O DIA DO CURINGA - Jostein Gaarder


— As pessoas ficariam malucas se os astronautas descobrissem um outro planeta vivo — disse meu pai, para terminar.
— Pena que o seu próprio planeta não consiga tirá-las dos eixos...
No fundo ele já achava que todas as pessoas eram artificiais.

— O que ensinam para você na escola, Hans-Thomas? — perguntou meu pai.
— A ficar sentado na carteira sem perguntar nada — respondi. — E está aí uma coisa tão difícil que a gente precisa de anos para aprender.

Temos ministérios para tudo, mas não para a filosofia. E até os países grandes acham que podem dar conta de suas tarefas sem ela.

As estrelas são sábias, Albert. Para elas, tanto faz como escolhemos viver nossas vidas aqui na Terra.

Você nunca pensou em procurar uma outra mulher, em vez de passar metade da sua vida procurando aquela que também vive se procurando? — perguntei.

O fato é que você também é uma criatura de duas pernas que vive andando daqui para lá num globo que vagueia pelo universo. Exatamente como os marcianos.

Não é todo dia que a gente se descobre um habitante vivo de um planeta que não passa de uma ilhota no universo.

Ela é gorda demais para nós simplesmente a matarmos, Hans-Thomas. É tão grande que temos de vê-la como um indivíduo. E a gente não sai por aí matando as pessoas, mesmo quando a presença delas nos incomoda. [O personagem está falando de uma barata que entrou no quarto]

Eu gostaria tanto de pensar um pensamento que fosse tão difícil que eu não conseguisse pensá-lo.

Eu queria tanto acordar... mas já estou acordada.

— Você não está vendo que sou o Ás de Copas?
— Estou... é exatamente isso que me parece um tanto estranho.
— Por quê? — E você, quem é?
— Eu me chamo Hans.
— Você acha mais estranho ser Ás de Copas do que ser Hans?

A vida é uma loteria gigante, da qual só se veem os ganhadores...

Mas o acaso, por definição, é exatamente alguma coisa que acontece por puro acaso!

Se apenas um de meus antepassados tivesse morrido quando criança, ele ou ela não poderia ter sido meu antepassado.

A probabilidade de nenhum dos seus antepassados ter morrido ainda criança era uma para muitos bilhões.

— Todos, todos os seus antepassados cresceram e tiveram filhos em épocas que foram palco das mais terríveis catástrofes naturais e que, além do mais, possuíam índices assustadores de mortalidade infantil. O fato é que todos sempre sobreviveram às enfermidades. Assim, por muitas centenas de bilhões de vezes você esteve a um milímetro da morte. Sua vida neste planeta foi ameaçada por insetos e animais selvagens, meteoros e raios, doenças e guerras, enchentes e incêndios, envenenamentos e tentativas de assassinato. Só na guerra dos Trinta Anos você deve ter se ferido muitas centenas de vezes, pois você deve ter tido antepassados de ambos os lados. O mesmo vale para a Segunda Guerra Mundial. Todas as vezes que uma seta cortou os ares sibilando, as chances de você nascer foram reduzidas a um mínimo. Mas aí está você, Hans-Thomas, sentado bem ao meu lado e conversando comigo. Estou falando de uma única e longa cadeia de acasos. E essa cadeia pode ser acompanhada até chegarmos à primeira célula viva.
— E aqueles que tiveram azar? — perguntei.
— Eles não existem! A vida é uma loteria gigante, da qual só se veem os ganhadores. E é assim com todos os acasos.

Há um tipo raro de cegueira, que não nos permite enxergar o maior dos mistérios: o fato de que existe um mundo.

Como era possível fechar os olhos à vida neste planeta, ou então considerá-la “evidente”?

Ainda tive tempo de refletir um pouco sobre como é importante ter os olhos bem abertos para tudo, mas que não existe nada mais importante do que estar na companhia de alguém que a gente ama.

— Se nosso cérebro fosse tão simples a ponto de podermos entendê-lo seríamos tão tolos que continuaríamos sem entendê-lo. Podemos entender, por exemplo, como funciona o cérebro de uma minhoca. Pelo menos em grande parte. Mas a minhoca mesma não é capaz de entendê-lo. Seu cérebro é simples demais para tanto.
— Talvez exista um Deus que nos entende — disse eu.
— Sim, é possível — concordou. — Mas nesse caso ele seria tão terrivelmente complexo que seria difícil que conseguisse entender a si mesmo.

