O MAL NO PENSAMENTO MODERNO - Susan Neiman

 


Neiman, Susan. O mal no pensamento moderno: uma história alternativa da filosofia/ Susan Neiman; tradução Fernanda Abreu. – Rio de Janeiro: DIFEL, 2003

CAPÍTULO UM - FOGO DO CÉU

Os defensores de Deus: Leibniz e Pope

Um Deus que poderia ter criado um mundo contendo menos crimes e infortúnios, e escolheu não o fazer, parece não passar ele próprio de um gigantesco criminoso. (pág. 31)

Suponhamos que soubesse que a morte de seus 10 filhos era o resultado de uma aposta de Deus com Satã, como dois colegiais briguentos disputando poder. Alguém que ponha os justos à prova dessa maneira deverá ele próprio prestar contas mais cedo ou mais tarde. (pág. 31)

Os tormentos dos condenados, mesmo sem a doutrina da predestinação, são a pedra na qual a razão tropeça. (pág. 32)

Imaginar um Deus que considera pecaminosas muitas das formas de vida que Ele próprio criou e depois nos tortura eternamente por nossa breve participação nelas está longe de ser o mesmo que imaginar uma solução para o problema do mal. (pág. 32)

É justamente a aleatoriedade da culpa e da punição, junto com a presença do bem assim como do mal, que cria os problemas filosóficos. (pág. 33)

Pode ser difícil reconhecer os limites de Deus, mas é menos assustador do que negar Sua boa vontade. (pág. 33)

Qualquer tentativa de conservar a fé não apenas será desprovida de fundamento racional; ela deve positivamente desafiá-lo. (pág. 34)

Leibniz propôs-se a defender um Criador acusado de crimes sem paralelo. Sua defesa repousa sobre dois pontos. O primeiro é o de que o acusado não poderia ter feito outra coisa. Como qualquer outro agente, Ele estaria limitado às possibilidades disponíveis. A outra linha de defesa evoca a afirmação de que todas as ações do Criador na verdade acontecem para o bem. (pág. 34)

As alegações de Leibniz parecem não apenas anteriores à experiência, mas positivamente imunes a ela. Ele deixa bastante claro que qualquer fato, por pior que seja, é compatível com a alegação de que o mundo é o melhor de todos os mundos possíveis. (pág. 35)

No reino da simples possibilidade, pouca coisa é excluída. (pág. 35)

O mal natural é a dor e o sofrimento que experimentamos nele. O mal moral é o crime para o qual o mal natural é a punição certa e inevitável. O pressuposto de que os males moral e natural estão casualmente ligados é um pressuposto que Leibniz nunca submeteu a nenhum escrutínio. (pág. 35)

A ideia de que o problema foi causado pelos pecados de nossos ancestrais não depende do que eles fizeram [...] as tentativas cristãs de fazer o deslize parecer pior do que era são um esforço inútil [...] O que conta, no primeiro caso, não é a justiça da conexão entre o que eles fizeram e o que sofreram, mas o fato de nem sequer haver uma conexão. (pág. 36)

Um Criador que não nos dá instruções claras sobre os vínculos entre pecado e sofrimento não passa de um monstro; mais monstruoso ainda seria um Criador que não os relacionasse de forma alguma. (pág. 37)

Leibniz deposita sua confiança na explicação ainda por vir. Não temos provas de que o bem virá do mal e temos muitas razões para duvidar disso. (pág. 37)

A descoberta de que o universo é maior do que se supunha não pode ser enumerada entre as descobertas da ciência que se revelarão de muita ajuda em relação ao problema do mal. (pág. 38)

No processo de defesa de Deus, Leibniz diminuiu seu poder. [...] o Deus de Leibniz só pode oferecer o que está disponível. (pág. 40)

Se a razão em si é mais poderosa do que Deus, já que ela prescreve leis que pretendem limitá-Lo, não é de surpreender que Deus possa parecer supérfluo. (pág. 40/41)

Leibniz prometeu que as conexões causais entre mal moral e mal físico, então ocultas, se tornariam manifestas com o progresso da ciência. (pág. 44)

Pareceria claro que um Deus cuja única tarefa fosse criar um mundo perfeito pudesse estar arriscado a desaparecer dele. (pág. 45)

“Teriam os poetas um Privilégio tão grande que lhes permita afirmar com ousadia os mais selvagens Paradoxos, contanto que os profiram em Linguagem retumbante?”, a resposta, acho eu, é: sim, eles têm. (pág. 48)

A Teodiceia concede muito mais atenção à liberdade divina do que à liberdade humana. (pág. 49)

O impulso naturalista nascido a serviço da religião acabou sendo visto como antiético em relação a ela. (pág. 50)

Um homem que acha que o mundo todo existe para o seu benefício não passa de um ganso cevado que acredita que o fazendeiro que o engorda existe para o seu. (pág. 50)

Newton da mente: Jean-Jacques Rousseau

Sugestões não são ciência, por bem expressadas que sejam. (pág. 51)

A fé setecentista em descobertas científicas que reforçariam a tradicional fé na Providência não foi destruída por nenhum acontecimento isolado. Lisboa focalizou o problema, mas não o inventou. (pág. 51)

Não podemos esperar que o sistema de clima mude sua natureza, escreveu ele [Leibniz], porque a chuva que produz colheita em um campo impede um piquenique em outro. Não foram necessários todos os recursos do páthos francês à disposição de Voltaire para assinalar que o terremoto de Lisboa estava longe de ter sido um programa de lazer frustrado. (pág. 53)

Kant argumentou com mais convicção do que consistência que os terremotos às vezes têm consequências benéficas e que, em todo caso, não passam de acontecimentos naturais. Rousseau atacou Voltaire por privá-lo da esperança de um mundo melhor e os cidadãos de Lisboa por viver em cidades onde os terremotos causam os maiores danos. (pág. 53)

Embora Rousseau sublinhasse a separação moderna entre mal natural e mal moral, ele o fazia de uma maneira que parecia nos culpar por ambos. (pág. 54)

As bases de Rousseau para essa fé eram evidentes: deve haver recompensa e punição em outro mundo, ou as infelicidades deste seriam demais para suportar. (pág. 55)

Rousseau foi o primeiro a tratar o problema do mal como problema filosófico – bem como a oferecer a primeira coisa parecida com uma solução para ele. (pág. 55)

“Negar a existência do mal é a maneira mais convincente de desculpar o autor desse mal; os estoicos já foram motivo de risada por menos do que isso”. Rousseau - (pág. 56)

Rousseau também assinalou que tais doutrinas levavam ao quietismo. Se os males são meramente aparentes, e tudo é o melhor possível, não há necessidade de fazer nada quanto a eles. (pág. 56)

Wolmar contentava-se em observar que devemos reconhecer que, pequeno ou grande, o mal realmente existe e, dessa existência em si, ele deduzia a ausência de poder, inteligência ou bondade na Primeira Causa. (pág. 56)

Admitir a realidade do mal impede de fornecer uma explicação para ele. (pág. 55/56)

Como Agostinho, Rousseau considerava a liberdade humana a maior dádiva de Deus. (pág. 57)

Rousseau tirou a responsabilidade pelo mal das mãos de Deus e colocou-a firmemente nas nossas. (pág. 57)

Depois de Rousseau, não precisamos negar a realidade do mal. Explorar o mal como fenômeno histórico torna-se parte de nossos esforços para tornar o mundo mais compreensível em teoria e mais aceitável na prática. (pág. 59)

Otimistas esperaram durante décadas alguém que tornasse o mal inteligível, que mostrasse, embora todas as aparências confusas apontem na direção contrária, que o mundo era o melhor que podia ser. (pág. 59)

O bom selvagem sabe quem é e de que precisa sem considerar as opiniões e necessidades dos outros. (pág. 61)

[Para Rousseau] Nossa infelicidade não é desprovida, mas é o resultado de nossos pecados. (pág. 62)

Contemplar a própria virtude pode ser um bom conselho em uma prisão romana, onde não há mais nada para consolar, mas chamar isso de a mais alta forma de prazer é pura auto-enganação. (pág. 63)

Rousseau muitas vezes afirmou que a morte em si não é um mal. (pág. 64)

Os relatos de Rousseau afirmam que o sofrimento faz parte de uma ordem natural melhor e mais vasta do que aquela com que os teólogos antes sonhavam. (pág. 70)

Nisso também Rousseau estava próximo de Newton. Ambos queriam demonstrar a grandeza de Deus mostrando a infalibilidade de Sua ordem. Ambos terminaram descrevendo uma ordem tão perfeita, que quase poderia funcionar sozinha. (pág. 70)

Sabedoria dividida: Immanuel Kant

Leibniz absolvia Deus restringindo suas escolhas mediante formas eternas. O resultado, como colocou Hegel, era por demais um conto de fadas para realmente perturbar alguém. Rousseau absolvia Deus mudando nosso foco para o mal moral e argumentando que Ele nos dera recursos para controla-lo. – (pág. 73)

