AS CONFISSÕES DE FREI ABÓBORA - José Mauro de Vasconcelos

 


Tão cheio de necessidades, tão cercado de distância, tão alimentado de fome...

Apesar de tudo, a vida tinha pequenas lâminas de ternura que cortavam menos doloridamente a condenação de ser vivo.

“Há gente que já nasce com a morte dentro dos olhos!”.

Levou o aipim frio, sebento, enrijecido, à boca e começou a mastigá-lo, tendo a impressão desagradável de que comia a vida velha das coisas.

Céu tão bonito, tão azul, tu que também começas por “c” e terminas por “u”, onde escondes no teu desperdício de uma sílaba, nessa enormidade, onde, onde... escondes Paula?

Como se a morte que descobrira em seus olhos o perseguisse feito a própria sombra.

“Viver é dor! Viver é dor!”

Quando a vida cansou-se de doer, oferecendo aos poucos a calma das horas doces da tarde, Ab criou novo alento. Era o momento em que as árvores ribeirinhas deixavam de ter folhas para se folhearem de penas.

Se você pensa que me fazendo sofrer assim me leva pro céu, está redondamente enganado. Pode ficar com toda a sua porcaria; eu troco tudo isso de bom gosto por um pedaço de carne ou um peixe frito comido na pá de um remo!...

Deus! Deus!... Você é o maior filho da puta que eu conheço! O maior de todos... o maior de todos... o maior de todos...

Deus respondeu na sua consciência: “Não será o último, meu caro Frei Abóbora. Não será o último”.
– Tá certo que não seja. Mas que mal eu fiz? Sair nessa canoa cretina dando um murro desgraçado, tratando de um bando de gente doente, vendo uma porção de aldeias abandonadas de tudo, sem remédio pra febre, meninos buchudos com diarreia, amarelos de bichas, e tanta coisa mais que Você devia ter sabido quando criou o mundo...

Depois, não adiantaria ficar discutindo com Deus, porque sempre Ele levava a melhor.

Se olhasse para o céu e indagasse sobre o conteúdo de sua imperecível angústia, se perguntasse à chuva, ao vento, à terra, à dor, ao desconforto, se perguntasse finalmente a tudo que existe onde estaria Paula, nenhum deles saberia responder.

Seus lábios murmuraram docemente:
– Paula... Paule... Paule... Toujours[1]... Paule Toujours... Pô...

Ainda havia mais dor pela frente, no horizonte, no futuro. Sem dor o homem não vive.

Tom [Tomás de Aquino], como o tratava na intimidade, era tão gordo que a mesa onde trabalhava possuía um buraco para que coubesse sua barrigona. Tom, tão gordo, e ele tão enfraquecido e faminto.

Olhou meigamente o céu que escondia Paula na beleza de toda a sua amplidão e engoliu em seco tanta maravilha.

Sabe, Deusão, Você é um sujeito formidável! Formidável mesmo. A gente precisa ter muita paciência às vezes com Você. Mas vá lá. Eu perdoo tudo. Não estou mais zangado. Eu perdoo Você de coração...
Deus, sentindo-se perdoado, estava contente da vida.
Frei Abóbora na sua canoa dura e Deus remando a solidão dos homens.

Perguntou a um dos conhecidos por Orlando [Vilas Boas]. Ele fez sinal dizendo que Orlando tinha viajado, estava longe.

Tem noites que o meu céu consiste em sonhar com um maravilhoso pedaço de goiabada Peixe, daqueles que dão arrepio no queixo de tão doce...

Fiquei quatro meses ou mais, nem me lembro, ajudando no reino da abóbora.

Sempre a mesma coisa. Só dia e noite. Noite e dia.

– Estou pra ver sujeito mais imoral do que você.
– Imoral, nunca. Sem moral, talvez. É fácil julgar os outros quando se tem tudo.

Baby, eu estou procurando você desde que a primeira estrela foi criada...

Ele queria ficar assim a vida inteira, sentindo aquele corpo sobre a sua vida.

– Você sabe, Baby, o que dizem os árabes?
– Que dizem eles?
– Que quando aparece um silêncio numa conversa, é porque passou um anjo.

– Quem é você, Baby?
– Ninguém! Nada.
– Que bom! Sorriu.
– Bom por quê?
– Todo mundo quer ser tanta coisa.

– Fujão! Virei a casa de pernas pro ar, procurando você.
– Se tivesse virado o terraço, eu tinha caído logo.