A história é como um grande conto de fadas. A única diferença entre os dois é que a história é de verdade.

Interessar-se pela questão de saber quem somos e de onde vem o mundo é um hobby tão raro que praticamente nos isola de todo o resto.

A falta de consciência acerca de sua própria condição é comum a todas as criaturas.

Se realmente existe um Deus, então ele adora ficar brincando de esconde-esconde com suas criações. Talvez ele tenha tido um choque quando viu o que tinha criado, então saiu rapidinho de cena.

Você sabe... é difícil dizer quem levou o susto maior, se Adão ou o Mestre.

Ele pelo menos poderia ter assinado rapidamente a sua obra-prima.

Não, Hans-Thomas, Deus está morto. E fomos nós que o matamos.

Chamamos de filósofo uma pessoa que busca a sabedoria. E não queremos dizer com isso que um filósofo seja uma pessoa especialmente sábia. Você entende a diferença?

[olhando] turistas que saíam aos montes dos ônibus estacionados lá embaixo. Se no meio de todas essas pessoas houver apenas uma que se surpreenda com a vida a cada instante e tenha a sensação, toda vez que isso acontece, de estar diante de algo fabuloso e enigmático... se apenas uma delas experimentar a vida como uma aventura fantástica... e se ele ou ela experimentar essa sensação todos os dias... Ele ou ela será um curinga no baralho.

— E quem somos nós, Hans-Thomas? Será que você pode me responder?
— Não faço a menor ideia — respondi, e me senti tão por fora nesse momento quanto Sócrates.

Não preciso de um castelo frio e abandonado para sair à caça de fantasmas. Eu mesmo sou um fantasma.

Quando a gente entende que não entende alguma coisa é que a gente está prestes a entender tudo...

Acho que somos cartas num monte e não conseguimos ver quem ou o que decide se vai nos virar sobre a mesa ou se vai nos deixar no monte.

— O que você diria se eu te contasse que fui eu quem criou você e também todos os outros
— Nesse caso eu não teria escolha, caro Mestre. Eu teria de tentar matá-lo para recuperar minha dignidade.

Todos eles são parte dessa natureza exuberante, mas não se dão conta disso.

Como você pode ter tanta certeza de que esses deuses não existiram mesmo? Acho que de alguma forma eles estiveram aqui na Terra enquanto as pessoas acreditaram neles. Acho que a gente vê aquilo em que acredita.

E quanto a nós, seres humanos, também nós não somos frutos vivos da imaginação de alguém?

Na Terra, a vida pulsa de forma desordenada, até que um belo dia nós somos modelados... com o mesmo e frágil material de nossos antepassados.

Por isso é que falamos dos “dentes da engrenagem do tempo”: o tempo mastiga, mastiga... e somos nós que estamos no meio de seus dentes.

Estamos vivos, ouviu bem? Mas só por esta vez podemos dizer, de braços abertos, que existimos.

Trazemos dentro de nós a noção de que tudo o que vemos à nossa volta poderia ser melhor do que é.

Pode ser que vocês tenham visto o sol, a lua e as estrelas no céu, e também tudo o que existe e se move sobre a terra... mas vocês nunca viram todas essas coisas como elas realmente são.

Elas estão tão preocupadas com sua aparência que não se dão conta de que vivem.

Sou mesmo uma marionete muito esquisita; mas todos vocês são tão esquisitos quanto eu. Só que vocês não conseguem ver isso por vocês mesmos.

“Mas isso é impossível!”, eu me dizia. “Tão impossível quanto o sol e a lua”, eu me respondia. Só que o sol e a lua também são verdadeiros.

“Bem-vindo a este mundo, meu pequeno amigo! Você tem realmente uma sorte incrível em poder nascer e viver!”.

Ouça o que digo: a gente nunca deve ter tanta certeza das coisas. Péssimo hábito esse.

O maior de todos os mistérios era o próprio mundo.

Quem quer entender o destino, tem de sobreviver a ele.

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