Talvez Deus tenha realmente criado um mundo cuja ordem moral é transparente, e os defeitos do mundo tenham sido criados por nós. Mas por que a ordem é tão frágil? (pág. 75)

A resistência da natureza que experimentamos diariamente, em assuntos grandes e pequenos, não é obra de divindades antropomórficas iradas, mas simplesmente faz parte do caráter arbitrário do universo. Os males naturais não são nem uma punição injusta por algo heroico, mas sim a base da condição humana. Essa condição é estruturada pela mortalidade e, de forma ainda mais geral, pela finitude. Ser limitado é ser quem somos. Se a finitude não é punição, ela não é prova de pecado. Não é exatamente uma falta; pode nem sequer ser uma propriedade. Nós temos propósitos; o mundo não tem. Ambos os fatos constituem algo essencial para a natureza de cada um, e nenhum deles tem qualquer significado. (pág. 76)

Kant. Em sua descrição, o problema do mal pressupõe uma conexão sistemática entre a felicidade e a virtude ou, de modo inverso, entre o mal natural e o mal moral. Mas o mundo não parece mostrar nenhuma conexão assim. (pág. 76)

O mundo, feito para nossas necessidades, seria o melhor de todos os mundos possíveis. Nem sequer seríamos capazes de formular uma questão a seu respeito. (??) - (pág. 76)

Se houver justiça perfeita, os obstinadamente maus são punidos. [Se houver justiça perfeito não haverá os obstinadamente maus – Eu] (pág. 77)

Deus [teria] uma percepção que nem sequer poderia ser comparada com a nossa. [Se a percepção de Deus é diferente da minha, então Ele não me percebe - Eu]. (pág. 79)

Hume não chegou a perceber o fato fundamental a respeito do conhecimento humano: o que quer que as coisas que percebemos se revelem, elas não são criadas por nós. (pág. 80)

Kant não tinha tendência ao quietismo. Sua consciência de nossos limites e as ameaças da contingência jamais o levaram a desistir a desistir diante deles. (pág. 80)

A razão precisa de tal crença para manter seus compromissos. [?] - (pág. 82)

Teríamos menos tendência ao desespero e menos tendência à decadência se tivéssemos certeza de que o mundo funciona como deve. (pág. 83)

Imagine um mundo em que você soubesse como cada ação correta será recompensada, cada ação errada vingada. Você seria capaz de uma ação moral? (pág. 83)

Agir livremente é agir sem conhecimento ou poder suficiente, ou seja, sem onisciência ou onipotência. (pág. 84)

“Nossa fé não é conhecimento científico, e graças ao Céu por não ser!” – Kant - (pág. 84)

Se você sabe que Deus tomará sempre conta do mundo, por que se importar em fazê-lo você mesmo? - (pág. 84)

Resolver o problema do mal não é apenas impossível, é também imoral. (pág. 85)

Os metafísicos tradicionais discorreram sobre a glória e a justiça de Deus na esperança de que ele estivesse escutando e os recompensasse de forma adequada. (pág. 85)

O que há de errado em dizer que Deus tem maneiras de agir que não entendemos? (pág. 85)

Para Kant, até mesmo esse conhecimento é conhecimento demais. (pág. 85)

Kant via pouca diferença entre queimar uma entranha, fazer uma dança da chuva ou uma prece pela salvação eterna, exceto pelo fato de que esta última provavelmente contém mais hipocrisia. (pág. 86)

Tentativas de atribuir razões extrínsecas à virtude não apenas enfraquecem a virtude; elas destroem sua própria essência. (pág. 86)

Não podemos ser virtuosos de modo a sermos felizes, pois virtude como meio não é realmente virtude. (pág. 87)

Parece não haver limites para os limites de nosso poder. (pág. 90)

A distância entre nossos propósitos e uma natureza que lhes é indiferente dá ao mundo uma estrutura quase inaceitável. (pág. 91)

Se Deus em pessoa estabelecesse essa lei, os princípios morais perderiam qualquer vínculo com a liberdade. [?] - (pág. 95)

Não queremos que Deus crie o mundo pelo qual ansiamos. [?] - (pág. 95)

Para Hume, já não podemos saber se as conexões causais que escolhemos são genuínas, nossa decisão de chamar algumas delas de leis é uma questão de conveniência e hábito. (pág. 98)

A ciência exige o pressuposto de que o mundo foi construído não apenas não apenas para alguns propósitos, mas para nossos propósitos. [?] - (pág. 98)

A natureza deve ser considerada uma obra de arte. Isso significa que devemos vê-la como produto de um Criador consciente que é tão livre quanto nós. Assim, parecemos obter uma versão à prova de fogo do argumento do desígnio. [?] - (pág. 98/99)

Um mundo que constantemente evoca prazer diante da descoberta de desígnio nele, que só pode ser compreendido se pressupusermos nosso próprio aspecto essencial a permear sua existência, tal mundo só poderia ser produto de um artista benevolente, pois Ele nos deu um mundo em que o conflito metafísico é mínimo, já que suas peças se espelham tão perfeitamente. [?] - (pág. 99)

Embora ninguém se tenha esforçado mais para mostrar que a pergunta sobre se o mundo é feito para nós não pode sequer ser formulada adequadamente, ninguém parece mais tentado a lhe dar uma resposta positiva. [falando de Kant] - (pág. 99)

O melhor de todos os mundos possíveis não é apenas um mundo sem terremotos; ele não contém sequer uma tempestade. (pág. 100)

Real e racional: Hegel e Marx

Quanto mais seriamente assumimos responsabilidade pelo mal, maiores devemos tornar-nos. (pág. 102)

A tarefa da filosofia é fazer-nos entender que o mundo real é como deve ser e mostrar que nada pode deturpar as intenções de Deus. (pág. 103)

O mundo é governado por Deus, e a história do mundo é o conteúdo de seu governo e a execução de seus planos. (pág. 103/1004)

Nós somos uma das coisas que dão errado no mundo. (pág. 109)

O destino pode transformar nossos maiores esforços para ser morais em tentativas desesperadas e quixotescas. (pág. 109)

Nós nascemos e morremos, e entre esses dois acontecimentos nossos poderes de controlar a natureza são severamente limitados. (pág. 110)

Aceitar a imperfeição é aceitar um mundo que não é como deveria ser. (pág. 110)

Superar os males faz parte do processo evidente na própria história. – Hegel. (pág. 111)

O que há de evidente na alegação de que a história faz progressos que provam a bondade do mundo? (pág. 111)

A história humana sempre serviu de reprimenda permanente. As maravilhas da natureza podem ser testemunhas da sabedoria e da bondade de Deus; a criatura que Ele havia criado à Sua imagem não era. Completar o triste registro da humanidade na história, portanto, questionava duplamente a sabedoria e a bondade de Deus. . (sobre Hegel) (pág. 112/113)

O que move o mundo é outra coisa. (pág. 114)

Como ferramenta educacional, a dor tem um valor que nada pode substituir. (?) - (pág. 115)

O fato de hoje mal podermos suportar ler descrições de coisas que teríamos levado nossos filhos para assistir alguns séculos atrás marca um avanço na consciência humana que parece difícil de reverter. (pág. 117)

As aparências sugerem não a presença de Deus em assuntos humanos, mas sua inexplicável ausência. (pág. 118/119)

Os amigos de Jó, por exemplo, viram-se diante de provas tão avassaladoras, que não tiveram outra defesa senão negar, argumentando que a aparente injustiça é um sinal da sabedoria de Deus. Virar a prova de cabeça para baixo é uma manobra ousada, mas não ingênua. (pág. 118)

O melhor de todos os mundos possíveis é um mundo que jamais poderíamos habitar. (pág. 120)

[Para Marx] Depois de criar ídolos para assumir a responsabilidade pela infelicidade humana, ela [a filosofia anterior] se esfalfava criando desculpas para eles. (pág. 122)

Já que o sofrimento não explicado ameaça explodir a ordem estabelecida; é melhor que quem estiver interessado em manter a ordem encontre explicações depressa. “Uma teodiceia justifica a felicidade do poderoso e o sofrimento do impotente” (Gunneman) - (pág. 123)

A humanidade não pode ser livre antes de tomar de volta o poder que deu a Deus. (pág. 124)

A questão de que males devem ser considerados naturais e que males devem ser considerados morais é central para essa discussão. (pág. 125)

Se não controlamos o mundo natural, podemos assumir toda a responsabilidade que quisermos em pensamento, mas ela permanecerá sem força. (pág. 125)

A consciência de que o progresso é produto de nossa própria atividade criativa deveria mostrar, finalmente, que o sofrimento e redenção dependem apenas de nós. Nenhum dos dois deveria ser deixado a cargo de um Ser que nós mesmos inventamos ou à mercê dos recursos teóricos de um grupo de filósofos. (pág. 125)

