DISCURSO DO MÉTODO


Prefácio:


Falsamente esperançado em que no ambiente protestante desse país, por que se batera, encontraria a liberdade e a segurança necessárias à realização duma obra cujas teses fundamentais continham em si, implicitamente, a negação dos valores da cultura filosófica oficial e tradicional, cultura que era tanto mais arriscado atacar, quanto é certo que a dogmática cristã a adotara para sua estrutura racional.

A condenação de Galileu, a 23 de junho de 1633, por ter ousado defender a hipótese coperniciana do movimento da Terra, hipótese que para Descartes era uma das pedras angulares da sua Física, traz-lhe a mais profunda desilusão da sua vida, o reconhecimento da impossibilidade de, sem perigo, poder tornar conhecida do público a obra que, num concentrado e sereno orgulho, julgava ser o testemunho irrefutável da fecundidade inexaurível do método que descobrira.
[Sabendo disso, fica difícil ler Descartes sem se perguntar MUITAS VEZES se o que ele está dizendo é mesmo o que ele queria dizer, principalmente quando ele fala em deus]

Compreende-se que a sua firme convicção de ter chegado ao conhecimento racional da estrutura íntima dos fenómenos da vida lhe tivesse feito nascer o sonho grande dum possível triunfo sobre a morte, pelo menos sob a forma dum indefinido prolongamento da vida, pois conhecer um fenómeno é dominá-lo, evitando ou não a sua produção pelo manejo da causa ou causas que o provocam.

Em 1649, aparece a sua última obra, o Tratado das Paixões, em que se revela o seu inabalável convencimento de ter chegado ao conhecimento da estrutura íntima do corpo humano, máquina em que tudo se explica em termos de pura mecânica, [...] se descortina a melancólica desconfiança da impossibilidade de dominar por completo essa máquina e da necessidade de, numa atitude de renúncia que nos exalta em vez de aviltar, encontrarmos o meio, mão de conservar a vida, mas de não temer a morte».

Morre, vítima duma pneumonia, em 11 de fevereiro de 1650, o imortal fundador da filosofia moderna.

O problema central da sua filosofia, é o da legitimidade dos juízos de existência ou, por outras palavras, o da passagem do pensamento ao ser.

O pensamento antigo era um realismo mais ou menos ingénuo que dogmaticamente partia do postulado prático de que essa realidade existe fora de nós.

À atitude dogmática do pensamento antigo a filosofia moderna opõe uma atitude crítica. E foi Descartes que lhe imprimiu, essa nova direção, o que lhe dá direito ao título de fundador da filosofia moderna.

Descartes foi uma imperiosa necessidade de simplicidade e de clareza no domínio do pensamento. Ele só aceita como certo e existente o que tem a simplicidade e a clareza da evidência racional. Essa profunda exigência leva-o a aceitar um novo dogmatismo, o da absoluta racionalidade do real, e a partir em demanda duma realidade que seja tal, não porque os sentidos a percebam ou a inteligência a contemple, mas porque a razão a garante.

Só devemos aceitar como objetivamente existente aquilo de que tenhamos um conhecimento tão claro e evidente que a mais exigente dúvida não possa abalar. A realidade sensorial desaba como uma quimera, e o próprio mundo da evidência racional, rui também.

É no próprio momento em que parece naufragar num oceano de aparências desfeitas que uma primeira verdade se lhe depara, a da existência do pensamento ou atividade que duvida. O Penso, logo existo. Duvidar dessa afirmação é ainda corroborar a existência do pensamento, no seu novo ato de duvidar.

Parte para a reconstrução da realidade, possuindo agora um critério de seleção que lhe permitirá só aceitar como verdadeiros os juízos de existência que apresentem a clareza e a distinção desse primeiro.

