova, ocorria a ideia de que esse mesmo Jesus, cujo nome o sacerdote repetia tantas vezes, esse mesmo Jesus a quem erguiam louvores incompreensíveis proibira exatamente tudo o que se praticava naquele lugar: proibira que os homens julgassem seus semelhantes, que os prendessem, que os vigiassem e os atormentassem, como acontecia no recinto da prisão; proibira aos homens a violência de uns para com os outros, afirmando que tinha vindo restituir à liberdade os que dela foram privados. Longe de pensar em semelhante coisa, o padre realizava todas as cerimônias com a consciência tranquila, tinham a impressão, confusa e irrefletida, de que essa religião justificava a desumanidade dos cargos que exerciam e de que, sem ela, seria difícil, se não impossível, consagrar toda a sua existência a atormentar os seus semelhantes, o que então podiam fazer com absoluta tranquilidade de espírito.

Entre a maioria dos presos — excetuando-se alguns que compreendiam claramente a falsidade daquela religião, e que por isso tinham deixado de crer nela ou em outra qualquer — os demais acreditavam que as imagens douradas, os círios etc... gozavam de um poder mágico, graças ao qual podiam adquirir bens quer nesta vida, quer na vida futura. Maslova perdera a crença em Deus, mas continuava a julgar as orações, sinais da cruz e genuflexões indispensáveis.

Orgulho e satisfação pelo ato heroico que ia praticar.

Em qualquer condição que se encontre um ser humano, ele forma inevitavelmente um conceito de vida onde a sua atividade particular aparece como manifestação necessária e boa. Em geral imaginamos que o ladrão, o assassino, o traidor, a prostituta se envergonham da profissão que exercem ou, pelo menos, a reconhecem como má; mas na realidade não é assim. Os homens, vítimas do destino e jogados pelos erros em determinadas situações, por imorais que pareçam, ajustam-nas sempre a um conceito geral de vida em que a situação particular possa parecer legítima e admissível. Não nos surpreendemos ao vermos ricaços que se orgulham de sua fortuna — produto de roubo e da usurpação, ou ainda ao vermos homens poderosos se orgulharem de seu poder, feito de violência e crueldade. Sequer nos admiramos, simplesmente porque o número de pessoas que assim pensam é muito grande e nós nos incluímos nesse número.

Há dez anos vinha encontrando em seu caminho homens que só pensavam em possuí-la. Eis por que, ao ver Nekhludov, recusou-se a contemplá-lo como a um ser outrora pura e castamente amado.

Assim também são os homens, todos eles igualmente depositários dos germes de todas as qualidades humanas; ora manifestam uma de preferência, ora outra, aparentando, muitas vezes, o que habitualmente não são.

“Estes infelizes perecem porque lhes falta a terra que os alimenta, essa terra sem a qual ninguém vive, essa terra que eles mesmos cultivam para que outros lhe vendam no estrangeiro os produtos, e, em troca, comprem para si peliças, carruagens, estátuas de bronze, e sei lá o quê. Quando os cavalos presos num campo acabam de comer todo o capim que aí existia, começam a emagrecer e morrem, se não puderem aproveitar a erva do pasto vizinho: o mesmo acontece com estes infelizes. E eles morrem sem mesmo o perceber, acostumados que estão com uma organização cujo objetivo consiste precisamente em fazê-los perecer; uma organização que conta, entre os seus crimes, o assassínio das crianças, o esgotamento das mulheres e a alimentação insuficiente dos moços e dos velhos. Assim, pouco a pouco, vão perdendo a noção do mal que sobre eles pesa. E então nós, os autores desse mal, chegamos à conclusão de que é um mal natural e necessário: e dessarte, nas faculdades, nos ministérios, nos jornais dissertamos descansadamente sobre as causas da miséria dos camponeses e sobre os diversos meios de remediá-la, enquanto deixamos subsistir, sem lhe fazer a menor alusão, a causa única dessa miséria, continuando a privar os camponeses da terra de que necessitam.”

“A terra não pode ser objeto de propriedade particular; não pode ser objeto de compra e venda, tanto quanto não o pode a água, o ar, os raios do sol. Todos os homens têm igual direito à terra e a todos os bens que ela produz.”

