VIOLETA



Os cadáveres dos pobres, cobertos de cal viva.

O santuário do padre Juan Quiroga encheu-se de devotos que queriam curar-se da influenza, e em muitos casos a cura ocorria, mas os incrédulos, que nunca faltam, disseram que, se o doente tinha forças suficientes para subir os trinta e dois degraus até a capela de Cerro San Pedro, era porque já estava recuperado. A etapa seguinte foi convertê-la ao anglicanismo.
— Os papistas são ignorantes e supersticiosos — determinou a patroa. E realizou seu propósito sem dificuldade, porque Josephine via pouca diferença entre ambos os cultos e, em qualquer caso, preferia manter-se o mais distante possível de Deus, que a tratara tão mal desde o nascimento.

Essa história de que todos os humanos são iguais perante a lei e aos olhos de Deus é uma balela, Camilo. Espero que não acredites nisso. Nem a lei nem Deus nos tratam a todos do mesmo modo.

Os indígenas puros tinham sido expulsos por meio do fácil expediente de lhes comprar a terra a preço ridículo ou embebedá-los e fazê-los assinar documentos que eles não sabiam ler. Se isso falhasse, recorriam à força.

“É mais fácil ser altruísta e generoso de barriga cheia do que com fome”, diziam. Nunca acreditei nisso, porque vi que tanto a maldade quanto a bondade estão presentes em todos os lugares.

Eram o povo originário desta terra; os forasteiros, com poucas exceções, eram usurpadores, ladrões, homens sem palavra de honra.

O tempo era medido em chuvas, colheitas e desgraças.

Tinha uso da razão quando os espanhóis se foram com o rabo entre as pernas e a República nasceu. “Nada de bom havia antes, e depois foi pior”, concluía.

Não acho que tenham sido sinais do destino, como pensavam elas, mas sim que neste país sempre há calamidades, e não é nada difícil relacioná-las com qualquer acontecimento da vida, desde o nascimento até a morte.

Com os anos a urgência do desejo desaparece, e esse tipo de lembrança se torna absurdo, como uma crise psicótica ocorrida com outra pessoa.

Já não estou segura de nada que se relacione ao sexo. Esqueci como era.

Não gosto de criança; a única coisa boa das crianças é que crescem.

Carinho é coisa que se cultiva, Camilo, é preciso irrigá-lo como a uma planta, mas nós o deixamos secar.

Fabian dedicava-se à inseminação artificial. De animais, claro, não de pessoas. Não vou entrar em detalhes prosaicos; basta dizer que o procedimento me parecia então e continua parecendo uma tremenda falta de respeito com as vacas. E não quero pensar como obtinham o indispensável dos touros.
[Isso me lembrou o livro Fazenda Modelo, do Chico Buarque: "Não sei o que me falta, mas falta pouco pra eu dar um grito", é a fala de uma vaca dessa fazenda]

Organizações defensoras dos direitos da mulher: ao voto, à guarda dos filhos, que antes era exclusiva do pai, a dispor de rendimentos próprios e de proteção no trabalho, à defesa contra a violência, enfim, a favor de muitas mudanças fundamentais nas leis, que hoje damos por assentadas. As feministas também propunham o direito ao aborto e ao divórcio, que a Igreja católica condena nos termos mais radicais.
Teresa dizia que, se os homens parissem e tivessem de aguentar um marido, o aborto e o divórcio seriam sacramentos.
Achava que os homens não têm direito a opinar, muito menos a legislar, sobre o corpo feminino, porque não conhecem a fadiga de gestar, a dor de parir e a escravidão eterna da maternidade.
Eram pensamentos tão radicais, que Teresa ia para a cadeia com certa regularidade por publicar suas ideias.
A luta travada por Teresa Rivas e outras mulheres como ela, para mudar os costumes e as leis, foi dando frutos paulatinamente.
Acho que ela e miss Taylor estariam orgulhosas do que obtiveram e continuariam lutando pelo que falta fazer. Ninguém nos dá nada, dizia Teresa, é preciso conseguir na marra, e, se a gente se descuidar, tiram o que já temos.