Contudo, só os poderemos aceitar como verdadeiros quando a hipótese dum Génio malicioso for tornada absurda pela certeza da existência dum Deus que, incapaz de nos enganar, como Ser absolutamente perfeito que é, venha servir de garantia última ao valor existencial dos juízos claros e distintos.
[O problema é que ele não passa a existência de Deus por esse crivo, daí que, sem provar a existência de Deus, não tem como afirmar mais nada, e todo o seu arcabouço racional está desmoronado, ou no mínimo muito capenga]

Como só é real o que é racional, o universo cartesiano aparece muito diferente do universo sensível, toda a ciência moderna, sob o signo de Descartes, num esforço de desantropomorfização, na expressão feliz dum dos seus mais categorizados representantes, tende a apreender a realidade tal qual ela é em valor objetivo, e não tal qual se apresenta aos sentidos,

Na opinião de Kuno Fischer o cartesianismo é a origem e a condição necessária do ocasionalismo de Malebranche, do monismo de Espinosa, da monadologia de Leibniz, do sensualismo de Locke, do materialismo de La Mettrie, do idealismo de Berkeley e do criticismo de Kant.

Texto:

O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída, porque cada qual pensa ser tão bem provido dele que mesmo os que são mais difíceis de contentar noutras coisas não costumam desejar mais do que o que têm.
[Eu já desejei mais do que tenho. Muitas vezes!]

O poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se chama o bom senso ou razão, é naturalmente igual em todos os homens.

A diversidade das opiniões não resulta de conduzimos os nossos pensamentos por caminhos diversos, e não consideramos as mesmas coisas. As grandes almas são tão capazes dos maiores vícios como das maiores virtudes; filósofos dizem não existir mais ou menos senão entre os acidentes e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos duma mesma espécie.

Olhando com olhar de filósofo as diversas ações e empreendimentos de todos os homens, não há quase nenhuma que não me pareça vã e inútil.

Sei quanto estamos sujeitos a enganarmo-nos no que nos diz respeito e quanto também nos devem ser suspeitos os juízos dos nossos amigos quando a nosso favor.

Os que se abalançam a dar preceitos devem considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem os dão.

Nutri-me de letras desde a minha infância, terminei este ciclo de estudos, no termo do qual é costume ser-se acolhido na categoria dos doutos, me parecia não ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais a minha ignorância.

A leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as mais honestas pessoas dos séculos passados, uma conversa preparada, na qual eles não nos revelam senão os seus melhores pensamentos.

A filosofia ensina a maneira de falar com verossimilhança de todas as coisas; as outras ciências trazem honras e riquezas a quem as cultiva; mesmo as mais supersticiosas e as mais falsas, a fim de conhecer o seu justo valor e de evitar o ser-se enganado por elas.

Mesmo as histórias mais fiéis, omitem quase sempre as mais baixas e menos ilustres circunstâncias.

Os que têm o raciocínio mais forte, e melhor digerem os seus pensamentos, a fim de os tornar claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor.

Agradavam-me sobretudo as matemáticas, mas não notara ainda a sua verdadeira utilidade.

Considerando quantas opiniões diversas, sustentadas por homens doutos, pode haver sobre uma mesma matéria, sem que mais duma possa ser verdadeira, reputava quase como falso tudo o que era apenas verosímil. E finalmente, quanto às más doutrinas, julgava conhecer suficientemente o que elas valiam, de modo a não estar sujeito a ser enganado, nem pelas promessas dum alquimista, nem pelas predições dum astrólogo, nem pelas imposturas dum mago, nem pelos artifícios ou gabarolices de qualquer daqueles que fazem profissão de saber mais do que na realidade sabem.

Em mim era sempre grande o desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso, para ver claro nas minhas ações e caminhar com segurança na vida.

Muitas coisas que nos parecem muito extravagantes e ridículas não deixam de ser comumente aceitas por outros grandes povos.

Muitas vezes não há tanta perfeição nas obras compostas de várias peças e feitas pela mão de vários mestres como naquelas em que só um trabalhou.

É quase impossível que os nossos juízos sejam tão puros e tão sólidos como seriam se tivéssemos todos desde o nascimento o uso inteiro da razão, e não tivéssemos sido conduzidos senão por ela.

Quanto às opiniões que até então aceitara como verdadeiras, persuadi-me de que nada de melhor poderia fazer que dispor-me a suspender a sua aceitação, a fim de as substituir por outras melhores, ou de as aceitar de novo, depois de as ajustar ao nível da razão.

