A MONTANHA MÁGICA – Thomas Mann

 

O narrador, este mago que evoca o pretérito.

A Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o começo de tantas coisas que ainda mal deixaram de começar.

Realmente interessante só é aquilo que tem bases sólidas.

Tal qual o tempo, o espaço gera o olvido.

Acrescentou que, graças a Deus, gozava a mais perfeita saúde. – será? – perguntou o Dr. Krokowski, avançando a cabeça obliquamente, como para caçoar, enquanto o seu sorriso se acentuava. – Nesse caso o senhor é um fenômeno digno de ser estudado. Eu, pelo menos, ainda não encontrei um homem de perfeita saúde.

O pequeno Hans Castorp contemplava essa matéria lisa, cor de cera, de uma consistência caseosa, de que estava feita aquela figura morta de tamanho natural, com o rosto e as mãos do ex-avô.

O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos.

O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe deem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas, quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo, não obstante toda a agitação exterior, carece no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente, mas em todo caso se faz, a pergunta pelo sentido supremo, ultra-pessoal e absoluto, de toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.

Para um homem se dispor a empreender uma obra que ultrapassa a medida das absolutas necessidades, sem que a época saiba uma resposta satisfatória à pergunta “Para quê?”, é indispensável ou um isolamento moral e uma independência, como raras vezes se encontram e têm um quê heroico, ou então uma vitalidade muito robusta.

Que é o tempo, afinal? Percebemos o espaço com nossos sentidos, por meio da vista e do tato. Mas que órgão possuímos para perceber o tempo? Como é possível medir uma coisa da qual, no fundo, não sabemos nada? Para que o tempo fosse mensurável, seria preciso que decorresse de um modo uniforme; e quem lhe garante que é mesmo assim? Para a nossa consciência, não é. As nossas medidas, permita-me esta observação, não passam de convenções.

Parecia-lhe, em suma, que a honra oferecia consideráveis vantagens, mas que a vergonha não as tinha menores, e que as vantagens desta última eram quase ilimitadas.

Um jovem de talento não é uma folha em branco, senão uma folha sobre a qual tudo já foi escrito, com tinta simpática, por assim dizer, tudo, tanto o bem como o mal, e cumpre ao educador desenvolver decididamente o bem e apagar, mediante uma influência adequada, o mal que deseja manifestar-se...

Quando um dia é como todos, todos são como um só.

Desde os seus inícios, defendera a causa do homem, os interesses terrenos, a liberdade do pensamento e o prazer de viver, opinando que o céu, por motivos de equidade, pertencia aos pardais.

A doença faz o homem mais corporal, torna-o corpo e nada mais...

Quando alguém está deitado como eu, e olha as coisas de longe, sente-se horrorizado.

Começou outubro como costumam começar os meses.

Em face da paixão amorosa, o raciocínio estético consegue impor-se tão pouco quanto o raciocínio moral.

Não há nada mais doloroso do que ver como a nossa parte orgânica, a parte animal do nosso ser, nos impede de servir à razão.

A vida é essencialmente uma combustão das proteínas das células, donde provém esse agradável calor animal que às vezes é excessivo. Pois é, viver é morrer, nesse ponto não adianta dissimular.

A consciência de si mesma era, pois, uma simples função da matéria organizada em prol da vida, e numa fase mais elevada dirigia-se a função contra o seu próprio portador, convertia-se no desejo de pesquisar e explicar o fenômeno ao qual deu origem, na tendência esperançosa e desesperada da vida para se conhecer a si própria, na auto-investigação da natureza que sempre acaba sendo vã, visto a natureza não se poder resolver em conhecimento e a vida não ser capaz de contemplar os últimos segredos de si mesma.

Que era a vida? Ninguém sabia. Ninguém conhecia o ponto donde brotava a natureza, e no qual ela se acendia. A partir desse ponto, nada havia na vida que não estivesse motivado ou o estivesse apenas insuficientemente; mas a própria vida parecia não ter motivo.