Sentia uma rebeldia surda, uma raiva contida ao pensar que ia me casar, ter filhos, transformar-me em dona de casa e levar uma vida banal à sombra de meu marido.
Não tinha um talento ou vocação especial que me indicasse um caminho diferente do que se esperava de uma mulher.
Não me atrevia a trocar segurança por liberdade.

Meu dever era cuidar da honra dele e da família, dizia, mas, quando lhe perguntei que relação havia entre a honra dele e minha virgindade, ficou indignado.

Minha mãe estudou às escondidas do marido, ela fazia uma ducha vaginal de glicerina antes do ato e outra com uma solução de água morna e peróxido depois, usando uns dispositivos que ocultava numa caixa de chapéu.
Quando anunciei que, finalmente, ia me casar, minha tia Pía me entregou os componentes para a ducha, embrulhados em papel de jornal, para disfarçar, e me explicou seu uso falando baixinho, meio morta de vergonha.

Não posso censurar esse seu senso de superioridade, porque todos aqui acreditávamos que os imigrantes da Europa eram melhores que nós. Este é um país muito racista; sabes bem, Camilo.

Fabian nunca questionou nossa relação e não percebeu que eu estava me afastando, porque isso era inconcebível para ele; tínhamos feito juramento perante Deus e a sociedade de nos amar e respeitar até a morte. Isso significa muito tempo.
Uma vez insinuei minha frustração a meu marido, ele não se preocupou nem um pouco. Respondeu que no começo os casais costumam ter dificuldades, que é normal, mas com o tempo aprendem a conviver, ocupam seu lugar na sociedade e constituem sua família. Assim havia sido sempre, era um ditame biológico. Quando tivéssemos filhos eu me sentiria satisfeita; “a maternidade é o destino da mulher”, disse.

Meu marido desejava uma mulher tão incondicional no amor quanto ele o era, alguém que se somasse a seu projeto de vida, que o assistisse e lhe devotasse a admiração de que se achava merecedor, mas teve o azar de se apaixonar por mim.
Supus que, de tanto fingir, acabaria sendo a esposa perfeita que se esperava de mim, sem aspirações próprias, existindo através do marido e dos filhos.
Procurava fazer com que Fabian se sentisse à vontade e lisonjeado, como recomendavam as revistas femininas, porque isso era fácil para mim e evitava que ele perscrutasse meus sentimentos; estava convencido de que, se ele era feliz, eu era também. Mas a fantasia de gueixa ocultava uma mulher irada.

A viagem da vida é feita de longos trechos tediosos, passo a passo, dia a dia, sem que aconteça nada de impactante, mas a memória é feita de acontecimentos inesperados que marcam o trajeto. São esses que vale a pena contar.

Para ele foram anos muito satisfatórios, por isso não pôde entender que diabo aconteceu, por que um dia eu fui embora.
Aprendi aos vinte e oito anos as surpreendentes possibilidades do prazer e a diferença fundamental entre um marido pouco inspirado e um amante de romance.

O único consolo delas era que estávamos longe da família e da bisbilhotice da capital.
— Menina, pelo amor de Deus, nunca houve bastardos entre nós — disse-me a tia Pía entre soluços.
— Há dezenas, tia, mas, como são dos homens da família, ninguém leva em conta — expliquei-lhe.

Pressupunha-se que as mulheres eram sustentadas, primeiro pelo pai e depois pelo marido, e, caso tivessem bens próprios, herdados ou adquiridos, precisavam de um homem para administrá-los. Não era feminino falar de dinheiro nem ganhá-lo, muito menos investi-lo.

Julián, em compensação, ia a todos os lugares; estava isento de culpa: a infiel, a concubina, a mulher extraviada que se atrevia a pavonear-se grávida do amante era eu.