A distinção entre mal natural e mal moral deu início a um debate sobre quanto da miséria do mundo era culpa de Deus, e quanto dela era culpa nossa. Uma vez superado Deus como uma projeção humana, a distinção em si deve ser abolida. (pág. 126)

Tanto em Hegel quanto em Marx, a moralidade e a natureza que Kant tentava manter separadas fundem-se. (pág. 126)

Kant proclamou o fim da metafísica, mas insistiu em perpetuar as questões que a produzem. (pág. 126)

Rousseau deu-nos a ideia de que os processos históricos nos tornavam autores de nosso próprio sofrimento que podiam tornar-se autores de nossa própria felicidade. (pág. 127)

Toda teodiceia filosófica aborda a questão de que males são naturais e que males são morais. (pág. 127)

Em conclusão

O desejo de Afonso de aconselhar Deus logo levou ao desejo de Leibniz de ser seu defensor, uma forma mais complexa de deslocamento. O desejo de Rousseau de defende-Lo foi um passo rumo a torna-Lo obsoleto. Kant foi o primeiro a identificar o desejo de ser Deus como uma força motriz por trás da maior parte da metafísica. Sua primeira Crítica revelou isso, sua segunda fez disso um teste para a moralidade, e sua terceira simultaneamente validou-o e desmascarou-o como a inútil blasfêmia que realmente é. Não é de espantar que seu legado tenha sido difícil de decifrar. Vimos Hegel anunciar a morte de Deus e sua própria disposição para substituí-Lo, e vimos Marx exigir que a substituição se tornasse real. (pág. 128)

As exigências de dar sentido ao mundo ameaçam os limites do próprio sentido. (pág. 128)

Uma palavra àqueles cristãos que puderem amaldiçoar tais visões como expressões de orgulho. Seria mais humilde imaginar Deus se tornando humano em nome da salvação da humanidade? (pág. 129)

Só Sócrates sabe que ele nada sabe. (pág. 130)

O mundo que nos foi dado é tão ultrajante, que nenhum ser razoável iria querer ser creditado como seu autor. (pág. 130)

CAPÍTULO DOIS – CONDENAR O ARQUITETO

Considerar a natureza como se ela fosse uma prova da bondade e da providência de Deus; interpretar a história unicamente em honra da razão divina; como testemunho constante de uma ordem mundial ética e de uma intenção final ética; explicar todas as próprias experiências do modo como as pessoas piedosas vêm fazendo há tempo suficiente, como se tudo fosse providência, um sinal, destinado e enviado para a salvação da alma: qualquer consciência sensível vê isso como indecente, desonesto, um monte de mentiras – Nietzsche . (pág. 131)

Qualquer forma de teodiceia – incluindo a afirmação de que os métodos de Deus ultrapassam a compreensão – envolve alguma forma de má fé. (pág. 132)

Matéria-prima: o Dicionário de Bayle

Para onde quer que se olhe, o que se vê são milagres de horror. O mal moral e o mal natural fundem-se em sua visão porque o próprio Deus – se Ele existir – é exatamente o que Descartes temia, um gênio totalmente malévolo – Marquês de Sade. (pág. 134)

O dicionário histórico e crítico de Bayle é incrivelmente arguto. (pág. 135)

Esquematizemos a argumentação. O problema do mal ocorre quando se tenta afirmar três proposições que não se encaixam.
1. O mal existe.
2. Deus é benevolente.
3. Deus é onipotente.
Vire-as, revire-as e embaralhe-as à vontade, elas não podem existir juntas. Uma delas precisa desaparecer. (pág. 137)

Viajar proporciona muitas lições a esse respeito. Monumentos à miséria e à maldade humana podem ser encontrados por toda a parte – em prisões, hospitais, patíbulos e mendigos. Em determinado lugar veem-se as ruínas de uma cidade próspera; em outros não é possível sequer encontrar as ruínas – Bayle. (pág. 137)

As tentativas tradicionais de solucionar o problema do mal abandonam a crença na benevolência de Deus. (pág. 138)

Se você disser que Deus permitiu o pecado de modo a manifestar sua sabedoria, que brilha mais em meio às desordens que a maldade humana produz a cada dia do que brilhariam em um estado de inocência, terá a resposta de que isso é comparar Deus, quer a um pai que permita que seus filhos quebrem a perna para poder mostrar a todos sua grande capacidade de consertar seus ossos quebrados, quer a um rei que permite que sedições e desordens se desenvolvam em seu reino para poder assim obter a glória por sua derrota. – Bayle. (pág. 138)

Há o argumento de que precisamos sentir dor de modo a sentir prazer. Bayle achava isso uma bobagem, que contradizia tudo que a Escritura, a razão e a experiência têm a nos ensinar. (pág. 138)

Então não é Deus a causa do mal moral; mas ele é a causa do mal físico, ou seja, da punição do mal moral. (pág. 139)

Se Deus inventou o mal natural como uma punição justa para o mal moral, por que ele inventou o mal moral? (pág. 139)

Aqueles que disserem que Deus permitiu o pecado porque não o poderia ter evitado sem destruir o livre-arbítrio que dera aos homens e que foi o melhor presente que Ele lhes deu se expõem muito. (pág. 140)

Comparado a presentes como esse, o Cavalo de Troia parece benigno. (pág. 140)

Não há boa mãe que, depois de dar às filhas permissão para ir um baile, não a revogasse se tivesse certeza de que elas sucumbiriam à tentação e ali perderiam a virgindade. E qualquer mãe que, tendo certeza de que isso viria a acontecer, lhes permitisse ir ao baile e se contentasse em aconselhá-las a serem virtuosas e em ameaçar deserda-las caso não fossem mais virgens ao voltar para casa atrairia, no mínimo, a justa acusação de que não amava nem as filhas, nem a castidade. – Bayle (pág. 140)

Se Deus pelo menos suspeitasse de que pudéssemos abusar tanto de nossa liberdade a ponto de causar nossa danação eterna, Ele deveria ter guardado seu presente para si. (pág. 141)

A ideia de que Deus não sabia que abusaríamos de seu presente transforma o Senhor dos Exércitos em um lamentável escravo. (pág. 142)

A vontade de aliviar as alegações tradicionais sobre a onipotência de Deus conduz muito rapidamente a um Deus indigno de nossa adoração. (pág. 142)

Um cristianismo que sustenta a benevolência de Deus precisa desistir de Sua onipotência. (pág. 142)

Segundo você, o princípio único, que você reconhece, desejou de toda a eternidade que o homem pecasse e que o primeiro pecado fosse contagioso e produzisse incessante e infinitamente todos os crimes imagináveis por toda a face da terra. Em consequência disso, ele preparou para a raça humana todos os infortúnios possíveis de se conceber durante esta vida – peste, guerra, fome, dor, preocupação – e depois desta vida um inferno em que quase todos os homens serão eternamente atormentados de maneira tal, que nossos cabelos se eriçam ao lermos sua descrição. – Bayle. (pág. 143)

Bayle pensava que ninguém disposto a encarar a experiência poderia pôr o mal em dúvida. (pág. 143)

O impulso de combinar as exigências do bom senso e da razão com as exigências da fé é totalmente razoável. Mesmo assim, é impossível fazê-lo. (pág. 143)

Única prova da existência dos corpo é que, se eles, Deus seria um enganador. (pág. 144)

Os primeiros céticos simplesmente preocupavam-se com a distância entre aparência e realidade. (pág. 145)

Bayle afirmava defender uma tradição cética cristã, com argumentos direcionados apenas à refutação da teologia racionalista. Mas alega-se que ele fez tais afirmações simplesmente para ficar longe da prisão. (pág. 145)

Argumentos céticos como os de Bayle podem fazer-nos seguir em duas direções: rejeitar Deus em geral e qualquer religião em particular, com raiva ou nojo; ou abraça-los em um ato de fé motivado pelo desespero ou pelo êxtase. (pág. 146)

Você pode conservar sua fé em Deus ao mesmo tempo em que reconhece que essa fé está em conflito com a razão e com a experiência. (pág. 147)

Os destinos de Voltaire

O assassinato, a ganância e a guerra ideológica são o motor que move a maior parte do resto do mundo. (pág. 147)

Nada poderia ter sido mais belo, mais enérgico, mais brilhante, mais bem ensaiado do que aqueles dois exércitos. As trombetas, os pífaros, os oboés, os tambores e os canhões produziam uma harmonia como jamais se ouviu no inferno. Primeiro os canhões derrubaram cerca de seis mil homens de cada lado; em seguida, salvas de mosquetaria retiraram do melhor dos mundos cerca de nove ou 10 mil vilões que lhe infestavam a superfície. (...)) Por fim, enquanto os dois reis, cada qual em seu campo, celebravam a vitória mandando cantar Te Deums, Cândido foi continuar seu raciocínio sobre causa e efeito em outro lugar. – Voltaire. (pág. 151)

