Tudo é rio - Carla Madeira

 


Qualquer pessoa de bem tolera as putas, com a condição de sentir pena delas.

As senhoras mais respeitadas se uniam para exigir de Deus que tornasse difícil a vida fácil dela.

O amor tem nome, mas não é nada que a gente possa reconhecer só de olhar.

Para as putas, basta a Deus um coração puro, outras partes podem ser lambuzadas.

Sabiam por experiência própria que não se deve aumentar uma dor sem tamanho.

Felicidade em demasia é dívida que não se pode pagar. A conta viria.

Cada pai, uma esperança.

Se achava dona da palavra do Senhor por saber de cor a palavra escrita por homens.

Boas punições são as que fazem sofrer. A vara educa. Tia Duca acreditava mais nisso do que em Deus.

Não mentia, nem quando escondia seu despeito, nem quando se mostrava exageradamente feliz. Estava mesmo sofrendo de contradições.

Duas mães pedem a Deus, com devoção extrema, que livre seus filhos da dor. Pedem todos os dias saúde e proteção para eles. Suplicam, sem coragem de duvidar que serão atendidas. Reconhecem humildes que amor demais é um despreparo para a dor.
O filho de uma delas morre de maneira cruel e covarde. O filho da outra prossegue forte e abençoado.
A boa mãe do filho vivo agradece todos os dias. Não se cansa de dar graças: Deus é tão bom pra mim!
Que testemunho sobre Deus a outra boa mãe, que sofre a perda brutal de um filho, deveria dar?
As duas mulheres rezaram tanto, pediram com fé sincera. Sempre amaram o próximo, não roubaram, foram dedicadas e fiéis a seus maridos. Nunca mataram e amaram a Deus sobre todas as coisas. Não deveria Deus, em sua imensa bondade, proteger os filhos das duas?
Para uma delas, todas as bênçãos; para a outra, o maior dos sofrimentos. De que é feita então a justiça divina? De mistérios que devemos engolir como saliva?
Se Deus sabe o que faz, e sempre faz o que quer, para que servem a prece e o fervor de quem suplica? A vida revela sem constrangimento que alguns são ouvidos, outros não.
Se o exemplo vem de Deus, se devemos buscar ser sua imagem e semelhança, que exemplo Deus nos dá quando uns se tornam mais merecedores do que outros?
Alheias a qualquer pergunta, algumas mães de filhos mortos encontram força em acreditar que a vontade de Deus anda sempre junto com sua bondade. Não compreendem, mas aceitam humildes a provação.
O sofrimento, por uma insanidade humana ou por uma perversidade divina, tem valor. Assim creem os que creem. A dor sem tamanho afasta a coragem de não crer.
Outras mães desistem. Não podem mais se entregar a uma fé que não explicam. Não sentem a bondade atrás da vontade de Deus.

Presos no desamor, viviam acorrentados como quem ama.

Nunca tinha sentido aquilo, uma vontade de correr nas duas direções, a que junta e a que separa.

Crescer nunca foi fácil, tem hora que o amor pode doer mais do que a dor. De dente, inclusive.

Não tem juízo que interrompa quem adoece de saudade.

Um dia feliz tem mais poder que a tristeza de uma vida inteira. Nele moram as reviravoltas.

Os lábios dele tocaram de leve nos lábios dela, como o pouso de mil borboletas brancas. É para coisas assim que nascemos. Quem para o tempo nesse sentir sai diferente.

O amor, quando nasce forte, tem pressa de ser eterno. Nem se dá conta de que é carne úmida.

E é claro que ignorar o resto do mundo incomodou o resto do mundo, sempre incapaz de tolerar doses tão abundantes de felicidade.

O amor não é incondicional coisa nenhuma, tem suas fragilidades de matéria orgânica. Estraga, esgarça, rasga, inflama, acaba.

Eu e Antônio estamos casados há vinte e seis anos. Nem sempre é bom, nem sempre é ruim. Desconheço a balança que mede isso. É o que é, aceito, rejeito, mas não escolho mais tirar de mim esse amor entranhado, pertence a lugares em mim que não mando mais. Não quero viver sem Antônio, me caso todos os dias com ele, acordo e caso, depois faço o café. Não é bom todo dia, mas é bom toda a vida.

O que mais existe no mundo são pessoas que nunca vão se conhecer. Muitos desses encontros destinados a não acontecer poderiam ter sido arrebatadores. Quanto amor se perde nessa falta de sincronia. É preciso uma coincidência qualquer para que o amor se instale. Existe um certo milagre nos encontros.

Do lado dela gostou de ser ele.

Preconceitos que uma cidade que vive entre a igreja e a zona costuma ter. De um lado, um Deus alcoviteiro, capataz, com um caderno de notas na mão registrando cada deslize, especialmente o das mulheres; do outro, um Deus permissivo, vista grossa e cúmplice dos homens.

Aprendeu que a verdade não tem dono, que é duro demais existir e que ninguém precisa ajudar ninguém a sofrer.

Sentiu que não ia poder proteger Dalva de mais nada e isso, para uma mãe, é uma espécie de adoecimento.

Na zona, o corpo é a alma do negócio.

Ali, prefeito ou faxineiro tinham o mesmo prestígio: nenhum.

Cada um só enxerga o que vê da própria janela.

A homaiada besta continuava na fila, esperando Lucy desadoecer.

Somos feitos do bom e do ruim em porções imprevisíveis.

A liberdade é uma conversa fiada, é palavra de efeito, sempre no meio de uma frase para impressionar os desatentos, no fundo estamos presos à incapacidade de ser outra coisa diferente do que somos, do que a história da gente tramou.

O perdão não muda o passado.

O amor é alegre, Venâncio, se não é alegre, não é amor.

Do sentir para o consentir é só um tombinho de nada, basta um descuido.

A falta de ar, de sol e principalmente de movimento tem o poder de estragar as coisas e faz sem dó o mesmo com a gente.

Algumas vezes as mudanças acontecem na marra. Uma guilhotina afiada corta as nossas mãos, e todas as rédeas escapam. É o que pensamos ter acontecido, até que a gente se dá conta de que nunca houve rédeas. Ninguém monta na vida.

Brincamos de escolher, brincamos de poder conduzir o destino. Precisamos dessa ilusão para viver os dias.

Tinha experimentado as primeiras gotas, queria o temporal.

Os bebês nascem sabendo seduzir, são competentes sem esforço nenhum.

O amor é alegre, disse Aurora. Para que serve o amor se não é para trazer a alegria para perto? A tristeza escraviza, nos faz dependentes de que alguma coisa aconteça, nos obriga a esperar por um olhar, um movimento, uma coragem, um amanhecer qualquer que limpe nossas águas e nos devolva a liberdade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GÊNEROS LITERÁRIOS - Angélica Soares

O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS - Douglas Adams

DO GROTESCO E DO SUBLIME de Victor Hugo