Recebia de volta um rosário de insultos e depois, a sós, um murro. Nunca me bateu no rosto, tomava o cuidado de não deixar marcas.
Depois de cada batalha, em que eu jurava deixá-lo para sempre, terminávamos abraçados. Essas reconciliações ardentes duravam algum tempo, até que ele explodia de novo por qualquer motivo trivial.
Mas podíamos ser felizes entre episódios de ódio, que nem sempre implicavam tapas; em geral, o abuso era de palavra. Julián tinha rara habilidade para adivinhar os pontos mais vulneráveis de seu oponente. Atacava-me onde mais doía.
Tinha vergonha de suportar a violência de Julián e mais vergonha ainda de perdoá-lo. Estava escravizada pela paixão sexual e pela crença de que, sem ele, estaria perdida. Como ia criar os filhos? Como ia enfrentar a sociedade e a família. Não podia aceitar que a lenda que eu mesma inventara fosse um erro.

Apesar do que havíamos conseguido, eu vivia com um punho fechado na boca do estômago, perpetuamente assustada, sem saber de fato por quê.
Só soube que eram da máfia vários anos depois, quando reconheci a foto do célebre gângster Lucky Luciano, publicada por motivo de seu grandioso funeral em Nova York. Passei aqueles dias em Havana jogando e perdendo na roleta, embalada pela voz de Frank Sinatra em pessoa.
Um de meus anfitriões, que deve ter sido um mandachuva no mundo do crime, convidou-me para uma festa no palácio presidencial, onde Batista me cumprimentou com um beija-mão, enquanto as ruas eram patrulhadas por veículos militares. Ninguém imaginava que a orgia perpétua da ilha ia terminar bem depressa.

Certa vez, quando perguntei a meu filho Juan Martín o que queria de aniversário, ele sussurrou ao meu ouvido “que você se separe para sempre de meu pai”.

Quando lhe sugeri que algum dia teríamos de instalar um telefone em Santa Clara, respondeu com plena convicção que, se esse aparelho não comunicava com os mortos, por que diabos precisávamos dele?

Havia rezado milhares de rosários e novenas ao longo da existência, mas, justamente quando mais precisava do sustentáculo da fé, deixou de crer em Deus e no céu. “A única coisa que quero é fechar os olhos e deixar de existir, dissolver-me no vazio, como a neblina do amanhecer”.

Acusava-me de ambiciosa; na época, era um insulto, se dirigido a uma mulher.

Com o pretexto da Guerra Fria, a CIA derruba democracias e apoia ditaduras brutais, que beneficiam as elites e impõem terror ao povo. Há tanta injustiça, desigualdade e miséria que com razão o comunismo pega em nossas terras.

Nascemos com certas cartas, e com elas jogamos nosso jogo; alguns recebem cartas ruins e perdem tudo, mas outros jogam magistralmente com essas mesmas cartas e triunfam. O baralho determina quem somos: idade, gênero, raça, família, nacionalidade etc., e não podemos mudar essas coisas, só podemos usá-las o melhor possível. Nesse jogo há obstáculos e oportunidades, estratégias e ciladas.

Com o tempo a gente se lembra dos fatos, mas as emoções se apagam.

Todas as vidas são banais e todos somos medíocres, dependendo da pessoa com quem nos comparamos.

Existe uma maldição chinesa que vem ao caso: “desejo-lhe uma vida interessante.” A bênção correspondente seria “desejo-lhe uma vida banal”.

Foi preciso acontecer muita coisa para eu pôr os pés na realidade, Camilo. Dei um jeito de não ver, não ouvir e não falar durante os anos críticos. Teria feito o mesmo durante a longa ditadura, caso o guante da repressão não tivesse me golpeado diretamente.

Para que vou te falar de outras relações amorosas que tive em minha longa vida, a maioria breves e pouco memoráveis? De nenhuma me arrependo; ao contrário, lamento as oportunidades que deixei passar por puritanismo, por andar apressada ou por temer falatórios.
Passei a maior parte da vida solteira e não devia fidelidade a ninguém; às mulheres de minha geração era negada a liberdade sexual que os homens consideravam direito deles.

Eu sei, eu sei… do que estou me queixando? A morte de minha filha não foi castigo, sou apenas uma estatística, esse é o sofrimento mais antigo e comum da humanidade; antigamente ninguém esperava que todos os filhos continuassem vivos; vários morriam na infância.