O livro começa com a Guerra dos Sete Anos, na qual pessoas foram realmente massacradas sem motivo nenhum. A Inquisição realmente queimava desconhecidos em nome de Deus. Os conquistadores europeus realmente assassinaram milhões de habitantes nativos em busca de ouro. Escravos africanos eram realmente mutilados nas colônias de países tão esclarecidos quanto a Holanda, e países progressistas como a Inglaterra realmente executavam seus oficiais por perderem batalhas cruciais. Mulheres são realmente estupradas com enorme frequência durante guerras. Igualmente genuínos são os exemplos menores de males catalogados em Cândido; uma aristocracia tão deselegante e idiota, a ponto de preferir assassinar e morrer a abandonar suas ideias de privilégio; os tipos comuns de roubo e traição dos quais o livro está cheio; acontecimentos naturais como o terremoto de Lisboa e especialmente a cena que vem logo antes dessa, em que a primeira alma genuinamente boa da história se afoga na tempestade da qual um brutamontes sem princípios escapa. (pág. 152)

Se existe uma humanidade comum na adversidade, ela é feita de crimes e infortúnios em comum. (pág. 153)

É a generosidade e a simpatia, e não a arrogância e a presunção que nos levam a protestar contra o mal natural. (pág. 155)

Vistos de altura e distância suficientes, nossos problemas podem ser pequenos e compatíveis com um universo em que tudo é ordenado visando ao melhor. (pág. 156)

Nós, miseráveis animaizinhos, temos o direito de refletir sobre nossa miséria. Um Deus que não consegue fazer isso, mas se limita a observar a distância, como o majestoso e desinteressado Deus do deísmo, é um Deus que deveria ser repreendido por Sua falta de humanidade – na ausência de uma palavra melhor. (pág. 157)

Em seus escritos sobre Lisboa, Rousseau culpava a vítimas. Em seus escritos sobre Lisboa, Voltaire as ouvia chorar. (pág. 157)

Leibniz jamais forneceu uma leitura consistente da afirmação que chamava de seu grande princípio. (pág. 157)

No próprio Cândido, o terremoto é menos horrível do que o subsequente auto-de-fé montado pela Inquisição para evitar maiores desastres. (pág. 161)

O que os homens fazem uns com os outros é muito pior do que o que quer que a natureza faça com eles. (pág. 161)

Voltaire, primeiro intelectual politicamente engajado da época moderna. (pág. 161)

Quando o mal natural se abate sobre nós, os males morais parecem multiplicar-se, e mesmo os mais virtuosos de nós podem perder a confiança quanto à sua capacidade de lutar contra eles. (pág. 161)

Qual o tamanho do seu jardim? (pág. 164)

Trabalhamos sem raciocinar, é a única maneira de tornar a vida suportável! (
Voltaire pelo personagem Martinho) 164

A vida é uma escolha entre “as convulsões da ansiedade e a letargia do tédio” 164

Leibniz afirmou isso com muita clareza, dizendo-nos que, se entendêssemos como Deus fez o mundo, não poderíamos sequer desejar que qualquer coisa nele fosse diferente. Como sublinhou Voltaire, chamar tal doutrina de otimista é altamente enganoso; ela parece, isso sim, destruir qualquer oportunidade de esperança. 164/165

A razão é capaz de explicar o mundo e de ajudar-nos a nos orientar nele. 167

Imperfeição e irregularidade fazem parte do universo. 168

A impotência da razão: David Hume

A religião natural conteria apenas as verdades que pudessem ser fundamentadas na razão pura, sem ajuda da revelação. 169

O assombro e a gratidão diante das maravilhas da Criação eram os motivos para venerar o Deus deísta. E como qualquer pessoa poderia ser levada a tal gratidão pela luz clara da razão, do mesmo modo qualquer um poderia, com algum treino, ser por ela governado. 170

Crianças brincam com pedras preciosas como se fossem bolas de gude. (O Eldorado, no Cândido de Voltaire) 170

A admirabilíssima conservação das espécies nos reinos vegetal e animal, pelo qual cada nova geração reapresenta, a cada primavera, o seu original, renovado e intacto, com toda a perfeição interna do mecanismo. [Perfeição?] 172

É mais provável que o medo de que o argumento do desígnio possa ser falso nos faça rezar do que a convicção de que ele é verdade. 173

Como disse Kant: elogiamos a ordem do universo na esperança de que Deus esteja escutando e nos recompense, fazendo-a funcionar da maneira que queremos 173/174

Hume desconstruía cada tijolo e cada viga que compõem o argumento do desígnio. 174

Nenhuma regra normal de lógica nos diz que os acontecimentos precisam de causas. A afirmação de que todo acontecimento deve ter uma causa não é em si uma afirmação da razão. 174

Se a causalidade nada mais for do que conjunção constante, a própria aura que cerca todas a ideias de Causa Primeira começará a desfazer-se. 174

É melhor que a conjunção seja constante, pois de outro modo não há nenhum testemunho da presença de causas. 174

O que pode ser dito sobre as causas de acontecimentos que só ocorreram uma vez? 175

A religião natural que tentou eliminar o pensamento mágico se revela tão impregnada dele quanto qualquer outra. 175

O que são a luxúria e o adultério ao lado da crueldade e da vingança atribuídas ao Deus de amor cristão? 176

As religiões mitológicas são menos violentas para o intelecto. 176

Atribuem a Deus “a mais baixa das paixões humanas, um apetite inesgotável por aplauso”. (Hume) 176

Comparamos a Criação do mundo à nossa própria criação de artefatos como resultado daquele antropomorfismo incansável que nos leva a ver rostos na lua. 177

Se examinarmos um navio, que ideia exaltada devemos formar quanto à engenhosidade do carpinteiro que construiu uma máquina tão complicada, útil e bela? E que surpresa devemos sentir ao encontrar um mecânico estúpido que imitou outros e copiou uma arte que, depois de uma longa sucessão de épocas, depois de vários testes, erros, correções, deliberações e controvérsias foi melhorando gradualmente? Muitos mundos podem ter sido estragados e arruinado durante uma eternidade, antes de esse sistema ter sido criado: muito trabalho perdido; muitas tentativas inúteis feitas; e uma lenta, mas contínua melhora na fabricação de mundos prosseguiu por épocas infinitas. (Hume) 177

Se algo tão belo quanto uma escuna não pode ser produzido por um só homem, mas requer uma equipe inteira, por que não supor que várias divindades se juntaram para fabricar o mundo? se estamos sendo antropomórficos, por que não fazer a coisa direito? 177

Suponhamos que um cometa fosse a semente de um mundo. 178

Aparências de ordem no mundo não permitem inferências sobre sua causa. 178

Quanto maior e mais grandioso parece o universo, menos ele se parece com um artefato humano. E era nessa semelhança que o argumento do desígnio se baseava. 179

“Eu lhe mostrei uma casa ou palácio em que não houvesse um aposento conveniente ou agradável, cujas janelas, portas, lareiras, corredores, escadas e toda economia do prédio fossem fonte de barulho, confusão, cansaço, escuridão e dos extremos de calor e frio; você certamente culparia o projeto, sem mais nenhuma observação. O arquiteto exibiria em vão sua sutileza e lhe provaria que, se tal porta ou tal janela fosse alterada, males ainda maiores produziriam. O que ele diz pode ser estritamente verdadeiro: a alteração de um pormenor, enquanto as outras partes da construção continuam iguais, podem apenas aumentar as inconveniências. Ainda assim você afirmaria de modo geral que, se o arquiteto houvesse tido habilidade e boas intenções poderia ter formado tal plano de todo e poderia ter ajustado as partes de tal maneira a remediar todas ou a maioria dessas inconveniências. A ignorância dele, ou mesmo a sua própria ignorância em relação a tal plano, jamais o convencerá de sua impossibilidade. Se você encontrar muitas inconveniências e deformidades na construção, sempre condenará o arquiteto sem entrar em nenhum detalhe”. (Hume) 180

“Se um desconhecido caísse de repente neste mundo, eu lhe mostraria, como exemplo de males, um hospital cheio de doenças, uma prisão lotada de malfeitores e devedores, um campo de batalha coalhado de carcaças, uma frota afundando no oceano, uma nação sofrendo com a tirania, a fome ou a pestilência. Para mostrar-lhe o lado alegre da vida e dar-lhe uma noção de seus prazeres – aonde eu deveria leva-lo? A um baile? A uma ópera? À corte? Ele poderia pensar, com razão, que estou apenas lhe mostrando uma forma diferente de pesar e tristeza”. (Hume) 181

Tanto a religião tradicional quanto a religião natural apoiavam-se em um desafio implícito: se você não gosta desse mundo, poderia criar um melhor? 183

Não é preciso estudar engenharia para ver que um edifício é um desastre nem saber consertá-lo para condenar aquele que o construiu. 183