Postou-se diante do Uataú, fixando fascinado as três tartarugas. Estavam desviradas, as barrigas abauladas. Ficou com dó dos animais. Dia e noite, mais de uma semana. Sol e frio cortante da noite e as cabeças pendidas, desanimadas. Certamente não compreendiam o porquê de tanta maldade dos homens. E só iriam morrer dentro de alguns dias, quando chegasse a festa que Andeciula Rituera pretendia organizar. Ab ficava com os olhos molhados e nada podia fazer. Imaginava a dor do homem que fora posto para fora do Paraíso Terreal porque desobedecera a Deus e comera o fruto proibido. Mas por que o bicho teria de sofrer a consequência do pecado e da desobediência da criatura de Deus? Fosse o que fosse, não entendia porque um bicho tão lindo ali ficar penando, sacrificado à indiferença de seres humanos.

– Sabe que no começo eu achava que você tinha miolo fraco?
– Eu acho que nunca deixei de ter.

Uns amigos uma vez na cidade o tinham classificado como uma mistura de uísque estrangeiro com São Francisco de Assis.

Poderei comprar um bando de coisas para os meus bugres e umas mixuruquebas que também, pra falar a verdade, ando bem precisado.

Deu um suspiro comprido como asa de jaburu. Na realidade os anjos só lhe recordavam muita tristeza junta.

Além de ter de falar com os bichos que tivessem a caridade de ouvi-lo.

Ficaria esperando a visita noturna dos seus fantasmas prediletos. Minha saudade, vai trazer muita gente para me visitar. E quase sempre para encher meu coração de lágrimas.

Feliz é você, Zefineta, minha Amiga e Rainha Zefineta B, que não precisa aprender a chorar...

Você é quem faz a minha vida, vida.

Sorriu de novo pensando que seda era a única coisa na vida que alisava sem interesse algum.

Muitas vezes ele tivera pequeninos casos sem importância. [como todo machão que se acha no direito de trair mas nunca de ser traído]

O ventinho pequeno entrou no seu quarto, antes borrifando o seu rosto, como uma flor de frio.

É da vida esquecer. Felizes os que assim podem fazer...

O garotinho meio buchudo, meio roliço, meio tanta coisa bonita, pegou na sua mão. [ele fala de um indiozinho que o paparicava porque queria um pedaço de goiabada]

E suas mãos bem tratadas magrifavam as costas do rapaz.

A vida se torna uma coisa tão macia...

Mulher a gente pega do jeitão que elas são. Ou dizendo coisas vulgares, ou pegando a tapa, ou dizendo na cara: meu bem, vamos dar uma fofada? [mais uma coisa de macho escroto]

[joga a cinza do cigarro] No chão mesmo. Hotel ingênuo não tem cinzeiro. Chamo assim a todos os hotéis dessa raça. Ingênuo não é o hotel. Ingênuo é o dono dessas pocilgas, que pensa que a pia do quarto só é utilizada para lavar a mão e o rosto.

Menino pobre não tem ilusões de Papai Noel.

Papai... sabe... é que... eu gosto muito de você. De hoje em diante você pode me bater muito mais, que eu não me zango.

Sentiu um sol deslumbrar-se dentro dos seus sonhos.

História de gente pobre, sempre é besta assim.

Sabe de uma coisa, Paula? Pra mim a morte tem cheiro de goiaba.

Viver é desabrochar uma alma na solidão de um corpo. Pensar que você gostaria de participar cem por cento dos outros. E quando pensa ter atingido no mínimo dez por cento dos cem, quando muito conseguiu um por cento dos dez.

Viver é a gente condenar-se à mínima angústia: “Que importa que fulano cortou a perna, se eu espetei meu dedo?”

A própria natureza da natureza humana comete um genocídio para que um ser humano exista. Só um espermatozoide normalmente fecunda um óvulo para que a graça da vida apareça; o resto é eliminado sem nenhuma consequência. Então, o milagre da vida se casa com a condenação da morte, o enclausuramento e a dor.

Claro, porque creio em Deus. É mais fácil acreditar do que não. Compreender é outra coisa.

Há uma única chance na vida que dignifica a razão da existência. Uma coisa comum, mas que quando acontece com quem quer que seja, parece a renovação de tudo: o amor. Eu viveria de novo, nasceria de novo, por você, Paule.

