A VIDA INVISÍVEL DE ADDIE LARUE



Depois, o pai vai ensiná-la a desenhar as letras. A mãe vai ter um ataque quando descobrir e acusá-lo de lhe dar outra maneira de ficar à toa e desperdiçar as horas do dia.

Pela primeira vez na vida, Adeline vai dormir em uma cama desconhecida, acordar com sons e aromas desconhecidos e, durante um momento, tão breve quanto um bocejo, não vai saber onde está e seu coração vai bater acelerado — a princípio pelo medo, e depois por um motivo diferente. Algo que ela ainda não sabe como descrever. Quando eles finalmente voltarem para casa em Villon, Adeline já vai ser uma versão diferente de si mesma. Como um cômodo com todas as janelas abertas, ávidas por deixar o ar fresco, a luz do sol e a primavera entrarem.

— Pedi aos deuses do rio que façam com que as coisas fluam bem. Eles são bons nisso.
— Mas por que você deu a sua xícara para eles?
— Porque os deuses são gananciosos, Addie.
— Como é que você reza?
— Com oferendas e louvores, mas mesmo assim os deuses antigos são volúveis. Não são obrigados a atender as preces.
— E aí o que você faz?
— Você segue a vida.

Adeline está com dezesseis anos, e todo mundo fala sobre ela como se fosse uma flor desabrochando no verão, algo para ser arrancado e colocado em um vaso, destinado simplesmente a florir e, depois, a apodrecer.

Addie teve trezentos anos para aprimorar a arte do pai, para reduzir a si mesma a algumas verdades essenciais, para aprender quais são as coisas sem as quais não pode viver. E foi isto que estabeleceu: consegue ficar sem comida (não vai definhar). Consegue ficar sem calor (o frio não vai matá-la). Mas uma vida sem arte, sem deslumbramento e sem beleza a deixaria louca. Já ficou louca uma vez. Ela precisa de histórias. Histórias são um modo de se preservar. De ser lembrada. E de esquecer. As histórias vêm à tona em diversos formatos: desenhos, canções, pinturas, poemas, filmes. E livros. Ela descobriu que os livros são uma maneira de se viver milhares de vidas diferentes — ou de encontrar forças para viver uma muito longa.

Quando ainda era uma criança e o mundo, pequeno. Quando ela sonhava com portas abertas.

Sou de carne e osso, humana, e te conheço a minha vida inteira. Você faz amuletos no formato de crianças para que elas fiquem saudáveis durante o inverno. Acha que pêssego é a fruta mais doce de todas, e que as paredes da igreja são grossas demais para que as orações passem por elas.

Houve momentos em que desejou que sua memória fosse mais volúvel, em que teria dado tudo para se deixar levar pela insanidade e desaparecer. É a estrada mais fácil, aquela em que você se perde.

Sempre foi apaixonada por museus. São espaços em que a história é contada fora do lugar onde aconteceu, em que a arte é organizada.

— Quer saber a coisa mais legal sobre os planos? — diz Bea, colocando um dos braços ao redor de seu ombro. — É que você pode remarcar alguns para outro dia.

Henry se pergunta se algumas pessoas são inerentemente estilosas ou se são apenas disciplinadas o bastante para fazer a curadoria de si mesmas todos os dias.

Muriel sempre foi como um perfume muito forte. Melhor em pequenas doses. E a certa distância.

Uma dupla de manequins exibindo as roupas da última moda. O tipo de vestido que requer pelo menos dois pares de mãos para vestir e dois para tirar: quadris reforçados, mangas bufantes e espartilhos tão apertados que é impossível respirar. Nesta época, a alta sociedade de Paris é embalada como pacotes que evidentemente não devem ser abertos.

— Qual é o seu nome? Ele desvia os olhos do aposento e volta a atenção para ela.
— Por que eu deveria ter um nome?
— Todas as coisas têm um nome. Nomes têm propósito. Nomes têm poder. — Ela inclina a própria taça na direção dele. — Você sabe disso, ou não teria roubado o meu.

Vê a si mesma definhando na videira da vida e dando os mesmos passos que qualquer um em Villon daria, percorrendo o mesmo caminho curto do berço ao túmulo, com a pequena capela à espera, imóvel e cinzenta como uma lápide.