Acreditei firmemente que conseguiria conduzir a minha vida muito melhor se me apoiasse sobre os princípios por que me tinha deixado persuadir na mocidade, sem nunca ter examinado se eram verdadeiros.
Estes grandes corpos é muito difícil levantá-los de novo, quando abatidos, ou mesmo mantê-los, quando abalados, e as suas quedas não podem deixar de ser muito violentas.
Além de que, pelo que respeita às suas imperfeições, se as têm (e a diversidade que entre eles existe basta para mostrar que as têm), são quase sempre mais suportáveis que o não seria a sua mudança.
[Traduzindo: Ele “questiona tudo o que dizem que existe” sem questionar as principais bases dessas afirmações]

Nunca o meu intento foi mais longe que procurar reformar os meus próprios pensamentos, e construir em terreno que é todo meu.

Nada se pode imaginar de tão estranho e de tão pouco aceitável que já não tenha sido dito por qualquer dos filósofos.

Os que têm sentimentos muito contrários aos nossos nem por isso são bárbaros ou selvagens, antes muitos usam, tanto ou mais do que nós, da razão.

Um mesmo homem, com o seu mesmo espírito, sendo educado desde a infância entre franceses ou alemães, se torna diferente do que seria se tivesse vivido sempre entre chineses ou canibais.

A mesma coisa que nos agradou há dez anos, e que nos agradará talvez antes de outros dez, nos parece agora extravagante e ridícula, são bem mais o costume e o exemplo que nos persuadem do que qualquer conhecimento certo.

A diversidade das leis serve muitas vezes de desculpa aos vícios, de sorte que um Estado é bem melhor administrado quando, tendo embora muito poucas, se aplicam rigorosamente.

Nunca aceitar como verdadeira qualquer coisa sem a conhecer evidentemente como tal.
[Exceto a “verdade” da existência de deus]

Todas as coisas que podem cair sob o conhecimento do homem se encadeiam da mesma maneira e que, contanto que simplesmente nos abstenhamos de aceitar como verdadeira nenhuma que o não seja, e que observemos sempre a ordem necessária para as deduzir umas das outras, nenhumas pode haver tão afastadas a que não se chegue por fim, nem tão ocultas que não se descubram.

Entre todos os que até aqui procuraram a verdade nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações.

Nenhuma outra vantagem a não ser a de habituarem o meu espírito a nutrir-se de verdades e a não se contentar com falsas razões.

Existindo apenas para cada coisa uma verdade, quem quer que a encontre sabe dela tudo o que pode saber.

A primeira era obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião em que Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância.
[Se não coloca uma coisa em dúvida, não colocou tudo em dúvida, oras!]

Começando desde esse momento a não contar para nada com as minhas próprias opiniões, parecia-me evidente que o melhor que tinha a fazer era seguir as dos mais sensatos.

Devia reparar mais no que praticavam do que no que diziam; porque muitas vezes uma não acompanha a outra.

Entre muitas opiniões igualmente aceites só escolhia as mais moderadas; pois todo o excesso costuma ser mau. Também a fim de me afastar menos do verdadeiro caminho, no caso de errar, do que me afastaria se, tendo escolhido um dos extremos, devesse ter seguido o outro. Incluía entre os extremos todas as promessas pelas quais se diminui, por pouco que seja, a própria liberdade. 
[Tem alguma coisa que diminui mais a liberdade do que a religião e o deus que ele defende?]

Porque não via no mundo nada que permaneça sempre no mesmo estado, e porque, no meu caso particular, prometia a mim próprio aperfeiçoar cada vez mais os meus juízos, e não torná-los piores.

A segunda máxima consistia em ser o mais firme e resoluto que pudesse nas minhas ações, e não seguir com menor firmeza do que se fossem muito certas as opiniões mais duvidosas, uma vez que as tivesse escolhido.

Quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e considerá-las depois não já como duvidosas, no que diz respeito ao seu valor prático, mas como verdadeiras e muito certas.

Antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e antes modificar os meus desejos do que a ordem do mundo.
[Que ordem do mundo?]

Os nossos pensamentos estão inteiramente em nosso poder.
[Não é verdade!]

Nada desejar que não pudesse adquirir.

Pensei que o melhor era empregar toda a minha vida a cultivar a razão e a progredir, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha imposto.