Um minuto eterno de felicidade que apenas iniciado foi interrompido pelo soar do telefone.

Baby, Baby, eu te procuro desde que a primeira estrela foi criada.

Voltou à vida e a vida era dor de novo.

Feliz é você, minha rica rainha, de não precisar se lembrar. Porque, verdadeiramente, voltar é sempre morrer um pouco. Até logo, Zefineta.

Natal é a festa mais filha da puta que existe! Uma festa injusta. Gosto do Carnaval porque é alegre e para todos. [Natal] É uma festa onde o pão não sobe em toda a mesa e onde nem toda mesa possui uma toalha.

O amor funciona mais do que a maldade e a raiva.

Nessa noite o céu reuniu todas as estrelas e fez um buquê tão grande que parecia mais um grande cometa, para saudar o Menino Deus.
Falou tão bonito que incomodou os outros. E deram para vender vinhos, nozes, amêndoas, champanhe e brinquedos, e tudo mais. Pronto. Eis o Natal.

Mas você sabe, meu bem, eu sou parte dos homens. Ficou uns segundos desintegrado de tristeza. Um homem só tem mesmo de real é a verdadeira noção de sua fraqueza.

Não somos nós quem iremos julgá-los, visto porque existem, porque saíram do genocídio de cromossomos que o próprio Deus permitiu que a natureza o fizesse. Não cairá um só cabelo de sua cabeça sem que seja essa a vontade de Deus. Imaginem então que trabalheira que Deus não deveria ter tido com os carecas.

Quando há uma pausa numa conversa é porque passou um morcego. Um morcego lindo, de tranças loiras e asas de ouro.

Foi assim. Deus, o Grande Camaleão que fez o mundo, resolveu dar uma chance ao mundo mandando um filho santo e crocodilo para salvar a humanidade.

– Eu irei de ônibus.
– Que coisa vulgar, promíscua: andar num lugar ao lado de gente que nem conhece, nem foi apresentada.

Agora escute. Vou doer.

Se eu soubesse que um dia seria a estrela que você procura desde que a estrela foi criada, teria esperado por você.

Na hora de jurar a bandeira tudo que faziam a gente jurar eu colocava um não na frente. Como iria lutar, guerrear, se sempre fui contra a guerra, a mortandade e o ódio?...

Fazer outra coisa seria o mesmo que fazer outra coisa.

Ir para a frente, Frei Abóbora. Viver como se nunca fosse morrer.

Se vivos fossem agora Chico [Francisco de Assis], Tom [Tomás de Aquino] e Gus [Santo Agostinho], acondicionariam qualidades para a santificação como o fizeram nas épocas passadas?

Infelizmente nem todos os homens gostam de fazer nascer no rosto dos outros o sorriso dos anjos.

Zefineta B e Única. Se não fosse a sua grande simpatia e compreensão, o que seria de um homem que de rico só tem uma sombra e só por companheira a tristeza obrigatória? Feliz é você, que nem precisa chorar.

Mas são dessas coisas necessárias aos homens para que eles não rebentem.

A vida estava ainda adormecida. Mas Zefineta B de cima do telhado observava, angustiada, sua partida.

Obrigado, pelos pássaros, pelos peixes, pelos inúmeros bichinhos que tanto me ampararam.

Zefineta nem sabia o que fazer. Desceu do telhado para a parede. Na parede ficou observando todo o cenário que perderia agora a beleza. Tudo seria do mesmo jeito que antigamente era. Um mundo desabitado. Balançou indecisa a cauda para o lado e continuou descendo lentamente a parede. Algo morrera em sua alminha. Algo nascera, que doía tanto, que nunca pensara assim. Um adeus era a pior coisa que vira até àquele momento no limitado tempo do seu mundo. Sabia que ele não voltaria mais. Não sabia chorar, mas sua alma estava molhada de tristeza. Viu o espelho refletindo as traves do teto. Subiu sobre ele e deslizou. Parou para se olhar. “Feliz é você, que não precisa chorar...” Não, não era feliz. Precisava chorar e não sabia. Relaxou o corpo e ficou deitada cheia de dor sobre o frio do espelho. Olhou os olhos, olhou os olhos, olhou os olhos... Foi então que veio aquela grande dor. Compreendeu que os homens viviam tanto porque chorando evitavam aquela dor. Mas ela não, era uma simples lagartixinha sem defesa, sem nada, de olhinhos redondos, sem lágrima alguma. E a dor veio crescendo, doendo toda, desde a espinha até a ponta dos dedos. Quando chegou o máximo, ela não resistiu. Quando os índios vieram buscar as coisas, pegaram o espelho espantados com o lugar esquisito que escolhera aquela lagartixa para morrer.

