EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - À sombra das moças em flor



EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Marcel Proust

À SOMBRA DAS MOÇAS EM FLOR

Os “emboras” e os “enquanto” são sempre “porquês” mal conhecidos. – 359

Poucas pessoas compreendem o caráter puramente subjetivo do fenômeno que é o amor, e a espécie de criação, que ele faz, de uma pessoa suplementar, distinta da que usa o mesmo nome na sociedade e a maioria de cujos elementos são tirados de nós próprios. – 382

Apenas, as imagens que um tal casamento por interesse representa ao interessado, como todas as imagens, precisam, para não desaparecer e se apagar de todo, ser alimentada de fora. – 383

Teoricamente, sabe-se que a Terra gira, mas de fato não nos apercebemos disso, o chão sobre o qual caminhamos parece não se mexer e vivemos tranquilos. O mesmo ocorre com o tempo na vida. – 393

Esforçava-se por discernir e amar, nessa gente, as qualidades que todo ser humano revela se é examinado com predisposição favorável e não com o desgosto dos exigentes. – 418

Só as pessoas incapazes de decompor, em sua percepção, o que à primeira vista parece indivisível é que creem que a posição forma um só corpo com a pessoa. – 418

Isto não impede que cada vez que a sociedade está momentaneamente imóvel, algumas pessoas que nela vivem pensem que nunca mais haverá qualquer mudança, de modo que, tendo visto os começos do telefone, não queiram acreditar no aeroplano. – 420

Os homens, não mudando de um dia para o outro, buscam sob um regime novo a continuação do antigo. – 422

Toda precaução desprezível para evitar os falsos julgamentos é inútil, eles não podem ser evitados. – 431

Foram os próprios quartetos de Beethoven que levaram cinquenta anos para fazer nascer e crescer o público dos quartetos de Beethoven. O que denominamos posteridade, é a posteridade da obra. É necessário que a obra crie ela mesma a sua posteridade. – 431

Sem dúvida, os nomes são desenhistas fantasiosos que nos dão, de pessoas e países, esboços tão pouco parecidos que muitas vezes sentimos uma espécie de assombro quando temos ante nós, em vez do mundo imaginado, o mundo visível (que, aliás, não é o mundo verdadeiro). – 444

Ao me permitirem acrescentar à beleza das mulheres o elemento que não podemos inventar, que não passa do resumo das belezas antigas, o presente verdadeiramente divino, o único que não poderíamos receber de nós mesmos, diante do qual expiram todas as criações lógicas da nossa inteligência e que só podemos pedir à realidade: um encanto individual. – 465

Para bem compreender o quanto uma velha pode ter sido bonita, não basta olhar mas traduzir cada feição. – 558

Quanto às belas moças que passavam, desde o dia em que soubera que suas faces podiam ser beijadas, tornara-me curioso acerca de suas almas. E o universo me parecera crescer de interesse. – 569

Se não fosse o hábito, a vida deveria parecer deliciosa às pessoas que estivessem ameaçadas de morrer a todo instante – ou seja, a toda a humanidade. – 570

A beleza é uma sequência de hipóteses, e a feiura a reduz, barrando o caminho que já víamos abrir-se para o desconhecido. – 570

A adolescência é a única época da vida em que aprendemos algo. – 583

Tão implacável, destituído desse vago respeito que se tem pelos direitos das outras criaturas, mesmo que elas não conheçam a nossa tia, e em virtude do qual minha atitude não era absolutamente a mesma diante de uma velha dama e diante de um bico de gás. – 583

Convencia-me facilmente que deveria estar feliz por isso, desejando com vivo ardor que semelhante felicidade jamais me fosse arrebatada porque não a sentia de fato. – 588

Pelo menos por prudência a gente deveria falar de si mesmo, pois certamente este é um assunto em que podemos estar seguros de que o nosso ponto de vista e o dos outros jamais coincidirão. – 593

Para cada um de nós há um deus especial que nos oculta ou promete a invisibilidade do nosso defeito. – 594

A fotografia ganha um pouco da dignidade que lhe falta quando deixa de ser reprodução da realidade e nos mostra coisas que já não existem. – 610

Seja pelo enriquecimento e o lazer, seja pelos novos hábitos esportivos, espalhados até em certos ambientes populares, e de uma cultura física que ainda não viera ajuntar-se a da inteligência. – 630

Não exibiam nenhuma afetação de desprezo; seu desprezo sincero era bastante. – 630

Se imaginássemos que os olhos de uma certa moça não passam de brilhantes bolinhas de gude, não ficaríamos ávidos de conhecer e de unir à nossa a sua vida. Porém sentimos que o que reluz nesse disco refletor não é devido apenas à sua composição material; são, desconhecidas de nós, as negras sombras das ideias que aquela criatura tem relativamente às pessoas e aos lugares que conhece, e também as sombras da casa para onde vai voltar, dos projetos que forma ou que formaram por ela; e principalmente que é ela, com seus desejos, suas simpatias, suas repulsas, sua obscura e incessante vontade. Sabia que não haveria de possuir essa ciclista morena se também não possuísse o que havia em seus olhos. E, portanto, era toda a sua vida que me inspirava desejo. – 632

Oferecidas na casa de uma dessas alcoviteiras que, aliás, eu não desprezava, como já vimos, retiradas do elemento que lhes proporcionava tantos matizes e incertezas, essas moças teriam me encantado menos. É preciso que a imaginação, despertada pela insegurança de poder atingir seu objetivo, crie uma finalidade que nos esconda a outra, e, substituindo o prazer sensual pela ideia de penetrar numa vida, nos impeça de reconhecer semelhante prazer, de experimentar seu legítimo sabor, de restringi-lo a seus limites. – 634