Os magistrados atualmente não são mais que funcionários, preocupados unicamente com os seus vencimentos. Se percebem determinado salário, desejam outro mais alto: e nisso se resumem os seus princípios. Depois então ficam prontos para acusar, julgar ou condenar a quem o senhor quiser!

Desde a estada no campo, Nekhludov ficou penetrado de profunda aversão pela sociedade de que, até então, fizera parte. Não podia afastar de si o pensamento de que milhões de seres humanos sofriam para o bem-estar e o divertimento dessa sociedade, sofrimento esse que a mesma sociedade não via.

O conde Ivan Mikailovitch Tcharsky era homem de profundas convicções. Estava convencido de que, assim como o pássaro se cobre de penas, come vermes e voa no espaço, ele, naturalmente, devia alimentar-se dos manjares mais delicados, vestir-se do mais elegante, locomover-se nas mais finas carruagens atreladas com os mais velozes corcéis. Tinha ainda outra convicção: estava certo de que, quanto mais dinheiro do Erário público recebesse, tanto maior seria o número de decorações e títulos, assim como seria mais bem recebido na intimidade das pessoas de classe superior à sua, o que era melhor para ele e para todo o universo. Devemos acrescentar, ainda, que, em todas as suas opiniões, preocupava-se unicamente em satisfazer o desejo dos superiores, sem inquietar-se jamais com as consequências sobre o bem da Rússia ou da humanidade. Ao ser nomeado ministro, todos os seus subordinados e a maior parte das pessoas que o conheciam, e ele mesmo mais do que os outros, tiveram a certeza de que se revelaria um político notável.

São Petersburgo dava-lhe novamente a impressão debilitante e entorpecente que experimentava antigamente. Havia tanta limpeza, comodidade, sentia-se tal ausência de escrúpulos intelectuais e morais que a vida parecia mais leve do que em outro lugar.

Possuía enorme quantidade de condecorações, cujas insígnias desdenhava de usar, com exceção de uma pequena cruz branca, que prendia à lapela. Ganhara essa cruz no Cáucaso, onde forçara jovens camponeses russos sob o seu comando a matar milhares de nativos que defendiam sua liberdade, suas casas e suas famílias. Apreciara com severidade extrema a conduta de alguns destes funcionários que, segundo sua expressão, o tinham impedido de salvar a Rússia da ruína, o que significava, simplesmente, que o tinham impedido de receber salário mais gordo.

Movido pelas necessidades da vida, tomou a resolução de afastar e esquecer todos os motivos que outrora lhe haviam desviado da sua crença na santidade da religião ortodoxa. Deixou de ler Voltaire, Schopenhauer, Spencer e Augusto Comte, para entregar-se à leitura dos princípios filosóficos de Hegel e das doutrinas religiosas de Vinet. Encontrou então o que tanto procurava: uma pseudojustificação para doutrina religiosa de que durante tanto tempo sua razão o conservara afastado, mas sem a qual toda a sua vida teria sido uma luta contínua.

Segundo o advogado, eram inúmeras as ladroeiras cometidas por tais e tais pessoas que, longe de estar na cadeia, continuavam a encher posições de destaque.

— Para os moços, a prisão celular é qualquer coisa de terrível — disse a tia, acendendo um cigarro.
— Creio que é para todo o mundo — respondeu Nekhludov.
— Não, nem sempre. Para os verdadeiros revolucionários, muitos já me disseram, a prisão representa o repouso, a segurança. Vivendo angustiados, sofrendo privações, temem ao mesmo tempo por si, pelos outros e pela causa. Quando um belo dia são presos, tudo está acabado: cessam as responsabilidades, nada mais têm a fazer senão deitar e descansar. Conheço até alguns que, ao serem presos, sentiram verdadeira alegria.

Representava-se a eterna Dama das Camélias, em que famosa atriz francesa tinha ocasião de mostrar ao público, mais uma vez, como devem morrer as mulheres tuberculosas.

Compreendia que as coisas tidas na conta de boas ou importantes não passavam do nada e da vergonha; e que o esplendor e o luxo da vida moderna recobriam vícios velhos como o mundo, vícios originados no fundo mais genuinamente bestial da natureza humana.