* O golpe foi organizado como uma estratégia de guerra. As forças armadas e a polícia se rebelaram ao amanhecer de uma terça-feira de primavera, e ao meio-dia tinham bombardeado o palácio presidencial, o presidente estava morto, e o país, sob comando militar.
* Não houve resistência; pelo contrário, gente que eu conhecia aplaudia das sacadas, porque passara três anos esperando que os heroicos soldados salvassem a pátria de uma hipotética ditadura comunista, mas também ali valia o estado de sítio.
* Helicópteros zuniam como varejeiras, tanques e caminhões pesados desfilavam, mordendo o asfalto e espantando os cães vadios.
* Ouviam-se sirenes policiais, gritos, tiros e explosões.
* Foram instalados controles para caçar subversivos, terroristas e guerrilheiros. Não era a primeira vez que ouvíamos menção a esses inimigos da pátria; a imprensa de direita havia avisado que eram agentes da União Soviética, que preparavam uma revolução armada e que tinham listas das pessoas que seriam executadas.
* Nos primeiros três dias houve toque de recolher absoluto em todo o país.
* Os soldados, exaltados, jogavam gente aos empurrões e cacetadas em caminhões do exército e levavam para destino desconhecido; acendiam fogueiras na praça, onde queimavam livros, documentos e registros eleitorais, porque a democracia estava suspensa até segunda ordem.
* Eram proibidas reuniões de mais de seis pessoas, mas em vários clubes e hotéis, inclusive no Bavaria, muita gente se juntava para beber champanhe e cantar o hino nacional.
* Refiro-me às pessoas influentes, que aspiravam a recuperar suas terras confiscadas pela reforma agrária.
* Os defensores do governo socialista, operários, camponeses, estudantes e pobres em geral, estavam calados em seus esconderijos.
* Os rumores iam e vinham com força de furacão, mas eram contraditórios e impossíveis de confirmar.
— Invadiram a universidade na capital, Violeta. Prenderam vários professores e estudantes, especialmente de jornalismo e sociologia. Dizem que as paredes da faculdade estão salpicadas de sangue.
— Você não vê que estão matando as pessoas?
— É a guerra contra o comunismo. O fim justifica os meios.
* Os soldados de guarda eram uns sujeitos nervosos e agressivos, armados até os dentes, que leram os salvo-condutos com a vagareza dos semiletrados.
* O infalível sistema de classes sociais e o desprezo machista pelas mulheres ajudaram-nos naquele posto de controle e nos outros que enfrentamos pelo caminho.
* Perguntei a Juan Martín por que não se entregara; disse que quem se apresentava voluntariamente não tinha nada que temer, era o que haviam dito na televisão.
— Em que mundo você vive, mamãe? Se me entrego, posso desaparecer para sempre. Mataram vários estudantes da minha faculdade e levaram mais de vinte professores.
— Bom, algum mal terão feito, Juan Martín — murmurei, repetindo o que tinha ouvido tantas vezes no círculo de minhas amizades.
— Tanto quanto eu, mamãe, defender o governo eleito democraticamente.
* Juan Martín nos falou de julgamentos sumários e execuções arbitrárias; de presos que morriam torturados; de milhares de pessoas detidas que eram levadas à força em pleno dia, diante dos olhos de quem se atrevesse a pôr a cara para fora; dos postos policiais, quartéis militares, estádios e até escolas cheios de prisioneiros; disse que estavam improvisando campos de concentração para trancafiar os que haviam sido detidos.
* A propaganda da oposição havia vaticinado durante três anos o terror de uma ditadura comunista; agora experimentávamos o terror de uma de direita.
* A Junta dos generais tinha anunciado que se tratava de medidas temporárias, mas por tempo indefinido, até segunda ordem, enquanto se restabeleciam na pátria os valores cristãos e ocidentais.
* [hoje] Temos democracia, e o pior do passado veio à luz: os campos de concentração, a tortura, os assassinatos e a repressão que tanta gente padeceu.
* Mas na época não sabíamos, não havia informação, só rumores.
* Ainda há quem justifique, acreditando que eram medidas necessárias para impor ordem e salvar o país do comunismo.
* Na superfície, o país nunca estivera melhor.
* Ninguém falava de política, era perigoso.
* Deixamos de ser um país pobre e subdesenvolvido e, na marra, viramos um país próspero e disciplinado. Esse era o discurso oficial. Por dentro, porém, éramos um país doente.
* A criminalidade diminuiu muito. Os crimes quem cometia era o Estado, mas podíamos andar na rua e dormir à noite sem sermos assaltados por delinquentes comuns.
* Havia muito desemprego, era o paraíso dos empresários.
* Fala-se de corrupção, agora chamada de enriquecimento ilícito, mas na ditadura era legal.
* A ilusão do poder nas mãos do povo. Digo ilusão porque na realidade isso nunca aconteceu, Camilo, nem antes nem agora. O poder econômico e militar, que é o que conta, sempre esteve nas mesmas mãos.
* Agora sabemos, Camilo, da infame Operação Condor, criada nos Estados Unidos para estabelecer ditaduras de direita em nosso continente e coordenar as estratégias mais cruéis para acabar com os dissidentes.
* A Igreja católica colaborava com a bestial repressão, inclusive com os infames voos da morte, mas havia padres e freiras dissidentes que arriscavam tudo pelas vítimas, e muitos pagariam com a vida.