Encheu o bidê e colocou desaprumado uma por uma, as rosas: ficou lindo. Afinal aquilo ali era mesmo para se colocar as flores mais lindas do mundo.

A gente tem muito tempo para dormir depois que morre.

Você está em sua casa, Pô; o meu coração é a sua casa.

Fizeram uma pausa, sem enxergarem os anjos que voavam na semiobscuridade.

– Eu queria, Baby, você seria capaz?... O mais doce possível.
– Como se fôssemos apenas duas ternuras se alisando?
– Quase isso.
Colocou seda nas pontas dos dedos para acariciar Paula. Encheu de veludo toda a sua posse.

– Ah, Pupinha! Verdade que tive uns pequenos deslizes. Umas pequenas tentações. Mas...
– E se fosse eu que tivesse essas pequenas tentações?
– Aí era diferente. Eu comprava o maior canhão do mundo e sentava um tiro na bunda do atrevido.
– Vocês homens são sempre os mesmos. [E muitas mulheres acham normal. Uma pena]

A felicidade é uma coisa completamente irrisória.

Verdade, verdade triste
Verdade que nem se diz;
Felicidade consiste:
Em saber ser infeliz.

Itens da felicidade:
• Evitar de qualquer maneira a monotonia do tempo. Não sendo possível, pelo menos tapear a monotonia do tempo.
• Por fim, fazer do tempo um tempo em função das coisas mais agradáveis.
Mais que isso era impossível. Pensando assim lhe aparecera na vida, quando mais ansiava, a estrela que sonhara desde que esta se criara. Estabelecia suas regras para fazer render a “não infelicidade”. De vez em quando arranjava um modo de tirarem férias e recomeçarem a lua de mel que a monotonia do tempo principiava a estragar. O próprio destino tem seus caprichos e muitas vezes se contraria ao ver que estão mexendo demais nos seus desígnios.

– Ah! Paulazinha de minha alma, você tem coragem de fazer coisas escondidas de mim?

Uma cidade nunca é conhecida se a gente ficar usando táxi.

Era o pedaço mais lindo da minha vida que eu guardava no mundo dos meus mais queridos segredos.

Era pior lutar contra um câncer do que contra a velhice. Se bem que a velhice fosse também proliferação de tristezas e desencantos.

Paula Toujours. Paula do amor absoluto e realizado.

Não é porque ele era seu pai que esquecerei a crueldade com que me tratou. Eu era uma mocinha e ele e toda a sua família católica me trataram como se eu fosse uma puta... Essa é a verdade. Porque as pessoas morrem, não têm o direito de ser santificadas...

Procurara sempre não deter em si qualquer coisa que significasse Paula. Mas Paula Toujours retornava a ele de uma maneira surpreendente.

O mais importante do amor, sem dúvida, era o sexo. Não estava descobrindo nada. Mas tão importante como o amor era a cama.

A vida era isso. A vida dela era isso. Precisava fugir da sua condenação e usar-se o mais possível, mesmo que para tanto abreviasse o tempo de viver que lhe estava reservado. Parecia uma colegial em férias ou uma criança em volta de uma árvore nojenta de Natal.

E se ela, para se vingar, fizesse agora o que estava fazendo há quase dois meses? Não. Ela não faria isso assim tão gratuitamente.

Uma paz de espírito incomum existia em todo o seu corpo. Só quem vai morrer pode ter uma paz assim! Morrer sem dor, sem sentir que a vida nunca foi uma coisa que valesse viver.

A morte é um grande sono sem dor! Dormir grandemente, compridamente. Não sofrer mais a ameaça de angústia, esquecer de que vivera e que vida é dor.

Agora era diferente, era a doce briguinha de amor. Gostosa, gostosíssima, gostosérrima, quente, quentíssima, quentérrima, de se sentir...

Nunca mais a tratarei como se fosse uma simples CafiAspirina. “Mudou, experimentou, não deu certo, voltou para ela, a CafiAspirina”.

Nós nunca vamos envelhecer. Nunca. No amor não existe disso.