Lembrava-se de uma frase do escritor americano Thoreau afirmando que, num país onde reinasse a escravidão, o único lugar que convinha ao homem honesto era a prisão.

A totalidade dos presos, chamados “criminosos”, podia ser classificada em cinco espécies. Pertenciam à primeira espécie os detidos completamente inocentes, vítimas de erros judiciais, tais como o suposto incendiário Menchov, Maslova e outros. A segunda espécie abrangia os homens condenados por crimes praticados em circunstâncias excepcionais, tais como a raiva, o ciúme, a embriaguez, crimes estes que os juízes, nas mesmas circunstâncias, provavelmente teriam também cometido. No terceiro grupo achavam-se os indivíduos condenados por atos que eles não consideravam criminosos, mas que, na opinião dos homens encarregados de redigir e aplicar as leis, passavam por crimes. A quarta classe de criminosos compreendia os que haviam sido condenados simplesmente porque o seu valor moral era superior ao da média da sociedade. Entre estes se achavam presos políticos, julgados por insubordinação à autoridade constituída. Finalmente, a quinta categoria formava-se de homens perante os quais a sociedade era mais culpada do que eles perante ela. Eram homens abandonados por ela, embrutecidos com a opressão incessante, pelas condições de vida, foram por assim dizer sistematicamente impelidos a cometerem atos considerados criminosos. Muitos ladrões e assassinos que pertenciam a esta categoria. Não passavam também de desgraçados, menos responsáveis para com a sociedade do que esta para com eles, havia muitos cujo embrutecimento e crueldade lhe inspiravam repugnância. Todavia, nem mesmo entre estes conseguiu ele reconhecer o famoso “tipo criminal”, via apenas seres que lhes eram pessoalmente antipáticos, semelhantes a muitas outras pessoas que tivera ocasião de encontrar não nas prisões, mas nos salões, em traje de rigor, uniforme de gala ou com vestido de renda. Tais eram as diferentes espécies de homens que constituíam a massa dos criminosos. Por que motivo se prendia e torturava por todos os meios a estes homens enquanto que a outros, parecidos com eles e às vezes até inferiores a alguns, se deixava em liberdade? Teve esperanças de encontrar respostas nos livros, e comprou todas as obras que tratavam do assunto. Mas a leitura só lhe valeu amargas decepções. A ciência que estudava respondia a mil questões diversas, extremamente sutis e sábias, mas à questão que o interessava não dava resposta. Ele perguntava-se como e com que direito alguns homens aprisionavam, torturavam, exilavam, batiam e executavam outros homens, quando eles mesmos eram semelhantes àqueles a quem torturavam, batiam e matavam. Mas, em vez de responder a esta questão, os criminologistas consultados indagavam uns, se a vontade humana seria livre ou não, outros, se um homem poderia ser declarado criminoso, simplesmente pela forma do crânio, e ainda outros, se o instinto da imitação não teria papel importante na criminalidade. Indagavam o que é a moralidade, a degenerescência, o temperamento, a sociedade e assim por diante. Estudavam também a influência exercida pelo clima, a alimentação, a ignorância, o hipnotismo, a paixão etc., sobre a criminalidade. Todos estes trabalhos lembravam a Nekhludov a resposta de um garoto que voltava da escola. Nekhludov perguntou-lhe se sabia soletrar: “Claro que sei”, respondeu a criança. “Então soletre ‘focinho’.” “Mas que focinho? Focinho de cachorro ou de boi?”, replicou o menino, com ar entendido. Era assim que os autores consultados por Nekhludov respondiam à única questão que o interessava.

Era a troca misteriosa de olhares, em que as almas se refletem em toda a sua verdade; mas, logo depois, ao olhar mútuo de penetração sucedeu a troca de palavras, em que não havia mais sinceridade.