Viveu cada minuto imaginando o calvário pelo qual a moça estava passando, interrogatórios, torturas, estupros, cães amestrados, choques elétricos, ratos, tudo o que já se sabia.

Era tão desligado que planejava dedicar-se a aves no clima ameaçador do início da ditadura, quando o país se declarava em estado de guerra e até o ar que respirávamos estava sob controle das armas.

O lema de Julián Bravo era que o fim justifica os meios. Ele empregara os meios mais duvidosos para obter seus fins com total impunidade. Declarava-se invulnerável, invencível, livre das limitações de outros mortais; só obedecia às normas que lhe convinham porque as leis são feitas pelos poderosos para controlar os outros. Chegara a hora de eu aplicar o axioma dele: seu fim justificou meus meios.

Quanto mais duro o trabalho, pior a remuneração. Muito mais fácil é enriquecer sem produzir nada, movimentando dinheiro de um lugar para outro, especulando, aproveitando oportunidades da Bolsa, investindo no esforço de outros.

Ele costumava me enviar uma mensagem de boas-festas pelo correio, uma daquelas circulares que alguns estrangeiros mandam a amigos com as notícias domésticas e fotografias da família triunfante.
Nessas cartas coletivas só se contam sucessos, viagens, nascimentos e núpcias; ninguém vai à falência, ninguém é preso nem tem câncer, ninguém se suicida nem se divorcia. Por sorte, essa tradição estúpida não existe entre nós.

Sentia-me muito contente com a vida e jovem para tudo, menos para os sobressaltos da intimidade com um homem.
Era assim que me sentia no que se refere ao sexo — tanto esforço para satisfação tão breve!

Tua teoria é que Deus proverá, mas Deus não provê nada em matéria de dinheiro.

Não suportando mais a incerteza, perguntei:
— Diga uma coisa, Harald, quais são suas intenções a meu respeito?
— Por quê? — perguntou ele, perplexo.
— Porque eu tenho sessenta e seis anos e estou pensando na velhice. Além disso, Etelvina quer saber.
— Diga a ela que eu estou esperando que você peça minha mão em casamento — respondeu com uma piscada.
— Harald Fiske, desejas casar-te com Violeta del Valle? — propus.
— Depende. Essa mulher promete respeitar-me, obedecer-me e cuidar de mim até o fim de meus dias?
— Bom, ela se compromete pelo menos a cuidar de você. Brindamos por nós e por Etelvina.
No carro, voltando, ele segurou minha mão e por todo o caminho foi cantarolando, enquanto eu vislumbrava com temor o momento em que teria de tirar a roupa diante dele. Nunca havia frequentado academia, tinha carne dependurada nos braços, um pneu na barriga, e os seios iam descendo rumo aos joelhos.

O embaixador dos Estados Unidos tinha a missão secreta de preparar o terreno para a volta da democracia em nosso país. Democracia sob condições, claro.