O átomo era um sistema cósmico carregado de energia, e em cujo seio gravitavam planetas, numa rotação de espantosa rapidez, em torno de um centro semelhante ao sol, e cujo éter era percorrido, a uma velocidade só mensurável em anos-luz, por cometas mantidos nas suas órbitas excêntricas pela força do corpo central.

A cidade, o Estado, a comunidade social organizada segundo o princípio da divisão do trabalho não somente era comparável à vida orgânica, mas até a repetia exatamente.

Não seria lícito pensar que certos planetas do sistema solar atômico – esses enxames e essas vias-lácteas de sistemas solares que compunham a matéria –, que um e outro desses corpos celestes do mundo interior se encontravam numa condição semelhante àquela que fazia da Terra uma sede da vida?

A “pequenez” dos corpos celestes do mundo interior seria uma objeção pouco incisiva, já que a medida do que era grande ou pequeno se perdia o mais tardar no momento em que se evidenciava o caráter cósmico das partes “minúsculas” da matéria, e os conceitos de “exterior” e “interior” igualmente viam abalada a sua solidez.

No fundo íntimo e mais remoto do seu ser, talvez se encontrasse, ele mesmo, o jovem Hans Castorp, mais uma vez, mais cem vezes, bem agasalhado, num compartimento de sacada com vista sobre a noite glacial e enluarada dos Alpes, a estudar a vida do corpo, com os dedos enregelados e as faces ardentes, sob o impulso de um interesse médico e humanista.

A enfermidade era a forma licenciosa da vida. E a vida, por sua vez? Não passava ela, quiçá, de uma doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que se podia denominar de geração espontânea da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade, uma excrescência causada por uma irritação do imaterial?

Eis o que era o pecado original. A segunda geração espontânea, a criação do orgânico pelo inorgânico já não era mais do que uma intensificação maligna do progresso do corpo em direção à consciência, da mesma forma que a enfermidade do organismo era um exagero ébrio e um relevo indecente da sua natureza física.

Aproximava-se, pois, o Ano-Novo. Certo dia já estava iminente, e no seguinte tornou-se realidade...

Os olhos estavam fechados com uma firmeza pouco natural. “Não se fecharam, foram fechados”, pensou Hans Castorp. Chamava-se isso o último tributo, apesar de ser rendido antes em consideração aos vivos do que ao morto.

Desejaria um ambiente mais alegre, mais humano. Mas que quer dizer humano? Tudo é humano.

As pedras sepulcrais e as cruzes eram simples e demonstravam pouco aparato. No que toca às inscrições, os nomes eram das origens mais diversas: havia ingleses, russos ou ao menos eslavos, mas também alemães, portugueses e outros. As datas, porém, contavam uma história delicada; o intervalo que separava uma da outra era geralmente de extraordinária brevidade; o número de anos decorridos entre o nascimento e o exitus elevava-se, na média, a vinte ou pouco mais; muita juventude e pouca gente sisuda povoava o acampamento, um povo volúvel que viera aqui de todas as partes do mundo e se adaptara definitivamente à existência horizontal.

Que é o tempo? Um mistério: é imaterial e – onipotente. É uma condição do mundo exterior; é um movimento ligado e mesclado à existência dos corpos no espaço e à sua marcha. Mas deixaria de haver tempo se não houvesse movimento? Não haveria movimento sem o tempo? É inútil perguntar. É o tempo uma função do espaço? Ou vice-versa? Ou são ambos idênticos? Não adianta prosseguir perguntando. O tempo é ativo, tem caráter verbal, “traz consigo”. Que é que traz consigo? A transformação. O Agora não é o Então; o Aqui é diferente do Ali; pois entre ambos se intercala o movimento. Mas, visto ser circular e fechar-se sobre si mesmo o movimento pelo qual se mede o tempo, trata-se de um movimento e de uma transformação que quase poderiam ser qualificados de repouso e de imobilidade: o Então repete-se constantemente no Agora, e o Ali repete-se no Aqui. Como, por outro lado, nem sequer os mais desesperados esforços nos podem fazer imaginar um tempo finito ou um espaço limitado, decidimo-nos a configurar eternos e infinitos o tempo e o espaço, evidentemente na esperança de obter dessa forma um resultado, senão perfeito, ao menos melhor. Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e a sua redução aproximada a zero? É possível uma sucessão no eterno ou uma justaposição no infinito? São compatíveis com as hipóteses de emergência do eterno e do infinito, conceitos como os da distância, do movimento, da transformação, ou a simples existência de corpos limitados no Universo? Quantas perguntas improfícuas!