Um construtor realmente perfeito poderia certamente ter criado leis gerais que sempre funcionassem da melhor maneira para todos. 184

Um bom projetista não criaria um universo menos vulnerável ao acidente? Ou garantiria que aqueles que ocorrem fossem benéficos? 185

Os amigos de Jó, como vimos, mencionavam as longas horas que Deus passava tomando conta de Suas outras criaturas e nos alertavam para não exigir uma parte grande demais de Sua atenção. O poder de Deus é tão limitado assim? 185

Um construtor que aceita projetos além de sua competência é imprudente. Boa vontade ou competência? Nesse construtor, uma delas está visivelmente ausente. 185/186

O mecanismo da grande máquina da natureza nunca foi adequadamente ajustado. Ventos podem ser necessários para que a natureza funcione, mas com que frequência eles se transformam em furacões? 186

Tudo no universo pode ter sua vantagem, mas tudo parece trazer desvantagem ao ocorrer nas proporções erradas. Um bom criador cumpriria uma tarefa às pressas, sem verificar suas medidas? 186

“A humanidade trabalhou duro durante muito tempo para preservar a honra dos deuses, pagando o preço da negação da realidade do mal e da desordem que nos cercam”. (Hume)

Se depois de ler Hume você quiser louvar o projeto da Criação e venerar seu Criador, Hume seria o último a detê-lo. De qualquer modo, ele nunca acreditou que a maioria das pessoas fosse movida pela razão. 188

Se você seguir a razão humana, esperará que o mundo seja de um determinado modo. Se abrir os olhos, verá que é de outro. 188

O mundo poderia ter sido criado de forma tão mais razoável, em qualquer sentido da palavra: o fato de não ter sido é a origem do sofrimento diário causado por todas as coisas, do mau humor à tirania. 189

Se você desejar defender a existência e a benevolência de Deus, pode continuar a fazê-lo com fá, sem nada que se pareça com razão. 189

Para a razão, o mal torna-se totalmente incompreensível. Ou os males são próximos da ilusão, e nesse caso não há problema, ou a razão é totalmente impotente, e nesse caso não há resposta. 189

Tentativas de manter distinções fortes entre males naturais e males morais não foram bem-sucedidas. 190

Fim do túnel: o Marques de Sade

A repulsa pela vida torna-se tão forte na alma, que não há um único homem que fosse querer viver de novo, mesmo que tal oferta fosse feita no dia de sua morte. (Citado em Klossowski, 82) 192 [Será mesmo? Dependendo das condições eu toparia!]

O homem nasce livre e está por toda parte acorrentado. 198

Quando despido do caos e da corrupção que os seres humanos criaram ao longo de sua história, o mundo em si é tão bom quanto Deus previu que fosse no dia em que o fez. 200 [Mas não é mesmo! A não ser que deus tenha previsto um mundo pleno de horrores desde o começo]

Sodomia, arte erótica perfeita, exercício antiteleológico por excelência. A sodomia era celebrada porque é estéril; a nada leva e, se praticada de maneira mais ampla, iria contra o próprio interesse de autopreservação da humanidade. Mais razão ainda para promove-la. 200/201

Se até mesmo o mal tem sua finalidade, qualquer crime que você cometa é um tijolo na parede do desígnio providencial. 202

Contar sua história é rebelar-se contra o céu, pois foi o céu que criou um mundo em que tanta virtude é recompensada com tanta infelicidade. 202/203

A Providência é uma ferramenta inventada pelos ricos para fazer aqueles que eles oprimem suportarem tudo em silêncio. 203

A própria vida refuta a Providência, em longas cadeias de sofrimentos sem sentido e sem fim. 204

Quantos tolos têm tanto orgulho de seu compromisso com a ignorância? 206

O assassino só faz transformar a massa de carne que hoje de uma pessoa no monte de vermes de amanhã. A natureza se importa mais com um do que com o outro? (Sade) 206

A virtude e o vício são meras questões de opinião e geografia. 206

A Criação traz a semente de uma maldição. 210

Muito vingativo, muito bárbaro, muito injusto, muito cruel... mais cruel do que qualquer mortal, porque agiria sem quaisquer motivos que um mortal possa ter. (Sade) [Deus seria bem isso, se existisse] 210

Deus é onipotente. Que necessidades podem ser atendidas pela constante humilhação de seres mais fracos que enche o universo? Só a simples ânsia por crueldade pode explicar isso. 210

Não podemos encontrar características de um herói sadiano no Ser retratado no prólogo a Jó, que permite que seu fiel servidor seja torturado em nome de... ? 210

Eu não preciso recorrer nem àquele patife, Jesus, nem àquele insípido romance, a Santa Escritura, meu estudo do universo basta p0ara me fornecer armas para me opor ao senhor. 211

Existe um Deus; a mão de alguém necessariamente criou tudo que vejo, mas criou-o apenas para o mal, o mal é sua essência; e tudo que ele nos faz cometer é indispensável a seus planos. (Sade). 211

O que se chama de bem é apenas fraco, e a fraqueza é um mal em si. (Sade) 212

Em que aspecto de minha conduta você percebeu benevolência? Terá sido quando lhes mandei pestes, pragas, guerras civis, terremotos, tempestades? (Sade). 212

A providência e a tentativa de dar uma forma justa ao destino – ao que quer que lhe aconteça em troca do que quer que você tenha feito. 213

Se existe um Deus, Ele quer as criaturas à Sua própria imagem sádica. 214

Os assassinos existem na natureza assim como existem a guerra, a fome e o cólera; eles são um dos meios de que a Natureza dispõe, como todas as forças hostis que ela lança contra nós. Não podemos açoitar, nem queimar, nem marcar a ferro, nem enforcar o cólera ou a fome, enquanto podemos fazer tudo isso com um homem; é por isso que ele está errado. (Sade) 214

O ato biológico que às vezes leva à concepção não cria nenhuma obrigação. Já que ele é realizado tendo em vista apenas o prazer, não pode ser uma fonte de relação entre as partes envolvidas. (Sade). 216

Hume disse sem se abalar que a razão é incapaz de compreender por que o mundo foi construído com tantos males. Kant argumentou que a razão é incapaz de suportar isso. 217

Se Deus deu-nos a razão, Sua intenção era que a usássemos. 217

Olhos e mãos podem ser testemunhas da criação. Mas se a razão nada faz se não nos levar pelo mau caminho, possuímos pelo menos um órgão contraproducente. 217

Schopenhauer: o mundo como tribunal

[A] vida apresenta-se como uma contínua decepção, tanto em assuntos pequenos quanto grandes. Se ela prometeu, não cumpre sua palavra, a não ser para mostrar quão pouco desejável o objeto era; assim, somos enganados hora pela esperança, ora pelo que era esperado. Se ela deu, o faz de modo a poder tomar. O encantamento da distância mostra-nos paraísos que desaparecem como ilusões de ótica quando nos permitimos ser enganados por eles. Do mesmo modo, a felicidade está sempre no futuro ou, então, no passado, e o presente pode ser comparado a uma pequena nuvem escura carregada pelo vento sobre a planície ensolarada; na frente e atrás da nuvem, tudo é brilho, só ela em si produz sempre uma sombra. (Schopenhauer) 219

Depois de o homem colocar todas as dores e tormentos no inferno, não sobrou mais nada para o céu a não ser tédio. (Schopenhauer) 220

O universo é tão governado pelo sofrimento, que o cristianismo não pode sequer representar a si mesmo a não ser por um símbolo de tortura. 220

A teodiceia é tão obviamente sofista, que deveria ser negada. Schopenhauer, ironicamente, apresentava um argumento de que esse mundo é o pior dos mundos possíveis. Pois um mundo levemente pior deixaria de existir. 220

Por que o universo não rumaria diretamente para a aniquilação à qual tende, poupando-nos toda a tortura pelo caminho? 221

A vida é uma batalha que temos certeza de perder. 221

Schopenhauer orgulhava-se de ser o primeiro verdadeiro ateu da filosofia alemã. 221

As vidas humanas consistem em cadeias de miséria. 222

Ele pensava que algoz e vítima fossem uma só pessoa. 222

Como pode a vida não ser criminosa, quando é sempre seguida por punição capital? 222

A esmola que mantém o mendigo vivo hoje para que amanhã ele possa novamente ter fome. 223

A vida, não Deus, é quem precisa de defesa. 223

[religião] A resposta de quem é incapaz de imaginar um mundo sem um pai gentil, que a tudo vê. 223

Bayle retratou Deus como um pai que deixa seus filhos quebrarem os próprios ossos para mostrar sua habilidade de cura. 224

Mesmo saber que nada sabem nem sempre é garantia de sabedoria nesse assunto. 224

CAPÍTULO TRÊS – FINS DE UMA ILUSÃO

Se nossa vida fosse sem fim e livre da dor, possivelmente não ocorreria a ninguém perguntar por que o mundo existe. (Schopenhauer) 225