— Perdão! Todo ladrão sabe que o roubo não é boa ação; que ele não deve roubar, que roubar é um ato imoral!
— Absolutamente! Ele não cogita isso. Dizem-lhe que não roube, mas ele vê o patrão roubar-lhe o trabalho, os fiscais roubar-lhe o dinheiro...
— Saiba que isso é simplesmente anarquismo!
— Pouco importa o nome das minhas ideias, mas a verdade é essa.
— Não o compreendo, ou antes, se o compreendo, sinto muito não concordar. A terra forçosamente deve pertencer a um dono. Se hoje se divide em partes iguais, amanhã reverterá de novo aos mais laboriosos e mais favorecidos.
— Ninguém está falando em dividir a terra em partes iguais. A terra não deve pertencer a pessoa alguma, nem ser objeto de compra e venda.
— O direito de propriedade é natural ao homem. Sem ele ninguém cultivaria de bom grado a terra. Suprima-se esse direito e a civilização voltará à barbaria — declarou Inácio Nicephorovitch, com superioridade.
— Mas justamente o contrário é que é verdade. Só então a terra deixaria de ser inútil, como acontece em nossos dias.

— Que queria então que fizessem? — perguntou Nekhludov.
— Ora, que o matador de Kamensky fosse condenado aos trabalhos forçados como um assassino vulgar!
— Qual seria a vantagem?
— Seria justo!
— Como se a organização judiciária hoje em dia tivesse alguma coisa a ver com a justiça — disse Nekhludov.
— Na sua opinião, qual, pois, é o seu objetivo?
— Para mim o seu objeto é manter uma ordem de coisas favoráveis a certa classe social.
— E também não posso admitir sua opinião de que o fim dos tribunais seja manter o atual estado das coisas. Eles têm um duplo fim: o primeiro, de corrigir... O segundo, de insultar indivíduos depravados e embrutecidos, constante ameaça para a vida coletiva.
— E eu sustento que os tribunais não preenchem nenhum desses objetivos! Agarrar-se um homem já depravado pela preguiça e pelo mau exemplo e encerrá-lo na prisão, onde a preguiça se torna obrigatória e os maus exemplos o abraçam por todos os lados, tem isso sentido? O que não impede, mesmo com as prisões, que se garanta proteção à sociedade; porque os presos, cedo ou tarde, são soltos; e o regime a que são submetidos tem a virtude de torná-los mais perigosos.

“Assassinos! Assassinos!”, “Porém o mais revoltante”, refletia ele, “é que ninguém poderá saber quem os matou. Eles foram conduzidos à estação, assim como os outros prisioneiros. O diretor também nada mais fez que executar ordens superiores; ordenaram-lhe que fosse buscar os prisioneiros em certo lugar e os conduzisse para outro; foi o que fez, do melhor modo possível. Ninguém é culpado; entretanto, os infelizes foram mortos, e mortos por esses mesmos homens que não são culpados de sua morte. Todos esses homens, governadores, diretores, oficiais e soldados de polícia, todos julgam existir na vida situações em que não é obrigatória a relação direta de homem para homem. Pois que, se todos esses homens, não fossem funcionários, teriam a ideia de que não era possível pôr em marcha a leva de prisioneiros com um calor daqueles; teriam mostrado compaixão. Mas eles não fizeram nada disso, porque não viam diante de si os homens, mas somente o seu serviço, esses funcionários, na maior parte homens bons e inofensivos, se transformaram em homens maus.”

Acreditam existir situações em que se poderia agir sem amor para com os seus semelhantes, e tais situações não existem; daí o mal. Sem dúvida, ninguém pode ser obrigado a amar, como não pode ser brigado a trabalhar; mas disso não resulta que alguém possa agir sem amor aos outros. O ser humano que não sente amor pelos semelhantes, então cuida de si, das coisas inanimadas, de tudo que lhe agradar, exceto dos homens.

Todo homem vive e age seguindo em parte as próprias ideias, em parte levado pelas ideias dos outros. E uma das principais diferenças entre os indivíduos consiste na proporção das ideias próprias para com as alheias, nas quais se inspirem.




Nos tempos de guerra, os soldados e oficiais se sentem autorizados pela opinião geral a cometer atos que em tempos de paz são considerados criminosos.



Conhecendo-os de perto, Nekhludov convenceu-se de que não eram nem malfeitores perigosos, como acreditavam alguns, nem heróis perfeitos, como imaginavam outros, mas simplesmente seres humanos; uns bons, outros maus, e, na maior parte, medíocres.



Dizia a Nekhludov que, se lhe dessem uma segunda vida, dedicá-la-ia igualmente a esse fim: destruir uma ordem de coisas que permitia tanta injustiça e crueldade.