Porque, tendo Deus concedido a todos alguma luz para discernir o verdadeiro do falso, eu não teria julgado dever contentar-me, um só momento, com as opiniões de outrem se não tivesse resolvido empregar o meu próprio juízo a examiná-las, na devida altura.
[Se não fosse o medo da inquisição o que será que ele estaria dizendo?]

Não se inclinando a nossa vontade senão para seguir ou fugir das coisas que o entendimento lhe apresenta como boas ou como más, basta julgar bem para bem proceder, e julgar o melhor possível para proceder da melhor maneira,

É necessário algumas vezes seguir como indubitáveis opiniões que sabemos serem muito incertas.
[Essa parece uma confissão, ou um forte indício, de que é exatamente isso que ele está fazendo com respeito à crença na existência de deus]

Porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, eu quis supor que nada há que seja tal como eles o fazem imaginar. E, porque há homens que se enganam ao raciocinar, até nos mais simples temas de geometria, rejeitei como falsas, visto estar sujeito a enganar-me como qualquer outro, todas as razões de que até então me servira nas demonstrações. Finalmente, considerando que os pensamentos que temos quando acordados nos podem ocorrer também quando dormimos, sem que neste caso nenhum seja verdadeiro, resolvi supor que tudo o que até então encontrara acolhimento no meu espírito não era mais verdadeiro que as ilusões dos meus sonhos. Logo em seguida, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, eu, que assim o pensava, necessariamente era alguma coisa. E notando que esta verdade — eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos seriam impotentes para a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.

Ao duvidar da verdade das outras coisas, tinha de admitir como muito evidente e muito certo que existia; bastava que tivesse deixado de pensar para não ter já nenhuma razão para crer que existia, compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é apenas o pensamento.

Esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo.

Considerei duma maneira geral o que é indispensável a uma proposição para ser verdadeira e certa; pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E tendo notado que nada há no eu penso, logo existo, que me garanta que digo a verdade, a não ser que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir.

Conhecer é uma maior perfeição que o duvidar, lembrei-me de procurar donde me teria vindo o pensamento de alguma coisa de mais perfeito do que eu era.

Os pensamentos que tinha de muitas outras coisas exteriores a mim, não notando neles nada de superior a mim, dependiam da minha natureza, do que ela tem de perfeito.

Já com a ideia dum ser mais perfeito do que o meu; era manifestamente impossível que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito.
[Nem é impossível, nem essa sua ideia deus é mesmo a ideia de um ser perfeito]

Restava apenas admitir que tivesse sido posta em mim por um ser cuja natureza fosse verdadeiramente mais perfeita do que a minha, isto é, que fosse Deus, para tudo dizer numa palavra.
[Um deus que tenha criado e que mantenha esse circo de horrores NÃO é perfeito]

Visto conhecer algumas perfeições que não possuía, devia existir algum outro mais perfeito, de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Assim eu via que a dúvida, a inconstância, a tristeza, e outras coisas análogas não podiam existir nele, visto que a mim próprio seria muito agradável ser isento delas.
[A conclusão de que “devia existir algum outro mais perfeito” parece forçada e não condiz com a alegada racionalização dos argumentos, imagino que essa mostra de devoção do autor só existe mesmo pelo medo da reação da Igreja, medo esse totalmente justificado na época]

Embora supusesse que estava sonhando e que tudo o que via ou imaginava era falso, não podia negar, contudo, que as ideias dessas coisas existiam de facto no meu pensamento; toda a composição indica dependência, e se existem no mundo alguns corpos, inteligências ou quaisquer outras naturezas que não sejam completamente perfeitas, o seu ser deve depender tanto do poder desse Deus que não poderiam subsistir um só momento sem ele.
[Seria bom saber o que ele diria sobre isso se fosse livre para fazê-lo]

Quis ainda pensar outras verdades. Tomando por tema a matéria dos geómetras notei também que nada existia nelas que me garantisse a existência dos objetos a que se referem. Por exemplo, eu compreendia bem que, sendo dado um triângulo, é necessário que os seus três ângulos sejam iguais a dois ângulos retos; mas, apesar disso, nada via que me garantisse que no mundo existe qualquer triângulo.