Bernardo de Clairvaux, por exemplo, ensinava uma hierarquia da perfeição bem diferente daquela com que sonha o Sr. Ludovico. Querem conhecê-la? A categoria mais baixa achava-se no “moinho”; a segunda, no “campo”, e a terceira, a mais louvável – tape os ouvidos, Settembrini! – no “leito do repouso”. O moinho é o símbolo da vida terrena, e me parece bem escolhido como tal. O campo designa a alma do homem leigo, que é amanhada pelo sacerdote e pelo diretor espiritual. Essa categoria já é mais digna. No leito, porém...

Lao-Tse ensina que o ócio é mais proveitoso do que qualquer outra coisa existente entre o céu e a terra. Se todos os homens cessassem de agir, haveria na terra a mais perfeita calma e felicidade.

A dizer verdade, e pensando bem, a cama, ou melhor, a espreguiçadeira me fez progredir bastante nos últimos dez meses e me proporcionou mais ideias do que o moinho, na planície, no curso de todos os anos passados. Isso não se pode negar.

– O monge! Aos monges deve-se a cultura do solo europeu. Graças a eles, a Alemanha, a França e a Itália deixaram de estar cobertas de mato virgem e de pântanos e nos fornecem trigo, frutas e vinho. Os monges, meu caro senhor, trabalharam, e trabalharam bastante... – Ebbè, pois então! – Perdão! O trabalho do religioso não tinha a sua finalidade em si, quer dizer, não era nenhum narcótico, nem tampouco se empenhava em fazer progredir o mundo ou em obter vantagens comerciais. Era um exercício puramente ascético, uma parte de disciplina expiatória, um meio para conseguir a salvação. Proporcionava uma proteção contra a carne e servia para exterminar a sensualidade. Seu caráter – permita que eu saliente isso – absolutamente não era social. Era o mais imaculado egoísmo religioso.

O zelo religioso naturalmente não pode ser pacifista, e o próprio Gregório disse: “Maldito seja o homem que impede a sua espada de derramar sangue!”

Declaravam que todos os ricos ora eram ladrões ora herdeiros de ladrões.

O proletariado retomou a obra de Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do Estado e das classes.

Se o solo é o único que alimenta, é também o único que pode outorgar a liberdade. Artífices e camponeses, por mais alto que seja o conceito de que gozam, se não possuem terras, são servos de quem as possui.

Um autêntico jesuíta! Quando digo “autêntico” estou dando margem àquilo que me preocupa, e que não posso deixar de observar. Eu pergunto: é ele realmente um jesuíta como os outros? Sei muito bem que o senhor pensa que não pode haver norma, quando se trata de pessoas que o Diabo abastece. Mas o que eu gostaria de saber é outra coisa, que se pode resumir na pergunta: “É ele autêntico como jesuíta?” É isso que me interessa. Naphta acaba de dizer uma porção de coisas – o senhor sabe a que me refiro – sobre o comunismo moderno e o zelo piedoso do proletariado, que não deve impedir as suas mãos de derramarem sangue. Numa palavra, ele disse coisas que não quero comentar; comparado com esse homem, o seu avô, com sua lança do cidadão, era um cordeirinho inocente; não me leve a mal essa expressão! E ele pode fazer isso? Tem a aprovação dos seus superiores?