A escuridão afirmava que tinha lhe concedido a liberdade, mas na verdade isso não existe para uma mulher, não em um mundo em que elas são aprisionadas em suas roupas e deixadas de lado, dentro de casa, não em um mundo que só os homens têm permissão de perambular por onde querem.

— Acho que as coisas são mais fáceis para os homens.
— São mesmo — admite, antes de acenar com a cabeça para a vestimenta dela — Mas — diz, com um sorriso travesso — você não me parece ser uma pessoa fácil de domar. Aut viam inveniam aut faciam, e por aí vai. Addie ainda não sabe falar latim, e ele não traduz a frase, mas daqui a uma década, a garota vai procurar as palavras e entender o seu significado. Encontrarei um caminho, ou criarei um próprio.

Amanhã, é uma palavra para coisas que ainda não aconteceram. Uma palavra feita para o futuro.

Um encontro é algo que foi marcado, planejado; não é uma oportunidade surgida do acaso, mas uma data que foi reservada em algum ponto do passado para acontecer em um momento no futuro.

Cidades pequenas propiciam vidas pequenas. E algumas pessoas não se incomodam com isso. Gostam de saber onde estão pisando. Mas se você só segue os passos dos outros, não pode encontrar o próprio caminho. Não pode deixar a sua marca.

A comida é um dos maiores prazeres da vida. Não simplesmente a comida. Mas a comida boa. Existe um abismo enorme entre a nutrição e a satisfação. Muitos aspectos da vida se tornam rotineiros, mas a comida é como a música, como a arte, sempre traz a promessa de algo novo.

A sensação de barriga cheia é como tudo na sua vida. Sempre passa cedo demais. Mas é assim que você anda até o fim do mundo. É assim que você vive para sempre. O primeiro dia emenda no segundo, e depois vem mais outro; você pega tudo o que pode, aproveita cada segundo roubado, se agarra a cada momento, até que tudo termine.

Uma vez, viu um pedaço de carne amarrado com ervas, pronto para entrar no forno, e aquilo a lembrou da moda atual da França.
[“atual” aqui se refere aos anos 1700]

— Como? Por quê? As perguntas mais curtas. A resposta mais comprida. Porque eu fui uma tola. Porque eu estava com medo. Porque eu não tomei cuidado.

— Eu estou bem — diz, do jeito automático que as pessoas costumam responder sempre que você pergunta como elas estão, embora estejam com o coração dilacerado.

Neste momento, há um abismo entre as palavras deles e os ouvidos de Henry, entre as mãos deles e a sua pele. Estão bem aqui, mas parecem muito distantes.

Existem centenas de tipos de silêncio.

Eu me lembro de olhar a imagem e pensar que as fotos não expressam nenhuma verdade. Não têm nenhum contexto, só a ilusão de que você está capturando um momento da vida de alguém, mas a vida não é uma coleção de retratos instantâneos, a vida é fluida. Então fotos são como uma ficção. É o que eu mais amava sobre elas. Todo mundo acha que fotografias retratam a verdade, mas elas são só uma mentira muito convincente.

O tempo não funciona do mesmo modo que as fotos. Elas ficam imóveis depois de um clique. Mas em um piscar de olhos, o tempo dá um salto adiante.

A dor é capaz de te afetar quando você está acordado, mas também de se infiltrar nos seus sonhos.

Não quer mais ficar ali, em um apartamento que lhe parece, de algum jeito, vazio e entulhado de coisas ao mesmo tempo. Há espaço demais para pensar. Mas não o bastante para respirar.

Ele ama a sua família, de verdade. Só não gosta deles. Não gosta de quem ele é quando está com os parentes.

Depois de escolher uma aula, você escolhia uma disciplina; depois de escolher uma disciplina, você escolhia uma carreira; e depois de escolher uma carreira, você escolhia uma vida; e como é que alguém poderia fazer isso quando só se tem uma vida?