— Estou apenas dizendo que conheço o caminho que o povo deve seguir para desenvolver-se e que posso indicar-lhe tal caminho.

— Mas quem permite afirmar que seja esse o bom caminho? Não seria em nome dos mesmos princípios que serviram para organizar a Inquisição? Não seria em nome dos mesmos princípios que a Revolução Francesa cometeu seus crimes? Ela também julgava ter encontrado na ciência a indicação do único caminho a seguir.



Uma coisa é saber-se que, num lugar longínquo, certos homens fazem tudo para torturar outros, infligindo-lhes toda variedade de sofrimento e humilhação; outra coisa é assistir, durante três meses, às cenas dessa tortura. Vinte vezes, nesses três meses, interrogara a si mesmo: “Enlouqueci e vejo coisas que os outros não veem; ou estarão loucos os homens que fazem e toleram as coisas que eu vejo?”



Nekhludov era de opinião que todos esses homens, nas prisões, acampamentos e galés, submetiam-se a uma série de humilhações — grilhões, algemas, cabelos raspados, uniforme da prisão — que não tinham outro objetivo além de destruir neles aquilo que para a maioria dos homens constitui os principais móveis da vida moral, isto é, o interesse pelo respeito dos outros homens, a vergonha, o senso da dignidade humana.



Todas as coisas eram permitidas contra homens privados de liberdade e sujeitos à mais extrema miséria. Chegaria ao mesmo estado de perversão em que se encontraram, depois de séculos de corrupção moral, os intelectuais que glorificavam e pregavam as doutrinas de Nietzsche.



Para ele o mal não dependia da influência do número de prisões ou de determinado defeito de organização. A experiência provava que esse mal crescia de ano para ano, apesar do pretenso progresso da civilização. Não podia ler, sem repugnância e inquietação, as descrições das prisões modelo, sonhadas pelos sociólogos, em que a iluminação, o aquecimento, a alimentação e até as punições e execuções seriam feitos à eletricidade.



À medida que observava de perto as prisões e os acampamentos, Nekhludov compreendia que os vícios espalhados entre os presos, a embriaguez, o jogo, a violência, a impudicícia, não eram a manifestação do pretenso “tipo criminal”, inventado pelos sábios ao serviço da autoridade, mas sim a consequência direta da aberração monstruosa, mercê da qual certos homens se arrogaram o direito de julgar e punir outros homens.



O dever dos homens é ganhar o pão com o suor do rosto; e ele, o Anticristo, tranca-os, alimenta-os sem trabalharem, como porcos e para que se tornem porcos.

— A lei! — exclamou com desprezo. — Pode falar em lei. Eles começaram por tomar a terra, despojaram o homem de toda a sua riqueza; suprimiram os que lhes resistiam; depois escreveram a lei, para dizer que não se deve matar nem roubar! Pode estar certo de que eles não a escreveriam antes, a sua lei!



Compreendeu que o terrível mal presenciado nas prisões e nos comboios, e que a segurança tranquila daqueles que produziam ou toleravam esse mal, provinham unicamente de uma coisa muito simples. Eram homens maus, pretendendo corrigir o mal. Eram homens viciados, empreendendo corrigir o vício. Ora, sendo viciados, só podiam propagar o vício em vez de corrigi-lo; sendo corrompidos, só podiam espalhar a própria corrupção.



A objeção comum, de indagar o que se devia fazer com os ladrões e assassinos, há muito tempo não tinha para ele o menor sentido. Com efeito, tal objeção teria um sentido, se os castigos tivessem diminuído o número de crimes ou corrigido os criminosos; mas a experiência lhe provava que acontecia justamente o contrário. Depois de tantos séculos de encarniçada perseguição ao crime, conseguiram os homens suprimi-lo ou, mesmo, atenuá-lo? Longe de suprimir, longe de atenuar, contribuíram ativamente para o desenvolver, tanto depravando os prisioneiros pelas condenações, como acrescentando à soma dos crimes dos condenados — crimes de ladrões e assassinos — os seus próprios crimes, os crimes desses criminosos que são os conselheiros do tribunal, procuradores, carrascos, juízes de instrução, policiais e comitres.

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