Quero dizer que o mundo normalmente está organizado de maneira a corresponder às necessidades do homem e a estimular-lhe a alegria de viver; isso se deve admitir.

As nossas necessidades e os fatos básicos e gerais da natureza estão, graças a Deus, de acordo uns com os outros.

A ocupação com as matemáticas, digo eu, é o melhor remédio que existe contra a lascívia. O Promotor Paravant, que muito sofria da tentação, meteu-se a estudá-las. Anda às voltas com a quadratura do círculo e sente-se bastante aliviado.

E contra o animal atado e amordaçado, mas, não aturdido, o pai brandia a grande faca de schochet, abrindo-lhe um profundo talho à altura da vértebra cervical, enquanto o ajudante apanhava, em tigelas que se enchiam rapidamente, o sangue fumegante que brotava do corpo. O menino contemplava esse espetáculo com aquele olhar de criança, que muito além das aparências visíveis penetra até a sua essência.

O menino Leib percebia instintivamente que o método desses grosseiros goim era inspirado por uma bondade fácil e profana, e que dessa forma não se prestava ao ato sagrado a mesma honra que ele gozava em virtude do rigorismo solene do rito paterno. O conceito da devoção ligava se, no seu íntimo, ao da crueldade, assim como na sua imaginação o aspecto e o cheiro do sangue a jorrar acompanhavam a ideia do sagrado e do espiritual.

Se mostravam caridosos, não por compaixão, mas em prol da salvação da própria alma.

Uma reforma social coroada de êxito teria privado os afortunados do meio mais importante de que dispunham para justificar-se, e os outros, do seu estado sagrado. A manutenção constante da pobreza e da enfermidade realizou-se portanto no interesse de ambos os partidos, e esse conceito continuará sustentável enquanto for possível defender o ponto de vista puramente religioso.

O enfermo é justamente um enfermo, com a natureza particular e o modo de sentir modificado que a doença acarreta. Esta prepara a sua vítima com o fim de adaptá-la a si própria.

No que dizia respeito à pedagogia, o conceito da dignidade humana defendido por aqueles que queriam excluir os castigos corporais tinha, segundo Naphta, a sua raiz no individualismo liberal da época burguesa e humanitária, no absolutismo esclarecido do Eu, que estava a ponto de extinguir-se e de dar lugar a ideias sociais menos efeminadas, que já se achavam iminentes

Não, a morte nada tinha de fantasma nem de mistério; era, sim, fenômeno inequívoco, racional, fisiologicamente necessário e simpático. Perder um tempo excessivo com a sua contemplação seria roubar à vida o que lhe cabe.

Que pensavam os amigos da confissão arrancada por meio de tormentos? Ele, Ferdinand, sempre gostara de aproveitar, por ocasião das suas viagens comerciais, as oportunidades para visitar, nos centros de cultura antiga, aqueles recantos quietos onde outrora se realizara esse tipo de exploração da consciência. Conhecia as câmaras de tortura de Nuremberg e de Ratisbona, que estudara de perto no interesse da sua formação intelectual. Com efeito, por amor à alma o corpo fora ali submetido a um tratamento pouco delicado, empregando-se nisso processos muito engenhosos. E nem sequer houvera gritarias. A pêra, a famosa “pêra”, que não era nenhuma guloseima, costumava ser fincada na boca aberta, e logo reinava um silêncio absoluto, apesar da mais intensa atividade...

Quando o espírito se mostrava recalcitrante, não existia outro recurso senão o de apelar ao corpo, que era mais acessível. A tortura, como veículo da confissão indispensável, era imposta pela razão. Mas quem reclamara e introduzira o processo baseado na confissão era o Sr. Settembrini, e por conseguinte cabia-lhe também a responsabilidade pela tortura.

