EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - No caminho de Swann


EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO
Marcel Proust

NO CAMINHO DE SWANN

O sr. Swann pai tinha sido corretor; o “filho Swann” deveria, portanto, fazer parte a vida inteira de uma casta em que as fortunas, como numa certa categoria de contribuintes, variavam entre tal e tal renda. Sabia-se quais tinham sido as relações de seu pai, sabia-se, desse modo, quais seriam as suas, que espécie de pessoas estaria “em condições” de frequentar. – 33

Mesmo do ponto de vista das coisas mais insignificantes da vida nós não somos um todo materialmente constituído, idêntico para todas as pessoas, nossa personalidade social é uma criação do pensamento alheio. – 35

Mas estou fazendo você perder seu tempo, minha filha.
– Ora, não, sra. Octave. Meu tempo não é assim tão caro. Quem fez o tempo não o vendeu para a gente. Só vou ver se o fogo não se apagou. – 63

A fisionomia antipática e sublime da verdadeira bondade. – 84

A engenhosidade do primeiro romancista consistiu em compreender que, no aparelho das nossas emoções, sendo a imagem o único elemento essencial, a simplificação que consistia em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. – 85

A gente tem sempre a sensação de estar rodeado pela própria alma. – 87

Somos muito vagarosos para reconhecer no aspecto particular de um novo escritor o modelo que leva o nome de “grande talento” em nosso museu de ideias gerais. Dizemos de preferência originalidade, encanto, delicadeza, vigor; e depois um dia percebemos que tudo aquilo junto é justamente o talento. – 97

Desfrutava suficientemente de tudo o que minha tia possuía, sabendo que as riquezas da patroa ao mesmo tempo elevam e embelezam sua criada aos olhos de todos. – 103

Não existe talvez uma só pessoa, por maior que seja a sua virtude, que a complexidade das circunstâncias não possa levar a viver um dia na intimidade do vício que condena de maneira mais formal. – 135

Situações que é um erro se considere como predicado exclusivo do mundo da boêmia: são produzidas sempre que há necessidade de um vício buscar o local e a segurança precisos, um vício que a própria natureza faz desabrochar uma criança. – 135

Os fatos não penetram no mundo em que vivem nossas crenças, não as fizeram nascer, não as destroem. Um aluvião de desgraças ou de doenças, sucedendo-se ininterruptamente numa família, não a fará duvidar de generosidade de seu Deus. – 135

Talvez não pensasse que o mal fosse um estado tão incomum, tão extraordinário, tão exilante, para onde fosse tão tranquilo emigrar, se pudesse discernir em si mesma, como em todos os outros, a indiferença pelos sofrimentos que causamos e que, mesmo com os mais diversos nomes que se lhe deem, é a forma terrível e constante da crueldade. – 148

A realidade só se forma na memória. – 163

Referir ao ato de posse sexual – no qual, aliás, não se possui nada. – 201

De hábito, os seres são tão indiferentes para nós que, quando conferimos a um deles tamanhas possibilidades de dor e de alegria, este parece-nos pertencer a outro universo. – 203

E na verdade acontece muitas vezes, com pessoas mais importantes que Swann, com um sábio, com um artista, quando é apreciado pelos que o rodeiam, que o sentimento que prova que a superioridade de sua inteligência se impôs a eles, não é a admiração a admiração por suas ideias, pois estas lhes fogem, e sim o respeito por sua bondade. – 207

Swann pensava (pelo menos havia pensado durante tanto tempo que ainda o afirmava) que os objetos de nossos gostos não têm em si mesmo um valor absoluto, mas que tudo é uma questão de época, de classe, consistindo em modas, e as vulgares valem tanto quanto as que passam por serem as mais distintas. – 211

Desse grupo da princesa des Laumes, onde se convencionara que alguém é inteligente na medida em que duvida de tudo e onde só se achava o real e o incontestável nos gostos de cada um. – 236

Apesar de não entender o sentido daquele discurso, percebia que podia pertencer ao gênero comum da “lengalenga” e das cenas de recriminações ou de súplicas, sendo que a experiência que tinha dos homens lhe permitia, sem se ater aos detalhes das palavras, concluir que não as pronunciariam se não estivessem apaixonados, e que, no momento em que estavam apaixonados, era inútil obedecer-lhes, e ainda ficariam mais apaixonados depois. – 244

A FRASE (MÚSICA) DE VINTEUIL
Do livro: Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust

Mesmo quando não pensava na pequena frase, ela existia latente em seu espírito, na mesma condição de certas outras noções sem equivalente, como as noções de luz, de som, de relevo, de volúpia física, que são as ricas posses com que se diversifica e ganha expressão o nosso domínio interior. Talvez as percamos, talvez elas se apaguem, se volvermos ao nada. Mas enquanto vivermos, e assim como ocorre quanto a qualquer objeto real, não podemos fazer de conta que não as conhecemos, como não podemos, por exemplo, duvidar da luz da lâmpada que acendemos diante dos objetos metamorfoseados de nosso quarto, de onde se escapou até a lembrança da escuridão. Por esse fato, a frase de Vinteuil, como determinado tema do Tristão, por exemplo, que também nos representa uma certa aquisição sentimental, havia esposado nossa condição mortal, adquirido algo de humano que era bem tocante. Sua sorte estava ligada ao futuro, à realidade da nossa alma, de que ela era um dos ornatos mais particulares, mais bem diferenciados. Talvez esse nada é que seja verdadeiro, e todo o nosso sonho é inexistente, mas então sentimos que será necessário que semelhantes frases musicais, essas noções que existem, relativas a elas, também não sejam coisa alguma. Morreremos, mas temos como reféns essas prisioneiras divinas que seguirão nosso destino. E, com elas, a morte possui algo de menos amargo, de menos inglório, talvez até de menos provável. – 291

Lembras-te da ideia que eu tive a respeito de ti e da sra. Verdurin? Dize-me se era verdade, com ela ou com outra. – 300

Talvez há muito tempo, sem me dar conta do que estava fazendo, talvez duas ou três vezes. – 301

Queria que a coisa horrível que Odette lhe dissera ter feito “duas ou três vezes” não pudesse renovar-se. Mas, dizia-se Swann, como fazer para protegê-la? Podia talvez preservá-la de uma determinada mulher, mas havia centenas de outras.

A recordação de uma certa imagem não é mais que a saudade de um determinado instante; e as casas, os caminhos, as avenidas, infelizmente são fugitivos como os anos. – 350



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GÊNEROS LITERÁRIOS - Angélica Soares

O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS - Douglas Adams

DO GROTESCO E DO SUBLIME de Victor Hugo