Paula estava ficando velha. E o pior era o conhecimento dessa triste verdade. Com Paula dava-se o pior. Os nervos não tinham forças para sustentar a realidade.

Isso, Baby, é o que eu preciso. E preciso também que você entenda que eu estou bebendo a mim mesma.

Somente a morte existia de verdadeiro no homem. Sincera e indissolúvel.

Estava certo de que os índios não só eram belos como as flores, mas que morriam com a mesma facilidade delas.

O hospital também tinha coisas sádicas. Fica o pobre Cristo espetado em frente aos olhos, escorrendo chagas, escorrendo dor. Devia haver imagens budistas, pacíficas, suaves, doces, naquela posição tranquila. Não a imagem do crucificado, que parece querer sem querer, obrigado a comparar a sua dor com a dor pútrida dos que também sofrem.

Não se prende uma alma com as garras inúteis de uma fé obrigatória.

Levou as mãos aos olhos, por onde se virasse encontraria com elas, emborcadas, elas semimortas de sede e do calor. Elas, as tartarugas causticadas aprisionadas da inclemência e desvarios... Os homens, os homens que aprisionavam as tartarugas, que faziam a dor mais viva nos seus semelhantes, que sacrificavam os animais inocentes, tudo uma incoerência despropositada, tudo numa patética lembrança. Cristo já passara da época de uma tartaruga imolada, já morrera e se transformara num sanguíneo e torturado mito.
 De que merda nós somos feitos, não? Você, a tartaruga e eu. Mas se você era Deus como se propunha, sofreu porque quis. Se houvesse divindade mesmo todo o seu sacrifício não significava nada.

Não adiantava nada pedir uma coisa humana a uma religiosa empedernida pelo hábito. Fé ali se desumanizara para adquirir uma rotina pegajosa. A eterna burrice da religião metodizada, esquematizada. A certeza da salvação era uma salvaguarda para os sacrifícios humanos feitos por amor de Deus.
– Já pensou no valor disso se fizesse todo esse trabalho por amor de Deus?
– Irmã, caridade nesse sentido pra mim tem um significado nojento. Nada faria por ninguém, nem por um cachorro, se soubesse que haveria uma recompensa para tanto. A gente só faz alguma coisa por outrem por três motivos: ou porque gosta, ou porque pode ou porque está de bom humor...

Achava que todos os homens que se submetem a Cristo, se mutilando, fazendo a castração espiritual, se dedicando a amar outro homem, no caso Cristo, eram homossexuais conscientes ou às vezes inconscientes.

Por amor de Paula, perdera qualquer interesse num outro amor verdadeiro.

Sabe o que significa realmente o Cristo para mim? Sabe? Nada. Nada de nada. Apenas um belíssimo homem. Um macho que impressionou os espíritos fracos. Quem foi Cristo realmente, irmã? O primeiro playboy que apareceu. Quando a senhora estiver rezando face a face com uma grande imagem de Cristo, pense que a tanga pode se rebentar e o que surgirá, já que Cristo se fez homem como eu? Aparecerá uma coisa volumosa como qualquer homem deve ter entre as pernas.

O Cristo permanecia abandonado, morto, tartarugal, ante os seus olhos.

Olha o colorido das folhas, toda a selva se vestiu de muitas cores, como se tivesse tomado um banho num chuveiro de arco-íris.

Você é linda até comendo lesmas, Paula. [ela está comendo escargot]

Quantos milhares de frades se ajoelhavam de braços abertos, em êxtase profundo ante a figura desnuda e sensual dos muitos Cristos espalhados pelas igrejas. O amor justificado pela fé e redenção ante um homem que diziam ter sido belíssimo. Um homem tão nu. No Cristo podiam admitir a nudez; nos homens, jamais. Se não fizesse tanto frio, brincaria com ele assim.
– Cristo, cadê a túnica?
– Gato comeu.
– E o manto?
– Gato comeu.
– E o resto das tuas roupas?
– Gato comeu.
– De maneira que só Te deixaram uma cruz e essa tanguinha?
– Foi.

Que importavam todas as bombas atômicas que dizimaram Hiroshima e Nagasaki, que afogaram em chagas todas as vidas, todos os corações, se não tinha mais as suas pernas?

– Tinha sempre uma grande esperança. Quando acaba a esperança para todos, o médico ainda conserva uma...
– Você tem um cigarro? Tanto faz fumar agora como não. Trata-se apenas de prolongar com paciência a merda da vida.
– Até que você se acostume à realidade, vai ter seguidamente crises de fraqueza...