Não havia dúvida de que o seu interlocutor se equivocara. Aquela monstruosidade jurídica não podia ser derivada da razão, porquanto os seus alicerces jaziam na crença no inferno. Que eles lançassem um olhar aos museus e às câmaras de tortura. Isso bastava para perceber que aqueles métodos de beliscar, esticar, tostar e apertar com parafusos manifestamente haviam brotado de uma imaginação pueril e obcecada, do desejo de imitar piedosamente o que acontecia nos lugares do castigo eterno, lá no além.

Mas a pena de morte parecia imortal, era indispensável. Os povos mais civilizados conservavam-na. Os franceses tinham feito péssimas experiências com o seu sistema de deportações. Simplesmente não havia o que fazer, na prática, com certas criaturas antropoides, a não ser cortar-lhes a cabeça.

Acaba de ser fundada uma liga internacional com o objetivo da abolição da pena de morte em todos os países civilizados. Eu tenho a honra de fazer parte dela. Ainda não foi escolhido o lugar onde se realizará o seu primeiro congresso, mas a humanidade pode ter confiança em que os oradores que ali fizerem ouvir a sua voz hão de surgir munidos de argumentos.

bastava que estivesse em jogo uma única ideia que ultrapassasse a da “segurança”, qualquer coisa superpessoal, superindividual – o que era o único estado digno do homem e portanto o estado normal, num sentido superior – e imediatamente a vida individual não só era sacrificada, sem titubear, à ideia superior, mas também oferecida espontaneamente pelo próprio indivíduo.

A religião nada tem que ver com a razão e com a ética, uma vez que nada tem que ver com a vida.

Em realidade, porém, Deus e o Diabo eram uma e a mesma coisa, e ambos se opunham à vida, ao modo de viver burguês, à ética, à razão, à virtude, devido ao princípio religioso que juntos representavam.

Queria, no entanto, saber se não existiam pessoas, certas criaturas humanas, que era impossível imaginar como mortas, justamente por serem por demais ordinárias. Isso significava que pareciam a tal ponto feitas para a vida que davam a impressão de ser incapazes de morrer e indignas de receber a consagração da morte.

Isso já não era nevada, era um caos de trevas alvas.

Todo o interesse pela morte e pela doença não passa de uma forma de exprimir aquele que se tem pela vida.

É o filho enfermiço da vida, é o homem, com seu estado e sua posição.

Sonhei com a posição do homem e sua comunidade polida, sisuda e respeitosa, a cujas costas se passava, no interior do templo, a medonha ceia sangrenta.

O corpo triunfa, quer outra coisa que não a alma e se impõe, desmentindo aqueles arrogantes que nos ensinam que a alma reina sobre ele.

Pois o problema que eu estou ventilando é precisamente saber até que ponto está errado opor a alma ao corpo e até onde ambos estão em conluio e jogam uma partida cujo resultado combinaram de antemão.

– Senhor conselheiro, já sabe da última? – começou Hans Castorp.
– Sim, que as encrencas nunca acabam.

Toda palavra, até a mais antagônica, estabelece contato... Mas o mutismo isola.

Com efeito, a nossa morte é assunto dos sobreviventes, mais do que de nós próprios.

Enquanto existimos, não existe a morte, e quando ela existe, nós já deixamos de existir; por conseguinte, não há, entre nós e a morte, nenhuma relação real, e ela é uma coisa que para nós absolutamente não tem interesse e que, quando muito, afeta ao mundo e à natureza; motivo por que todas as criaturas a contemplam com grande calma, com indiferença, com certa ingenuidade egoística, e sem assumir responsabilidades.

Ninguém que voltasse da morte seria capaz de lhe contar coisas interessantes a seu respeito, uma vez que ela não se percebe. Saímos das trevas e entramos nas trevas. Entre elas há experiências, mas o começo e o fim, o nascimento e a morte não são coisas que notamos.