O que vemos não está exatamente certo, em ambos os sentidos da palavra. 225

Defender Deus é trair a justiça. 226

Sua transformação do problema do mal leva ao mais radical dos desejos de recriar o mundo. 228

Escolhas eternas: Nietzsche sobre a redenção

Caso tivesse a oportunidade, você viveria sua vida de novo? 228

A maioria das pessoas repetiria vidas contendo a mesma quantidade de bem e de mal, se lhes fosse garantida a variedade da forma. Leibniz considerava isso uma prova de que a quantidade de mal no mundo é menor do que a quantidade de bem. 229

Leibniz não havia dito que o que quer que seja o mal, ele é necessário? 229

Se X males são uma parte necessária do melhor mundo possível, o fato de X ser mais ou menos um (ou 100, ou...) não deveria fazer diferença. 229

Leibniz às vezes deixava o reino da lógica para adotar a persuasão. 229

Voltaire discordava, a maioria de nós, à beira da morte, escolheria ter nossas vidas de volta. Mas isso é um desejo nascido do terror, do medo do desconhecido. 229

Nossa relutância em deixar a vida não é fruto do amor – faz parte da rede de medo e perversidade que nos acompanha do berço ao túmulo. 229

Não existiu ninguém que não tenha desejado mais de uma vez não precisar viver o dia seguinte. (Schopenhauer) 231

Em todas as épocas, os pais sábios tiveram um julgamento idêntico sobre a vida: ela não vale nada. 234

A única desculpa de Deus é que ele não existe. (Stendhal) 237

A visão de males naturais como punição para males morais não foi capaz de sobreviver ao terremoto de Lisboa. 240

Rousseau pegou a ideia de que se sofre pelos próprios pecados e a inscreveu na lei natural. 240

Até termos erradicado o mal que está em nossas mãos, por que se preocupar com o mal que não está? [Porque ele existe!] 240

Desistir do problema do mal significa desistir da oposição que o criou. Isso significa abandonar o contraste entre o ideal, segundo o qual o mal não deveria existir, e o real, que nos lembra que ele existe. 243/244

Se você gosta tanto assim de sofrer, por que simplesmente não vai ser cristão? 245

Leibniz argumentava algumas vezes que os males eram necessários para bens específicos. Lembrava-nos que, de modo a perceber a luz, é preciso haver sombra, que a vida que não contenha nada senão doçura seria enjoativa. É preciso refletir sobre sua escolha desse exemplo. Esse tipo de coisa pode ajudar alguém a se conformar com o mau tempo ou com rejeições por parte de editores. Nem sequer os amigos de Jó tentariam usá-la para casos difíceis. 245/246

O problema do mal diz respeito ao sofrimento sem significado. 247

Insistir na ideia de que a vida se justifica como arte não é encontrar um novo modo de dar significado à vida, mas sim exigir que paremos de procurá-lo. 248

A curiosidade, o falso engodo, a suscetibilidade à sedução, à luxúria – em suma, uma série de afetos proeminentemente femininos. (Nietzsche) 249

Do consolo: Freud vs. Providência

A obra de Nietzsche revelou a ressonância do problema do mal. Muito tempo depois de ele ter sido considerado insolúvel, não o conseguíamos abandonar. Suas origens eram profundas demais, sua órbita ampla demais. Necessidades demais o abasteciam; conceitos demais eram condicionados por ele. Era simplesmente grande demais para ser derrotado pela argumentação – ou mesmo pela morte de seu principal protagonista. – 250

Você está mais inclinado a argumentar que exista razão no mundo nos instantes em que teme que ela não exista. – 251

Podemos nunca vir a entender como tudo acontece visando ao melhor, mas isso não é motivo para parar de tentar. – 251

Kant e Hegel disseram que buscamos nos sentir em casa no mundo. Freud levou a metáfora dos sem-teto a sério e disse que éramos infantis. – 251

Não somos marinheiros aventureiros em mares revoltos – somos apenas crianças perdidas procurando uma proteção que nunca tivemos realmente. – 251

A religião é uma neurose obsessiva universal originada no complexo de Édipo. – 252

Para qualquer outra pergunta exigimos mais provas do que para a Providência. – 252

O homem primitivo bate em seu fetiche quando encontra o infortúnio; o homem civilizado bate em si mesmo. O compromisso de Israel com seu papel de filho predileto de um pai divino não vacilou nem um pouco ao encontrar uma infelicidade após a outra. – 253

Seus deuses foram inventados para cumprir três funções: exorcizar os terrores da natureza, fazer-nos aceitar a crueldade do destino e compensar-nos pelo sofrimento que a própria civilização impõe. – 253

Freud sugeria que a moralidade havia sido inventada para dar aos deuses algo para fazer. Desnecessários em sua primeira tarefa e incompetentes na segunda, eles eram cada vez mais empregados na terceira. Tornar os deuses responsáveis pelos defeitos da civilização legitimando a repressão que sofremos era um uso maravilhoso de poderes de outra forma ociosos. – 254

Nossas crenças podem não ser falsas, mas certamente são humilhantes. Dói perceber que a maioria da humanidade vive com uma visão de mundo estruturada e determinada pelo terror infantil. – 255

A coisa toda é tão obviamente infantil, tão estranha à realidade, que é doloroso para quem quer que tenha uma atitude amigável em relação à humanidade pensar que a grande maioria dos mortais jamais será capaz de se elevar acima dessa visão da vida. É ainda mais humilhante descobrir quantas pessoas que vivem hoje, ao ver que obviamente essa religião não se sustenta, mesmo assim tentam defendê-la pedaço por pedaço em uma série de patéticas ações conservadoras. (Freud) – 255

Somos ameaçados com a infelicidade vinda de três direções: nossos próprios corpos causam dor e acabam causando decadência e dissolução; o mundo externo volta-se contra nós com impiedosas forças de destruição; os outros nos fazem sofrer. – 255

Sentimo-nos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja “feliz” não está incluída no plano da “Criação”. (Freud) – 256

Um terremoto e uma guerra vão contra nossas intenções da mesma maneira e pode causar-nos dor igual. – 256

Insistem em afirmar que o mundo não é o tipo de coisa que tenha a ver com justiça e que quem pensa de outro modo está apenas contabilizando as próprias perdas e lambendo as próprias feridas. – 259

Chamar algo de natural é uma maneira de domesticá-lo. Acontecimentos sobrenaturais têm profundidade e dimensão. Mesmo que ocorram regularmente são experimentados como extraordinários. Acontecimentos naturais são comuns. Somos libertados de pensar neles. Podemos apenas organizar nossas vidas em torno deles da melhor maneira possível – 259

Quanto mais a psicologia lutava para tornar-se uma ciência da natureza, mais a distinção entre mal moral e mal natural se desfazia. – 260

Os próprios humanos tornam-se acusações ambulantes da criação. – 260

Pouco importa se a devastação chega pelas mãos dos saqueadores caldeus ou de um grande vento vindo do deserto. Ambos pertencem a um mundo que é, como sempre, contrário a nós. -261

CAPÍTULO QUATRO - DESABRIGADOS

Adorno escreveu que fazer poesia depois de Auschwitz seria bárbaro; Arendt disse que o impossível se tornou verdade. – 263

O mal contemporâneo deixa-nos impotentes. – 263

A afirmação de que o que restasse da fé religiosa antes de Auschwitz era incapaz de sobreviver a ele tornou-se famosa. – 264

A teodiceia, no sentido estrito, permite ao crente conservar sua fé em Deus diante dos males do mundo. No sentido amplo, é uma maneira de dar significado ao mal que nos ajuda a encarar o desespero. – 264

Lisboa chocou o século XVIII como terremotos maiores e mais destruidores não comoveram o século XX. Embora a Guerra dos 30 anos tenha sido bárbara e devastadora, não deixou seus sobreviventes sentindo-se conceitualmente devastados. Auschwitz deixou. – 265

Lisboa revelou o quão distante o mundo é do humano; Auschwitz revelou a distância dos humanos entre si. – 265

Terremotos: por que Lisboa?