Deus! Eu odeio Você como odeio a vida. Eu tenho nojo da vida. Nojo de todo o estrume, das fezes, da merda eterna de que Você se apoderou. Como acreditar no Cristo? Mesmo que Ele me aparecesse, que Ele repetisse tudo que dissera a outrem, apenas acharia lindo como beleza literária, Você sabe disso: não é preciso o Cristo para o homem deixar de ser mau e tornar-se bom. Existem bilhões de sóis superiores ao nosso com sistema planetário idêntico ao nosso, por que a salvação do homem pela revelação de outro homem? O que ele fez foi lindo, maravilhoso para a humanidade, que se conforma com qualquer coisa. Foi difícil admiti-lo em toda a minha pequenez. Foi difícil e cruel redescobri-lo dentro da minha pequenez. Pois bem, Deus. Nada disso existe. Nada. Tudo perdido. A alma se encolhe e diminui dentro de um corpo de aleijado. Não adianta mesmo amá-lo pela metade. É mais fácil odiá-lo pela metade. Ter nojo e repugnância de Você pela metade. E o inferno bem pode ser aqui, nos milhões de minutos que o homem redescobre que a vida é apenas, apenas, um acúmulo de dor. Não quero sentir a Sua presença mediocremente pela metade. Viver para quê? Que poderei fazer sem minhas pernas? Nada. Nada. Nada. Nem fugir das minhas angústias poderei. Parto da vida, odiando-a, enojado como o nojo e o ódio que tenho de Você...

Deixe-me morrer! Eu quero morrer! Desgraçados! Por que vieram outra vez salvar-me? Vocês serão criminosos se me obrigarem a viver. Falava grudado ao sexo porque se falasse junto ao coração nunca seria atendido. Aquilo ali era o autor da vida, da condenação e da dor. Era aquela porcaria humana o verdadeiro Deus dos Homens. O que ditava a vida. Que gerava o ódio, a desgraça e a vingança. Era naquele presente miserável de Natal que seu pai lhe dera a vida. Uma rota de misérias e podridões. Destaque (Amarelo) | Posição 4280 aprisionados como tudo, se prendendo num elo condenativo. Desde a alma, no corpo. O corpo, na cadeira de rodas, a roda, no eixo... E o eixo? Na puta que o pariu!...

O silêncio parecia o túmulo de todos os anjos. Nem o mais leve sussurrar de asas. Não conteve um gemido cruel e se o coração não rebentou de um ímpeto é porque o coração não é apenas um coração de vidro pintado, como dizia o poeta. Saiu na certeza de que daquele momento em diante, para onde quer que fossem os dois, estariam caminhando cada um para o seu enterro...

Vó diz que é assim mesmo. Vida tem que ter trabaiera.

Todo mundo vendia alguma coisa no mundo. Turga, o belo corpo e suas flores de vida. Ele, venderia a ilusão de felicidade.

E a vida, o que era a vida? O que valia a vida? Nada. Absolutamente nada. Talvez pelos momentos de paciência e bondade, quando estas ainda se desenvolvem no coração.

– Se eu for lá fardado de Primeira Comunhão o fotógrafo tira meu retrato?
– E por que não?
– Porque sou um crioulinho pobre.
– Que tira, tira. Eu vou até lá com você. Quero ver por que não. Ora essa. Não existe racismo no Brasil.
[tanto “não existe” que ele logo se prontifica a ir com o garoto para que sua brancura garanta que o desejo do menino se realize]

Ali Cristo nunca atingiria as massas por mais que se propagasse isso. Cristo era aculturação. Cultura de elite. A angústia de salvação daquela gente era pegar um bonde mais vazio, um ônibus menos apertado, menos suado naquele calorão todo. A angústia de salvação daquela gente era saber se o dinheiro no fim do mês daria para pagar as contas.

O céu? Como imaginá-lo? Como uma sessão comprida de cinema, num domingo. O purgatório, talvez a continuação da mesma vida dolorida.

O Cristo ficava com a elite, com os que tinham tempo e conforto. Cristo estava tão distanciado das massas que a própria Igreja modificava as coisas, violentava as tradições, facilitava tudo. A verdade é que o homem, com qualquer fé ou crença, continuava sozinho.