Por conseguinte, é pelo menos tão certo como qualquer demonstração de geometria que Deus, que é esse ser perfeito, é ou existe.

O que faz que muitos se convençam de que é difícil conhecê-lo, e conhecer o que é a alma que possuem, é o facto de nunca levarem o seu espírito para além das coisas sensíveis, tudo que não é imaginável lhes parece não ser inteligível.
[Duvido que o autor não soubesse que desde muito antes, não era apenas isso. Duvido que não soubesse que muitas descobertas feitas por estudiosos, inclusive não cristãos, são resultado não apenas do que foi imaginado mas também do que não é tangível, embora, ao contrário de deuses e alma, se mostrassem mensuráveis e comprováveis posteriormente, muitas vezes por vias indiretas]

Nas escolas, sustentam como máxima que nada existe no entendimento que não tenha primeiramente existido nos sentidos, todavia, é fora de dúvida que as ideias de Deus e da alma nunca existiram.
[Existiram sim! E existiram desde sempre, ou desde que o ser humano começou a procurar respostas para o que não entendia e chamou a essas “respostas” de deus]

Todos os que querem usar da imaginação para as compreender procedem como se para ouvir os sons, ou cheirar os perfumes, quisessem servir-se dos olhos.
[Quanto malabarismo travestido de raciocínio lógico! Por isso nunca esqueço de que Descartes foi contemporâneo de Galileu Galilei]

Enfim, se há ainda quem não se persuada bem da existência de Deus e da alma com as razões que apresentei, quero dizer-lhes que é menos certa a existência de todas as outras coisas, de que se julgam talvez mais seguros, como ter um corpo, existirem astros e uma terra.
[As razões apresentadas não são suficientes, e eu suspeito MUITO de que Descartes sabia disso]

O fato de podermos imaginar, em sonho, que temos um outro corpo, e que vemos outros astros e uma outra terra, sem que na realidade assim seja, é motivo suficiente para não estarmos inteiramente seguros da sua certeza.
[Sem comprovação, realmente não há como ter certeza de nada... e isso logicamente incluiria deus]

Por mais que os melhores espíritos se esforcem, não creio que possam apresentar nenhuma razão que baste para desfazer essa dúvida, se não pressupuserem a existência de Deus.
[Não é verdade! A existência de deus é mais questionável do que todas as outras realidades que ele está questionando]

As coisas reais que provêm de Deus não podem deixar de ser verdadeiras [?], as falsas são as que têm alguma coisa de confuso.
[Ele fala como se deus não fosse confuso!]

São assim confusas porque nós não somos inteiramente perfeitos.
[Os deuses defendidos, lê-se criados, pelo ser humano também não são perfeitos. Longe disso, aliás]

Por mais claras e distintas que possam ser as nossas ideias, nenhuma razão teríamos que nos certificasse que elas possuem a perfeição de serem verdadeiras.

Os sonhos que imaginamos não devem de modo algum fazer-nos duvidar da verdade dos pensamentos que temos quando acordados.

Acontecesse que se mesmo a dormir tivéssemos alguma ideia muito distinta, o ter sido durante o sonho não impediria que ela fosse verdadeira.

Enfim, quer estejamos acordados, quer durmamos, nunca nos devemos deixar persuadir senão pela evidência.
[Certíssimo! Ele só “esquece” de dizer que isso se aplica a deus, sobre cuja existência não há absolutamente nenhuma evidência logicamente aceitável]

Todas as nossas ideias ou noções devem ter algum fundamento verdadeiro; porque não seria possível que Deus, que é inteiramente perfeito e verídico, as tivesse posto em nós sem isso.
[Mas deus é uma ideia, e até prova em contrário ideias não “põe” ideias em ninguém]

Considerando os efeitos dessas leis, parece-me ter descoberto muitas verdades, mais úteis e mais importantes que tudo o que até então aprendera, ou esperava aprender.

Procurei explicar as principais num tratado, que certas considerações me impedem de publicar, receando não poder incluir no meu Discurso tudo o que tinha no pensamento, resolvi expor nele única, mas amplamente, o que pensava sobre a luz;
[Aí está Descartes confessando que não podia publicar o que realmente pensava!]