Em seguida se ergueu e chorou, deixando correr sobre as faces lágrimas como aquelas que tanto haviam ardido no rosto do oficial da marinha inglesa; esse líquido claro, que jorra neste mundo a toda hora e em toda parte, com tanta abundância e com tanta amargura que os poetas deram o seu nome ao “vale” terreno; esse produto alcalino e salgado das glândulas que o abalo dos nervos, causado por uma dor penetrante, arranca ao nosso corpo, e que, como Hans Castorp sabia, continha além disso traços de mucina e de albumina.

Pois a narrativa se parece com a música no sentido de que ambas dão um conteúdo ao tempo; “enchem-no de uma forma decente”, “assinalam-no” e fazem com que ele “tenha algum valor próprio” e que “nele aconteça alguma coisa”. O tempo é o elemento da narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como aos corpos no espaço. É também o elemento da música, que o mede e subdivide, carregando-o de interesse e tornando-o precioso. Há uma diferença entre a narrativa e a música. Nesta, o elemento do tempo é um só: um setor do tempo humano e terrestre que ela inunda para exaltá-lo e enobrecê-lo de modo indizível. A narrativa, porém, tem dois tipos de tempo: em primeiro lugar, o seu tempo próprio, o tempo efetivo, igual ao da música, o tempo que lhe determina o curso e a existência; e em segundo, o tempo do seu conteúdo, que é apresentado sob uma determinada perspectiva. Uma peça de música, denominada Valsa dos cinco minutos, dura cinco minutos; nisso, e em nada mais, consiste a sua relação com o tempo. Uma história, entretanto, cujo conteúdo abrangesse um lapso de cinco minutos poderia ter duração mil vezes maior.

Nada nos resguardaria de mergulharmos na mais profunda ignorância quanto ao curso do tempo, e de perdermos, por conseguinte, a noção da nossa idade. Esse fenômeno é possível, já que não temos no nosso interior um órgão para perceber o tempo, o que nos torna incapazes de avaliá-lo, em termos absolutos, pelas nossas próprias forças e sem nos basear em indícios exteriores.

Conversava com o barbeiro hábil e obsequioso, que se desincumbia da sua tarefa, depois de o tempo se ter desincumbido da sua.

Hans Castorp tornava a abrigar o relógio no bolsinho do colete e abandonava o tempo à sua própria sorte.

Era difícil distinguir o “agora” de hoje do de ontem, de anteontem, de três dias atrás, o presente já se mostrava inclinado e capaz de se confundir com aquele presente que existira havia um mês ou um ano, e de unir-se com ele para formar o “sempre”.

Seria fácil imaginar seres – os habitantes de um planeta menor que o nosso, por exemplo – que lidassem com um tempo em miniatura, e para cuja vida “curta” os saltinhos velozes do nosso ponteiro dos segundos representassem o mesmo que para nós a progressão lenta e tenaz do ponteiro das horas. Mas também seria possível idear criaturas a cujo espaço correspondesse um tempo que avançasse tão majestosamente que os conceitos de “há um instante”, de “em breve”, de “ontem” e de “amanhã”, adquirissem, para a sua experiência, um significado muito mais amplo.

De um lado a negativa, o culto do nada, e do outro o eterno “sim”, a inclinação afetuosa do espírito para a vida! Mas onde ficavam a vida, a chispa, a corrente, [...] isto era, para empregar o termo de Hans, nada mais nada menos que um mistério..

A personalidade – tinha-se essa impressão – carecia de caráter educador, e contudo, quantas oportunidades não oferecia a quem viajava em busca de formação!

A vaidade não possui grande envergadura, e a grandeza não é vaidosa.

Paixão é viver por amor à vida. Mas é coisa sabida que vocês vivem por amor à experiência. Paixão significa esquecer-se de si próprio. Mas tudo o que vocês desejam é enriquecer. C’est ça. E o senhor absolutamente não se dá conta de que isso constitui um egoísmo abominável que um dia fará de vocês os inimigos da humanidade?