Addie foi ensinada desde criança a se ajoelhar na pequena capela de pedra no centro de Villon, e passou vários dias encolhida nos bancos das igrejas de Paris. Ouviu os sinos e o órgão tocando, e os chamados para as orações. Porém, apesar de tudo, nunca compreendeu o apelo. Como ter um teto sobre sua cabeça poderia te levar para mais perto do céu? Se Deus é tão magnífico, por que construir paredes para abrigá-Lo? — Ela queria acreditar. Prestou atenção, à esperança de ouvir a voz d’Ele e sentir Sua presença, como sentiria o sol nos ombros ou o trigo nas mãos. Do mesmo modo como sentia a presença dos deuses antigos que Estele tanto apreciava. Mas, dentro da casa fria de pedra, Addie nunca sentiu nada. — Eu nunca entendi por que devia acreditar em algo que não podia sentir, nem ouvir, nem ver.
— Uma casa é só uma casa — retruca ele, irritado. — Esta aqui pertence a todo mundo, ou não a ninguém.

Bem, diabo é só uma palavra nova para um conceito muito antigo. E quanto a Deus, pode servir se você só precisa de um pouco de drama e um bom acabamento em dourado…

Todos os deuses têm o seu preço. Estou longe de ser o único a negociar almas. Ele deixa as almas definharem numa estante. Eu as rego. Ele faz promessas. Eu pago adiantado.

Addie sempre se perguntou como seria a aparência de uma alma. Alma é uma palavra tão grandiloquente. Como deus, tempo ou espaço; e toda vez que tentava visualizar a sua aparência, evocava imagens de relâmpagos, de raios de sol atravessando a poeira, de tempestades na forma de seres humanos ou de uma brancura vasta e ilimitada.

Depois que você descobre algo que ninguém sabia, começa a reconhecer o padrão por toda parte. Alguém diz “elefante roxo”, e de repente você vê elefantes roxos nas vitrines das lojas, estampados em camisetas, em bichos de pelúcia e em cartazes, e fica se perguntando como nunca tinha reparado neles antes.

As lembranças são firmes, mas os pensamentos são mais livres. Fincam raízes, se espalham, se emaranham e, por fim, se desvencilham da sua origem. São espertos e teimosos.

Os dois têm tido muita sorte, mas o problema é que a sorte sempre acaba.

A coisa mais perturbadora sobre o tempo é que nunca é o bastante. Talvez seja abreviada por uma década, ou talvez por apenas um momento. Mas a vida de uma pessoa sempre acaba cedo demais.

Quando ele perguntou a Addie quando era o aniversário dela e a garota disse que foi em março, uma sombra perpassou o seu rosto.
— Desculpa ter perdido.
— A melhor coisa dos aniversários — disse ela, recostando-se nele — é que acontecem todos os anos.

— Por que uma pessoa trocaria uma vida inteira de talento por poucos anos de glória?
— Porque o tempo é cruel com todo mundo, sobretudo com os artistas. Porque a visão enfraquece, as vozes definham, e o talento desaparece. Porque a felicidade é breve, mas a história é duradoura e, no fim, todo mundo quer ser lembrado.

— O que aconteceu?
— Nada. Eu só estava pensando — responde ele, baixinho. Addie viveu tempo suficiente para reconhecer uma mentira. A mentira é uma linguagem por si só, assim como a linguagem das estações, ou dos gestos, ou dos tons de verde nos olhos de Luc.

Está caindo o mundo em Villon. A árvore não existe mais. Resta apenas um toco serrado. Qual é o sentido de plantar sementes? Para que cuidar delas? Para que ajudá-las a crescer? No fim, tudo desmorona. Tudo morre.

— Eu detesto a guerra — diz, soturno.
— Eu achava que você gostasse de conflitos.
— O pós-guerra sempre impulsiona as artes. Mas a guerra transforma os cínicos em crentes e aduladores desesperados por salvação.

Nesta época, os bares clandestinos são como ervas daninhas, brotando entre as pedras da Proibição. Este não tem nome, e a única indicação é o anjo com o cálice e o número XII acima da porta — doze, a hora que marca o meio-dia e a meia-noite.

— Eu juro, Adeline, poucos são tão irritantes quanto você.
— Poucos? Vou ter de me esforçar mais — provoca ela.

A maioria das guerras não acontecem da noite para o dia. Elas são engendradas com o passar do tempo, enquanto os lados coletam a lenha e avivam as chamas.

Sabe que o tempo sempre acaba um segundo antes de você estar pronto. Sabe que a vida dura os minutos que você quer menos um. Ninguém nunca está pronto para morrer. Nem mesmo quando acha que quer morrer. Ninguém está pronto.

A mente vai afrouxando o domínio sobre o passado para abrir caminho para o futuro.

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