Fui levado a falar em particular da Terra: além dos astros não conheço no mundo nada que produza a luz, é uma opinião vulgarmente aceite entre os teólogos, que a ação pela qual ele o conserva agora é exatamente igual àquela pela qual o criou.

Podemos acreditar, sem ir de encontro ao milagre da criação, que bastaria que tivesse estabelecido as leis da natureza, e prestasse a esta o seu concurso para ela agir como costuma, para que todas as coisas puramente materiais tivessem podido, com o tempo, tornar-se tais como as vemos presentemente.

Contentei-me em supor que Deus tenha formado o corpo dum homem exatamente semelhante a um dos nossos, tanto na forma exterior dos seus membros como na configuração interior dos seus órgãos, limitando-se a excitar no seu coração um desses fogos sem luz de natureza idêntica à do que aquece o feno, quando se guarda sem estar seco, ou do que faz ferver os vinhos novos, quando se deixam a fermentar sobre o bagaço.
[Não esquecer que o livro foi publicado em 1637]

Supunha que Deus criara uma alma e a unira, duma certa maneira que descrevi, a esse corpo.

Sabe-se que o verdadeiro fim da respiração é trazer bastante ar fresco para os pulmões, para que o sangue que para eles vai da concavidade direita do coração, onde se rarefez e se mudou por assim dizer em vapor, se torne mais espesso e se converta de novo em sangue, antes de recair na concavidade esquerda, sem o que não poderia servir para alimentar o fogo que nela existe. E como se faria a digestão no estômago, se o coração não lhe enviasse calor pelas artérias, e com ele algumas das mais fluidas partes do sangue que facilitam a dissolução dos alimentos?

Que alterações se devem dar no cérebro para provocar a vigília, o sono e os sonhos; como é que a luz, os sons, os odores, os sabores, o calor e todas as outras qualidades dos objetos exteriores nele podem imprimir diversas ideias por intermédio dos sentidos; como é que a fome, a sede e as outras paixões interiores lhe podem também enviar as suas; o que nele deve ser demarcado como centro do senso comum, no qual essas ideias são recebidas;
[Aí estão algumas das perguntas ainda não respondidas pela ciência, à qual Descartes era obrigado pela Igreja a dar deus como única resposta]

Considerar este corpo como uma máquina que, saída das mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem ordenada e tem em si movimentos mais admiráveis que qualquer das que os homens possam inventar.

Depois disso, eu descrevera a alma racional e mostrara que ela não pode ser, de modo algum, derivada do poder da matéria como as outras coisas de que falara, mas que deve expressamente ter sido criada

Excetuando o erro dos que negam Deus, não conheço outro que mais afaste os espíritos fracos do reto caminho da virtude que o supor que a alma dos animais é de natureza idêntica à nossa, donde resultaria que não teríamos a temer nem a esperar depois desta vida, como acontece às moscas e às formigas.
[Eis a megalomania religiosa do animal humano! Desde sempre e para sempre “racionalmente” “explicando” a própria pressuposta e mal-posta superioridade]

Procurei encontrar os princípios gerais ou primeiras causas de tudo o que existe ou pode existir no mundo, limitando-me, para tal conseguir, a considerar apenas Deus que o criou e certas sementes de verdade que existem naturalmente nas nossas almas.
[Leia-se “que somos obrigados a dizer que existem naturalmente nas nossas almas”, sob pena de sofrer a mesma pena que Galileu Galilei sofreu, ou pior]

Ouso afirmar que, quando revejo em espírito todos os objetos que aos meus sentidos se têm apresentado, nada encontro que não possa explicar com bastante facilidade pelos princípios que encontrara.

Tudo isto prometia eu a mim próprio tornar conhecido, pelo tratado que escrevera,

Outras razões me fizeram mudar de opinião e pensar que devia, na verdade, continuar a escrever sobre todas as coisas que me parecessem importantes, com o mesmo cuidado para não perder nenhuma oportunidade de ser útil e para que, se os meus escritos alguma coisa valem, os que os tiverem após a minha morte os possam utilizar o melhor que entenderem.