Nem a própria pessoa sabe se vive por amor a si própria ou por amor à vida, e ninguém pode dizê-lo com precisão e com certeza. Eu acho que os limites são móveis. Existe uma abnegação egoística e um egoísmo abnegado...

Há dois caminhos que conduzem à vida: um é o caminho ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela morte, e este é o caminho genial.

Creio que o humano começa onde os homens sem gênio pensam que ele termina.

“muito mesquinho” e francamente hostil à vida, fazer, em matéria de amor, uma distinção “limpa” entre elementos piedosos e elementos passionais.

O amor não pode ser separado do corpo, nem sequer no auge da piedade, como não é ímpio nem nos momentos de carnalidade extrema. O amor continua sempre sendo ele mesmo, tanto sob a forma de conduta amistosa em face da vida, como sob a forma da mais sublime paixão; é a simpatia pela espera orgânica, o abraço comoventemente voluptuoso daquilo cujo destino é apodrecer.

As mulheres são criaturas reativas, sem iniciativa própria, criaturas indolentes, no sentido de passivas. A mulher, pelo que pude observar, considera-se, nos assuntos amorosos, em primeira linha como simples objeto; espera que os acontecimentos cheguem até ela; não escolhe livremente; só chega a escolher à base da escolha prévia do homem e mesmo então a liberdade da sua escolha é restrita e influenciada pelo fato de ela ter sido escolhida, a não ser que se trate de um espécime excessivamente mísero de homem; e nem essa condição vigora em todos os casos.

O homem é embriagado pelo seu próprio desejo; a mulher exige e espera ser embriagada pelo desejo dele.

– Pois ela é uma criatura genial – e aquele homem que vive lá além do Cáucaso – o senhor deve saber que ela tem um marido por lá – permite-lhe a liberdade, a genialidade, seja por embotamento, seja por inteligência. Não sei dizê-lo, porque não conheço aquele sujeito. Em todo caso anda acertado fazendo-lhe essa concessão, já que é a doença que a torna livre, o princípio genial da doença, ao qual ela está sujeita. E quem tiver ensejo de fazê-lo estará certo em imitar o exemplo dele, sem se queixar nem do passado nem do futuro...

Meus sentimentos por Clávdia Chauchat e o tratamento de “tu” que lhe dou no meu íntimo, como nunca deixei de fazer, desde que os olhos dela encontraram os meus pela primeira vez, enfeitiçando-me imediatamente. Enfeitiçando-me num sentido insensato, compreende? Por amor a ela, a despeito do Sr. Settembrini, sujeitei-me ao princípio oposto à razão, ao princípio genial da doença, ao qual talvez já tenha estado sujeito desde muito ou desde sempre.

Quando Clávdia partiu, esperei por ela, esperei sempre aqui em cima, de modo que estou perdido para a planície, que me considera morto.

Que instituição curiosa é essa de a carne cobiçar tão violentamente uma outra carne, só porque esta não é a própria, mas pertence à alma de outrem!

O desejo da carne espalha-se em todas as direções; não tem limites e não se fixa, e por isso o chamamos bestial. Mas quando se concentra numa única criatura, com um rosto humano, então os nossos lábios começam a falar de amor.