Entretanto, 50 anos antes de Lisboa, um terremoto havia destruído Porto Real, na Jamaica, e nada mais. Não houve nenhum dano conceitual. – 266

Versos sobre os últimos terremotos: dirigidos à Grã Bretanha anunciava que a Jamaica, assim como Sodoma, merecia qualquer destruição que recebesse. – 266

[Por causa do terremoto de Lisboa] A perda de vidas foi menos bem documentada do que a perda de bens, mas mesmo as estimativas conservadoras contam 15 mil mortos. – 267

Durante anos haviam combatido o deísmo, a religião natural e qualquer outra coisa que tentasse explicar o mundo apenas em termos naturais. – 267

Todos, no entanto, estavam longe de defender a posição que hoje nos parece natural: por mais que seja terrível, é só um terremoto. – 268

Nesse momento, teólogos ortodoxos viram o terremoto como um duplo presente do Céu. Punira transgressões específicas, mostrar que Ele ainda desempenhava um papel no mundo. – 268

Tanto dentro quanto fora de Portugal os teólogos aproveitaram a oportunidade para voltar ao tipo de explicação que mal havia começado a sair de moda. “Pensai, ó Espanha, ó Portugal, nos milhares de pobres índios que vossos ancestrais massacraram em nome do ouro. – 268

Os jansenistas usavam o fato de que Portugal era um antro de jesuítas para mostrar que Deus desejava esmagar a Inquisição. Ao escolher o dia de Todos os Santos para desferir Seu golpe Deus assinalava que os próprios santos Lhe haviam suplicado que punisse Lisboa por suas perversões religiosas. Um divino explicou por que tantas igrejas foram despedaçadas enquanto uma rua cheia de bordeis permaneceu em pé: Deus perdoa com mais facilidade as miseráveis criaturas que frequentam tais lugares do que aquelas que profanam Sua própria casa. [Deus nojento! E as crianças que não faziam nenhuma das duas coisas e foram torturadas e mortas também?] – 269

Não foi difícil para o jesuítas reagir com o contra-argumento de que o terremoto era uma reação de Deus a uma Inquisição que se havia tornado frouxa demais – nem suceder o terremoto com um auto-de-fé. – 269/270

Naquele momento específico na Europa, por sua vez, um terremoto foi capaz de fazer tremer as estruturas da fé e de questionar a bondade da Criação. – 272

Uma Criação que fosse boa no início não deveria exigir nenhuma intervenção posterior. – 272

Bebês já haviam morrido em desastres antes; esse desastre levou o empedernido Voltaire a perguntar por quê. Lisboa poderia ser usado, é claro, como uma razão para protestar contra a religião tradicional. Mas existiam razões para protestar antes de Lisboa. – 273

Pombal desejava salvar os cidadãos da doença e da fome; Malagrida desejava salvar almas do inferno. [a doença e a fome eram realidade urgente, do inferno não havia e nunca houve provas] – 274

Depois de Lisboa, até mesmo culturas ocidentais relativamente conservadoras não estavam mais dispostas a tolerar a mão de Deus em suas atividades diárias. – 275

Assassinatos em massa: por que Auschwitz?

A humanidade perdeu a fé no mundo em Lisboa, e a fé em si mesma em Auschwitz. – 276

Para muitos pensadores, a ruína do moderno aconteceu muito antes. A Primeira Guerra Mundial pareceu devastadora além da conta. – 276

Auschwitz é indescritível. O impossível torna-se verdade. - 277

A cisão não foi imediatamente identificada com o nome Auschwitz, que ganhou seu sentido único muito depois. – 277

Durante duas boas décadas, a convicção de que os limites haviam sido ultrapassados de maneiras das quais jamais poderíamos nos recuperar foi mais simbolizada pela palavra Hiroshima do que por Auschwitz. - 277

É preciso um coração mais duro para conduzir uma criança à câmara de gás do que para jogar uma bomba em cima dela. – 277

A maioria das tentativas de afirmar que uma forma de assassinato em massa é pior do que outra é motivada por preocupações políticas, não filosóficas. – 278

O mal contemporâneo toma formas distintamente comuns. – 278

Caso pudesse ser provado que alguma coisa em Auschwitz era essencialmente alemã, a vida seria mais fácil para todos nós. – 280

A teologia forja os limites do mal contemporâneo. – 281

A fé acrítica na capacidade da humanidade de determinar o próprio destino foi destroçada pela Primeira Guerra Mundial, não pela segunda, enquanto sua certeza em sua sobrevivência a longo prazo foi perdida no Japão e não na Polônia. – 282

As ferramentas da civilização pareciam tão impotentes para lidar com aquele acontecimento quanto foram para evitá-lo. – 282

Nenhum pensador de primeira linha propôs novas formas de teodiceia depois de Lisboa. Mesmo os crentes pararam de buscar tentativas sistemáticas de revelar os propósitos de Deus ao permitir o sofrimento individual. – 283

Hegel buscava redimir males específicos inserindo-os na história. Nietzsche argumentou que o problema do mal é uma criação nossa. – 283

Perdas: o fim das teodiceias modernas

Os assassinatos centrais do século XX não foram nem fruto da paixão, nem da ignorância. Superar a paixão e a ignorância, portanto, não trazia mais o mesmo tipo de promessa. – 285

Nem a idade, nem a origem de classe, nem a educação, nem nenhum outro fator claro na história seriam capazes de determinar quem venderia sua alma. – 286

Se a persistência de fatores contingentes no que diz respeito a salvar e destruir vidas distorce o sonho hegeliano de um mundo sem acidentes, ela também mina um pesadelo hegeliano de um mundo sem escolha. – 286/287

A exigência de ignorar o sofrimento individual pelo bem de futuros bens coletivos é sempre problemática. – 288

Pensadores como Adorno, pensavam que o mínimo que se devia àqueles que não haviam escapado era a recusa de aceitar o mundo de seus assassinos. – 288

Depois de Auschwitz, o sistema de Hegel passou a parecer-se com os esforços de Jó: um seguro útil para a possibilidade de Deus estar espiando. Se Ele estivesse, poderia haver uma razão para afirmar que esse processo sangrento é o melhor artifício para fazer a história prosseguir. Para quaisquer propósitos mais diretos, tais tentativas de consolo passaram a parecer formas intoleráveis de negação. – 289

O desejo de desfazer um mal que lhe foi feito no passado é o próprio modelo de uma obsessão sem sentido. Se você não a puder abandonar, estará preso à autoderrota estéril da raiva sem vingança, da dor sem alívio. É exatamente essa imagem que retrata o sobrevivente. – 291/292

Auschwitz, esse sofrimento não criou nada de valor, quer para qualquer indivíduo que o tenha testemunhado, quer para a humanidade como um todo. – 292

As observações nietzschianas sobre a capacidade de sofrer como critério de nobreza se aproximavam perigosamente das visões cristã e estoica às quais ele desejava opor-se. – 292

Todos concluíram que qualquer profundidade, sabedoria ou humanidade que tenha permanecido intacta depois de Auschwitz o fez não por meio dele, pois tudo era , pois tudo era direcionado para sua erradicação. – 293

O mal que busca negar a suas vítimas qualquer condição de ter uma alma não pode de modo algum melhorá-las. – 293

Intenções: significado e malícia

O mal moderno é um produto da vontade. Restringir as ações más àquelas acompanhadas de uma intenção má livrava o mundo de vários males de um modo que fazia sentido. – 294/295

Se nossos erros surgem de um interesse próprio abrutalhado, foi a natureza quem fez de nós brutamontes interessados. – 295

Como pode haver crimes contra a natureza se o mal faz parte da própria natureza? – 295/296

Kant tentou resolver o problema afirmando a existência de um mal radical que não é questão de desatenção nem de inclinação natural abrutalhada. O mal racial envolve o desejo calculado de quebrar a lei moral. A discussão da questão feita por Kant é extremamente decepcionante. – 296

As tentativas tradicionais de estabelecer uma distinção entre natureza e moralidade deixaram muitas questões cruciais em aberto. – 296

Há sempre muito a fazer para eliminar os males que podemos abordar sem nos preocupar com os que não podemos. – 297

A jurisprudência considera crime hediondo aquele cometido com malícia e premeditação. Ambos esses componentes da intenção estavam com frequência ausentes em muitos agentes que conduziam o trabalho do extermínio [nazista]. – 297

A oportunidade de evitar ser mandado para a frente de combate alistou muito mais guardas de campo de concentração do que a oportunidade de atormentar judeus. – 297

Em todos os níveis, os nazistas produziram mais mal, com menos malícia, do que a civilização jamais conhecera antes. – 297

Auschwitz personificou um mal que invalidou dois séculos de pressupostos modernos sobre a intenção. – 298

Édipo é tudo menos o igual de Eichmann, mas seu exemplo nos lembra de que as consequências morais de se ter a intenção de agir de determinada maneira não são mais auto-evidentes do que o conceito de intenção em si. – 299

Mesmo crimes tão imensos a ponto de a própria terra clamar por retribuição são cometidos por pessoas com motivos que não são piores do que banais. Os crimes mais sem precedentes podem ser cometidos pelas pessoas mais comuns. – 300

Eichmann em Jerusalém causou especial indignação alegando que os Conselhos Judaicos foram instrumentais para garantira boa organização do assassinato em massa. – 300

A capacidade nazista de implicar as vítimas ou aqueles que de outro modo permaneceriam observadores inocentes é o aspecto do regime que mais se parece com as formas tradicionais de mal. Se todos os alemães que alegaram ter detestado o regime em segredo estivessem dizendo a verdade, este teria sido incapaz de permanecer no poder por mais de 12 dias. - 301