Pensei também que não devia de modo algum consentir que fossem publicados enquanto vivesse.
[Se é que precise, aí está mais uma pista de que Descartes não disse o que queria dizer da forma que diria se tivesse liberdade para isso]

O pouco que até aqui aprendi não é quase nada em comparação com o que ignoro e com o que ainda não perdi as esperanças de poder aprender.

Porque é na verdade dar batalhas o procurar vencer todas as dificuldades e erros que impedem de chegar ao conhecimento da verdade, e é perder uma o aceitar qualquer falsa opinião sobre uma matéria um pouco geral e importante; pois é preciso muito mais habilidade para voltar ao estado em que se estava antes de a aceitar do que para fazer grandes progressos quando se têm já princípios firmes.

Julgo-me tanto mais obrigado a poupar o tempo que ainda me resta quanto maior é a esperança de o poder empregar bem; e sem dúvida muitas ocasiões teria de o perder se publicasse os fundamentos da minha física.

Como é impossível que estejam de acordo com todas as diversas opiniões dos outros homens, prevejo que seria muitas vezes desviado dos meus trabalhos pelas polémicas que provocariam.

A experiência que tenho das objeções que me podem ser feitas inibe-me de esperar delas qualquer proveito.

Quase nunca encontrei um censor das minhas opiniões que não me parecesse ser menos rigoroso ou menos justo do que eu próprio.

Os que durante muito tempo foram bons advogados nem por isso são depois melhores juízes.

Desejo pedir aqui aos vindouros que nunca aceitem como minhas as coisas que lhes disserem, senão quando eu próprio as tiver divulgado.

Se tornam dum certo modo menos sabedores do que se se abstivessem de estudar, os que, não contentes com saber tudo o que está inteligivelmente explicado no seu autor, querem, além disso, encontrar nele a solução de muitas dificuldades acerca das quais nada disse e em que talvez nunca pensou.
[Parece ser uma prevenção contra quem, na época, pensasse que ele poderia ter omitido opiniões ou tomado o cuidado de dizer o que na realidade não pensava a fim de fugir à possibilidade de cair nas malhas da censura religiosa?]

Maneira de filosofar é muito cómoda para os espíritos muito medíocres; porque a obscuridade das distinções e dos princípios de que se servem lhes permite falar de tudo tão afoitamente como se o soubessem, nisto parecem-se com um cego que, para se bater sem desvantagem com alguém que vê, o levasse para o fundo de qualquer cave muito obscura.

Se os publicasse, equivaleria a abrir algumas janelas e a fazer penetrar a luz nessa cave, a que desceram para se bater.

Verdade que só se descobre pouco a pouco em algumas e que, quando se trata das restantes, obriga a confessar francamente que se ignoram.

É fora de dúvida que o que me falta ainda descobrir é em si mais difícil e mais recôndito do que o que pude até agora encontrar, se existe alguma obra que não possa ser tão bem acabada por qualquer outro como pelo próprio que a começou, é aquela em que trabalho.

Estas considerações fizeram com que, resolvesse não divulgar o tratado que tinha entre mãos,

Mas, houve de novo duas outras razões que me obrigaram a publicar: se o não fizesse, muitos que sabiam da minha intenção anterior de publicar alguns escritos imaginariam, se a não efetivasse, que as coisas que a isso obstaram seriam menos a meu favor do que na realidade são.

Nunca procurei ocultar as minhas ações como se fossem crimes.
[Seria perigoso fazer com que assim parecesse, acho]

Entre o receio de ser conhecido e o de o não ser, não pude evitar um certo renome, pensei que devia fazer tudo para me livrar, pelo menos, de o ter mau.

E pensei que me era fácil escolher alguns assuntos que, sem estarem sujeitos a muitas controvérsias nem me obrigarem a dizer mais do que quero sobre os meus princípios, mostrariam bem claramente o que posso ou não posso nas ciências.
[Claro que tudo que vejo como confirmação de que Descartes tinha muito mais a dizer do que disse é visão minha, opinião minha. Mas eu digo isso assim mesmo, e digo porque, se me imagino vivendo naquela época, consigo ME ver fazendo algo semelhante, ou tentando fazer e falhando miseravelmente. Porque estou longe de poder reivindicar para mim uma inteligência sequer comparável à de Descartes]

 

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