Hans Castorp não precisava forçar a sua imaginação para participar desse encanto e dessa gratidão. Mas, o que sentia, compreendia e gozava antes de mais nada, enquanto, com as mãos postas, olhava a portinhola negra de cujas fasquias partia toda essa beleza, era o alto e idealístico voo da música, da arte, da alma humana, o sublime e irrefutável embelezamento que esse idealismo outorgava aos horrores vulgares das coisas reais. Bastava visionar com os olhos da razão o que se passava nessa cena. Duas pessoas enterradas vivas, com os pulmões cheios de gases mefíticos, pereceriam juntas, ou, o que seria ainda pior, uma depois da outra, torcendo-se de fome; a seguir, a putrefação exerceria sobre os corpos os seus indescritíveis efeitos, até que no fundo da tumba repousassem dois esqueletos, cada um dos quais ficaria completamente indiferente e insensível à questão de saber se jazia ali sozinho ou acompanhado. Este era o aspecto realista e objetivo das coisas – um aspecto e uma coisa à parte, que o idealismo do coração nem sequer levava em conta, e que o espírito da beleza e da música ofuscava triunfalmente. Para as almas operísticas de Radamés e Aída não existia a realidade que os ameaçava. Suas vozes elevavam-se em uníssono até aquela jubilosa appoggiatura à oitava, afirmando que nesse momento se abria o céu, e que suas almas errantes voavam ao encontro dos raios do dia eterno. O poder consolador desse paliativo fazia bem ao ouvinte e contribuía muito para que esse número do seu programa predileto se lhe tornasse especialmente caro.

O que chamamos “luto” talvez não seja a dor que nos inflige a impossibilidade de ver os nossos mortos voltarem à vida, senão a outra, que experimentamos diante do fato de sermos incapazes de desejar tal coisa.

Declarava Naphta que a matéria era uma substância por demais imprestável para que o espírito pudesse completar-se numa habitação feita dela. Esforçar-se por conseguir isso não passava de tolice.

Justiça? Era ela uma ideia digna de adoração? Uma ideia divina? Uma ideia de primeira categoria? Deus e a natureza eram injustos, tinham favoritos, selecionavam segundo as suas simpatias, concediam perigosas distinções a um e preparavam a outro uma sorte fácil e banal.

Coitada da humanidade, que, em face de uma exposição ostensiva de cifras vazias, deixou que lhe impingissem o sentimento da sua própria nulidade e admitiu que a privassem do sentido patético da sua importância!

Mas devia-se admitir que o entusiasmo libertador tinha produzido os mais brilhantes adversários da liberdade.

Quando, na nossa função de educadores, semeamos a dúvida, uma dúvida mais profunda do que jamais imaginou o seu modesto espírito esclarecido, sabemos perfeitamente o que estamos fazendo.

Quem não é capaz de arriscar a vida, o braço, o sangue na defesa de um ideal não é digno dele.

Mas como? O espírito, por ser rigoroso, deveria conduzir, inexoravelmente, à bestialidade, à solução encontrada por meio da luta corporal? Hans Castorp revoltava-se contra essa concepção, ou melhor, tentava revoltar-se; e para maior espanto seu, verificava que também ele era incapaz de fazê-lo.

Levantou então a pistola de um modo que nada mais tinha em comum com um combate, e descarregou-a na própria cabeça.

Que cena trágica, inesquecível! Enquanto os cumes jogavam bolas com o ruído seco da sua façanha medonha, Naphta cambaleou ou precipitou-se alguns passos para trás, arremessando as pernas para o alto. Deu bruscamente meia-volta à direita e caiu com o rosto na neve.

Imaginava, na verdade, isto ou aquilo das sombras espirituais das coisas, mas não se preocupava com as próprias coisas, devido a uma tendência arrogante para tomar as sombras pelas coisas e para ver nestas apenas sombras.

Felicidade, Hans Castorp, enfermiço e cândido filho da vida! Tua história terminou: contamo-la até o fim. Ela não foi nem breve nem longa; é uma história hermética. Contamo-la por amor a ela e não a ti, pois tu eras simples. Mas, afinal, era tua essa história, e como ela te coube em sorte, deves ter certas qualidades. Não dissimulamos a simpatia pedagógica que, ao narrá-la, começamos a nutrir por ti, e que seria capaz de nos induzir a tocar delicadamente o canto de um olho com a ponta do dedo, ao pensar que nunca mais tornaremos a te ver nem ouvir.

Momentos houve em que, cheio de pressentimentos e absorto na tua obra de “rei”, viste brotar da morte e da luxúria carnal um sonho de amor. Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?

Finis operis

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