Varava as horas num sono só. Isto ajudava a esquecer. A grande utilidade do sono. Não fora ele, que vinha todas as noites fechar os olhos, acostumar o homem com a ideia de que o sono é um treino para a morte.

Mas o diabo de Deus quando cisma com um, quando resolve que vai pescá-lo, não para de cutucar os lugares mais doloridos.

Ela estava resolvendo tudo escondido. Criança não tem querer.
[A frase que mais me revoltava na infância, e que fiz questão de NUNCA dizer ao meu filho]

Quando todos os sentimentos apareciam pela metade nele, só a dor tinha a capacidade de aparecer íntegra, completa.

Ler um jornal onde os homens continuavam a jurar fidelidade às bandeiras, a se matar, se destruir. Ou então os crimes feios onde os homens se matavam e também se destruíam.

Não vamos perguntar à vida aquilo que a vida está nos dando sem perguntar.

– Por que Deus fez o macho sempre mais bonito, Baby?
– Porque ele também não deve ser normal. Se o homem foi feito à sua imagem. Os “coisos” devem ter sido feitos daquela parte de Deus também, à sua imagem. Quando Deus fez o primeiro homem, ficou apaixonado pela obra. Depois, para que não desse na vista, resolveu criar a mulher.

– O primeiro “coiso” foi Abel. Enquanto Caim dava um duro filho da puta, Abel corria como uma libélula pelos campos.
– Você defende os homossexuais?
– Nem uma coisa nem outra. Não me atingem, não chegaram a me conspurcar, não diminuíram minha masculinidade, não os criei, nem sou Deus.

– Quem é você, Paula?
– Um assunto chato e banal até encontrar você.

– Hoje é outro dia?
– No ciclo eterno da monotonia humana continua sendo outro dia. Vai-se a noite vem o dia. Vai-se o dia, vem a noite...

Passe a mão na pilha da minha ternura e sinta quanto elas se multiplicaram. Mas preciso ir, Pô.

– Você é meu?
– Do pinto ao coração.

A solidão também. Tentou fechar os olhos e conseguir dormir.
– Meu Frei Abóbora querido.
Olhou para onde vinha a voz e descobriu, sobre o portal, Zefineta B, que vinha descendo.
– Minha querida Zefineta B, Primeira e Única. Você, minha flor?
– Eu e... voando.
Zefineta tinha adquirido asas douradas e transparentes e dava voltas pelo quarto.
– E por que veio, minha bela rainha?
– Para ensinar o caminho. Agora que você está mais forte.

Senhor Deus, em meu peito não existe rancor, nem mágoa, nem ódio, e, sobretudo, não existe amor. Confesso e reconheço todos os meus erros que a vida me obrigou a realizar. Cristo real somos nós mesmos crucificados à solidão. Eu trocaria tudo para ter Paula, que o meu céu fosse o céu do meu amor.

– Ali está a sua escada, Frei Abóbora. Você vai subir.
Arrastou-se pelo corredor. Zefineta deslizava a seu lado pela parede. Perguntou-lhe:
– Por que deixou de voar?
– Para economizar as asas, que são muito difíceis de substituir.

Ei-la à sua frente. Suja, desgastada como a própria vida. Fedorenta e íngreme.

Amiguinha querida. Dizia que faltavam alguns quando aquele era o primeiro. O coração batia com tanta brutalidade que parecia ter se mudado para a parede. Tia Estefânia repetia sua mensagem de otimismo:
– Um dia, se você morrer, não serão anjos que o ajudarão a subir as escadas do céu e sim uma porção de índios.

Tia Estefânia continuava a rogar a praga da bondade.
– São os índios, não os anjos.

Zefineta, alegre, acompanhava a ascensão do grupo, falando, pela parede.
– Vamos, meu amigo tão querido. Paula está lá. Do outro lado da porta. Caminhe e abra o trinco. A face de Deus não será mais mistério para você. Estendeu a mão, abriu o trinco e descerrou a porta.

– Foi bom assim, Paula. Eu estava tão cansado. Ainda estou, de carregar a minha cruz de muletas.
– Eu vou dormir um pouco, Paula. Só um pouco...

Vede o que foi um homem! Nasceu, doeu e morreu. E vós que esperais pelo céu escutai: o céu é apenas uma palavra de uma sílaba que também começa por “C” e termina por “U”.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GÊNEROS LITERÁRIOS - Angélica Soares

O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS - Douglas Adams

DO GROTESCO E DO SUBLIME de Victor Hugo