O que conta não é o que pavimenta o caminho, mas sim a questão de saber se ele conduz ao inferno. – 302

Foi justamente a crença de que ações más requerem intenções más que permitiu aos regimes totalitários convencer as pessoas a passar por cima de objeções morais que, de outro modo, poderiam ter funcionado. – 302

De todos aqueles que poderiam ter-se tornado criminosos, apenas alguns participaram de fato da Solução Final. De todos aqueles que poderiam ter se tornado heróis, menos ainda realmente desafiaram os poderes estabelecidos. – 303

Aqueles que relutam em descrever o bombardeio a Hiroshima como mal ressaltam o fato de que quase qualquer pessoa com alguma responsabilidade nisso agiu a partir de intenções aceitáveis, boas até. – 304

Pensadores pós-Lisboa usavam a intenção como o conceito que determinava o bem e o mal, transformando o que outrora havia sido mal natural em mero desastre e o mal naquilo que era culpa de alguém. – 304

A banalidade do mal é uma expressão nova, mas não é uma descoberta nova. Em Auschwitz, o diabo mostrou o rosto do qual a literatura anterior só fazia suspeitar. – 307

Auschwitz está longe de ter sido o único exemplo de mal produzido pela engrenagem humana – ele é apenas o mais claro. – 307/308

Auschwitz minou a resposta moderna mais comum para o fim da teodiceia, pois, quando a noção de que o mal requer má intenção é colocada em xeque, as tentativas de assumir responsabilidade pelo sofrimento vão parecer precárias. – 308/309

Terror: Depois de 11 de setembro

Pensadores como Voltaire sentiram raiva de Deus por Seu fracasso em sustentar as leis morais elementares que os seres humanos tentam seguir. – 309

Heine escreveu que qualquer pessoa disposta a queimar livros não hesitará em queimar pessoas. A frase foi escrita muito antes de alegres estudantes nazistas empilharem livros banidos em fogueira pública, e sua presciência hoje parece assustadora. – 311/312

Wall Street parecia determinada a mostrar que tudo podia ser comprado e vendido, o Pentágono parecia decidido a renovar a crença pré-socrática de que justiça significa ajudar os amigos a ferir os inimigos. – 312

Esperar que os poderes que controlam sua vida estejam escutando o que você pensa que eles querem escutar é uma busca desesperada de proteção. – 313

Restos: Camus, Arendt, teoria crítica, Rawls

Na verdade, cruamente falando, quase todas as coisas pelas quais os homens são enforcados ou presos por fazer uns com os outros são atos cotidianos da natureza. Matar, o mais criminoso dos atos reconhecidos pelas leis humanas, a natureza comete pelo menos uma vez com todo ser vivente e, em um grande número de casos, depois de extensas torturas do tipo que apenas os maiores dos monstros sobre os quais lemos infringem propositalmente a outras criaturas vivas, suas semelhantes. (John Stuart Mill) – 316/317

A filosofia do século XX não via futuro para a teodiceia e mal percebia seu passado – 317

Subestimar o escopo do problema do mal na história da filosofia torna fácil não ver seus remanescentes no presente. – 318

Como justificação sistemática do sofrimento e da bondade de Deus diante dele, a teodiceia surgiu não com Leibniz, mas sim no livro mais antigo da Bíblia – na pessoa dos amigos de Jó. – 318

Precisamos encarar o mal no mundo sem ceder ao desespero. – 319

Nem mesmo os teólogos de hoje em dia tentam fornecer o tipo de explicação sistemática outrora central. – 319

A peste só pode ser usada para simbolizar o nazismo se os próprios nazistas se tornarem símbolos: símbolos de alguma força destrutiva vaga e brutal que faz parte do mundo e ameaça constantemente destruí-lo. – 321

Sartre chegou a dizer que Camus odiava Deus mais do que odiava os nazistas. – 321

Considerar o nazismo comparável aos micróbios é obscurecer o entendimento. - 321

Camus rejeitava a descrição do mal metafísico como uma finitude abstrata e inofensiva. Para ele, isso era uma tentativa covarde de nos fazer aceitar nosso destino inaceitável. – 322

Toda revolta verdadeira é uma revolta contra a existência da própria morte, pois, como quer que nos leve, ela é má. – 322

[Ivan fala do assassinato de uma criança] Mesmo que mudanças políticas tornem impossível a repetição desse crime, o fato de ele ter ocorrido uma vez é intolerável para Ivan [Karamazov]: recusaria a salvação da humanidade se ela exigisse um sacrifício como esse. – 324

Desespero e sofrimento são acusações às quais nenhuma forma de reordenação social pode responder. – 324

Como Nietzsche, Camus acha que esperar algo melhor é viver em oposição à própria vida. – 324

Era mais o ataque de um adversário às voltas com um inimigo digno do que de alguém decidido a negar sua existência. Camus estava em guerra com a própria ideia da transcendência. – 324/325

O ódio ao Criador não se atreve a se transformar em ódio pela Criação. Caso houvesse um Criador, Ele seria tão impressionante, terrível e infinito quanto a própria morte. – 326

Algumas vezes parece que se deve odiar Deus caso se queira amar Sua Criação. Algumas vezes a raiva de um respingava no outro. – 326

Uma vez que começa a encontrar defeitos no mundo que é dado, você está no caminho da revolta que não pode ser bloqueado. – 327

Aquelas estranhas justificações de Deus ou de Ser que, desde o século XVII, os filósofos consideraram necessárias para que a mente do homem aceitasse o mundo em que deveria passar a vida. (Arendt) – 327

O mal não possui profundidade, nem nenhuma dimensão demoníaca. Pode crescer demais e destruir o mundo inteiro justamente por se espalhar como um fungo por sua superfície. (Arendt) – 329

Se o criador ordena que façamos o bem enquanto ele próprio produz o mal, não seria melhor rejeitar o bem em si? – 330

Sob condições de terror, a maioria das pessoas vai obedecer, mas algumas pessoas não vão. – 331

Os maiores crimes podem ser perpetrados por homens sem nenhuma das marcas do criminoso. O mal não é uma ameaça à razão em si. – 331

Kant enumerou quatro modelos de casas que diferentes tradições afirmavam nos serem oferecidas pelo mundo: uma estalagem barata, uma prisão, um manicômio e uma latrina. – 332

Desde Lisboa, o mundo tem sido objeto de estudo; não é mais, porém, objeto de confiança. – 333

A decência exige que nos recusemos a nos sentir em casa em qualquer estrutura específica que o mundo forneça para nos domesticar. Exige também que nos recusemos a nos sentir em casa em nossos próprios corpos. – 334

Adorno escreveu que Auschwitz havia, por si só, estabelecido um novo imperativo categórico: agir de tal maneira que Auschwitz jamais se repita. – 336

Só quando aquilo que é pode ser mudado é que aquilo que é não é tudo. (Adorno) – 336

Ao insistir em afirmar que os campos da morte transformavam a morte em algo que ela jamais havia sido, Adorno reiterava que a morte em si é um problema para o qual não existe nem significado nem conforto. – 337

Nenhuma vida jamais é suficiente para concretizar o potencial que ela contém. – 337

Depois de uma das mais assustadoras descrições da vida em Auschwitz, ele [Jean Améry] escreveu um livro argumentando que nada do que havia testemunhado ali se comparava ao horror do processo universal de envelhecimento e morte. – 338

Os fatos naturais são contingentes. Quando permitimos a esses fatos que conservem significado social, aquiescemos à injustiça. – 341

Quanto mais sabemos sobre a história da filosofia e sobre a história em si, mais se multiplicam as razões para nos recusar a negociar a aceitação. – 342

Origens: razão suficiente

Ensinar às crianças a serem decentes é uma questão de ensiná-las que o mundo não funciona recompensando-as com prêmios por trabalhos bem-feitos e insistir para que os façam mesmo assim. – 348/349

É difícil o suficiente ver Kant, por exemplo, limitado pela teologia filosófica que sua própria metafísica minava. – 349

A ânsia de unir ser e dever ser está por trás de toda empreitada criativa. – 352

A crença de que possa haver razão no mundo é uma condição da possibilidade de sermos capazes de continuar nele. – 353

Experimentar a própria vida como punição é mais fácil do que experimentá-la como desprovida de sentido. – 353

Se você não consegue entender por que crianças são torturadas, nada mais que entenda realmente importa. – 355

A luta intelectual é mais importante do que quaisquer resultados específicos que dela surjam. – 355

Caso nos oferecessem uma explicação mostrando que Auschwitz faz parte da ordem das coisas, a maioria de nós rejeitaria. Porém, qualquer explicação do mundo que o ignore valerá muito pouco. – 356

Entre o adulto que sabe que não encontrará razão no mundo e a criança que se recusa a parar de procurá-la reside a diferença entre a resignação e a humildade. – 357






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