Nem entre as atrizes, entre as camponesas, ou entre as moças do pensionato religioso, eu vira nada tão belo, impregnado de tanto desconhecido, tão inestimavelmente precioso, tão verossimilmente inacessível. – 635

Semelhante a um bosquezinho de rosas da Pensilvânia, ornamento de um jardim sobre o penhasco, entre as quais cabe todo o trajeto do oceano percorrido por um vapor, tão lento em deslizar sobre o traçado horizontal e azul que vai de um a outro caule, que uma borboleta preguiçosa, atrasada no fundo da corola que o casco do navio há muito ultrapassou, pode esperar, para alçar voo, estando certa de que chegará antes do navio, que somente um pedaço azulado separe ainda a proa deste da primeira pétala da flor para qual ele navega. – 635

Vivia no isolamento, com uma selvageria que as pessoas da sociedade denominavam pose e má educação, os poderes públicos falta de espírito de cooperação, seus vizinhos loucura, e sua família egoísmo e orgulho. – 658

Uma sociedade rejuvenescedora onde reinavam a saúde a inconsciência, a volúpia, a crueldade, a inintelectualidade e a alegria. – 659

Antes de pintar se fazia ignorante, esquecia tudo por probidade, pois aquilo que sabemos não é da gente. – 667

Com os prazeres, ocorre o mesmo que com as fotografias. O que colhemos na presença da pessoa amada não passa de um clichê negativo que revelamos depois, logo que estivermos em casa, quando temos à nossa disposição essa câmara escura interior cuja entrada é “proibida” enquanto há gente à vista. – 690

Agora tinha a impressão absoluta de que ela devia ser leviana. – 698

Sentia-me embaraçado diante de alguns olhares seus, de certos sorrisos. Podiam significar costumes fáceis, mas também a alegria meio boba de uma moça brincalhona, mas no fundo honesta. – 698

Os rostos humanos não parecem mudar no momento em que os olhamos, pois a revolução que cumprem é muito lenta para que a percebamos. Mas bastaria ver, ao lado dessas moças, sua mãe ou sua tia, para avaliar a distância que, sob a atração interna de um tipo em geral horrendo, essas feições teriam atravessado em menos de trinta anos, até a hora do declínio dos olhares, até o momento em que o rosto, tendo ultrapassado a linha do horizonte, já não recebe luz. – 705

E talvez, enquanto umas nos parecem o resultado de uma deliberação e as outras a consequência de um descuido na nossa higiene, herdamos da nossa família, como as papilionáceas a forma de sua semente, tanto as ideia de que vivemos como a doença de que havemos de morrer. – 705

Como num viveiro onde as flores amadurecem em épocas diversas, eu as via, como velhas damas, naquela praia de Balbec, essas duras sementes, esses tubérculos macios, que minhas amigas um dia haveriam de ser. Mas que importava? Nesse momento era a estação das flores. – 705

Uma pessoa nunca se assemelha a um caminho reto, e nos assombra com seus desvios singulares e inevitáveis de que os outros não se apercebem, e por onde nos é penoso ter de passar. – 709

É que eu não tinha nada a dizer aos sanduíches de queijo e salada, iguaria nova e ignorante. Mas os doces eram instruídos, as tortas tagarelas. Nos primeiros havia velhos sabores de creme, e nas segundas frescores de frutas que muito sabiam acerca de Combray, de Gilberte, não só sobre a Gilberte de Combray, mas sobre a de Paris, em cujos lanches eu as havia encontrado. – 714

Vem tão depressa o momento em que já não temos o que esperar. – 715

Os traços do nosso rosto são quase só gestos tornados definitivos pelo hábito. Da mesma forma nossas entonações contêm nossa filosofia de vida, aquilo que a pessoa diz a si mesma a todo instante acerca das coisas. O indivíduo banha-se em algo mais geral que ele próprio. – 718

O rosto humano é verdadeiramente como o do deus de uma teogonia oriental, todo um cacho de fisionomias justapostas nos planos diferentes que não vemos ao mesmo tempo. – 723

O que se denomina lembrar uma criatura é na verdade esquecê-la. Cada criatura é destruída quando a deixamos de ver; depois, o seu aparecimento seguinte é uma nova criação. – 724

Inclinei-me para Albertine a fim de beijá-la. Ainda que a morte devesse me tocar naquele momento, isso me pareceria indiferente, ou melhor, impossível, pois a vida não estava fora de mim, estava em mim; eu teria sorrido com pena se um filósofo me externasse a ideia de que um dia, mesmo afastado, eu teria de morrer, que as forças eternas da natureza me sobreviveriam, as forças dessa natureza sob cujos pés divinos eu não passava de um grão de poeira; que, depois de mim, haveria ainda aquelas falésias arredondadas e arqueadas, aquele mar, aquele luar, aquele céu! Como seria possível isso, como poderia o mundo existir mais que eu, visto que eu não estava perdido nele, mas ele é que estava contido em mim, em mim que ele estava longe de preencher, em mim, onde, sentindo lugar para acumular tantos tesouros, eu jogava desdenhosamente para um canto, céu, mar e rochedos? – 736

Não quero dizer que uma moça possa fazer tudo e que não existe nada que seja imoral. Assim, olhe, essas relações de que você falava outro dia a respeito de uma menina que mora em Balbec e que existiriam entre ela e uma atriz, acho isso ignóbil, tão ignóbil que penso que são os inimigos dessa moça que inventaram tudo isso e que nada do que foi contado é verdade. – 742

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