Na verdade, tratava-se de meu neto, eu ainda não era noiva oficial dele e tu foste um terrorista desde os dois anos de idade, mas os detalhes eram de pouca importância.

Se tivesses sido expulso do San Ignacio, hoje talvez fosses marxista e ateu, em vez de padre. Nesse caso serias um sujeito normal, estarias casado com uma moça muito de meu gosto e terias me dado vários bisnetos. Enfim, sonhar não custa.

Por um tempo demasiadamente breve respiramos aliviados com a esperança de paz, mas sempre há guerra em algum lugar.

Amanhecemos um dia com a novidade da democracia, que os jovens não conheciam e nós outros tínhamos esquecido.
A democracia não trouxe o caos que a propaganda da ditadura prognosticara; os que se beneficiaram de forma escandalosa com o sistema econômico continuaram tendo poder; ninguém pagou pelos crimes cometidos.
Aceitamos o tácito acordo de fazer o mínimo de barulho para não provocar os militares. O ditador voltou tranquilamente para casa, aclamado por seguidores e defendido pela direita.
Estás vendo o que digo, Camilo? Os maus têm sorte.

Percebeu que já não era daqui e encontrou um pretexto para voltar à Noruega. Ali tinha se sentido estrangeiro durante muitos anos, mas lhe bastaram aquelas duas semanas para se curar da saudade, o mal dos exilados, e deitar raízes definitivas no lugar que o acolhera quando a pátria lhe faltou.

Segundo o poema de Antonio Machado, “não há caminho, o caminho se faz ao andar”.

Uma médica comentou que o pior de seu trabalho era atender as vítimas de violência doméstica que chegavam várias vezes ao setor de emergência.
— Um dia deixam de voltar. Muitas mulheres são assassinadas pelo marido, pelo amante, às vezes pelo pai.
— E a polícia?
— Lava as mãos.
— No caso de Susana, o agressor é da polícia.
— Com esse não vai acontecer nada, mesmo que a mate.

— A polícia não pode entrar numa casa sem mandado de busca e apreensão, Violeta — respondeu ele quando lhe expus o ocorrido.
— Mesmo que alguém esteja sendo brutalmente agredido?
— Não exagere, amiga.
— Este é um dos países com mais violência doméstica do mundo, sabia?
— Na maioria das vezes se trata de assunto particular no seio do lar, que não é da competência das forças da ordem pública.
— A coisa começa com surras e acaba em assassinato!
— Nesse caso a lei intervém.
— Entendo. É preciso esperar que aquele degenerado mate Susana para o senhor emitir uma medida protetiva. É isso o que está me dizendo?

Suportei durante anos os maus-tratos de Julián Bravo sem dar a isso o nome de violência doméstica, e sim desculpando: foi um acidente; perdeu o controle porque bebeu demais; fui eu que provoquei; está com problemas e descarregou em mim, mas não vai fazer de novo, garantiu, pediu perdão. Nada me ligava a ele, eu não precisava dele, era livre e me sustentava sozinha, e mesmo assim demorei anos para acabar com aquele abuso. Medo? Sim, havia temor, mas também insegurança, dependência emocional, inércia e a regra do silêncio que me impedia de falar do que estava me acontecendo.
A violência contra a mulher é um segredo de polichinelo que precisa ser ventilado, para ser conhecido por todos.

Sabe que ideia teve recentemente? Que Deus, se existir — o que, segundo ele, não é um fato, mas apenas uma opinião —, será marxista.

A castidade é um fardo; antes talvez inspirasse respeito, mas agora é suspeita, ninguém deixa uma criança sozinha com um padre. Temos trezentos padres pedófilos reconhecidos neste país.

Não aprovo esse esporte cruel de capturar um peixe infeliz, arrancar-lhe o anzol, deixar sua boca em carne viva e devolvê-lo à água, onde sofrerá morte lenta ou será devorado por um tubarão atraído pelo sangue.

Gosto de gente que engorda feliz.

O conceito nórdico de janteloven, que significa: “Não acredites que és especial ou melhor que os outros; lembra-te de que é sobre o prego mais saliente que cai a martelada”.

Nada resta do jovem revolucionário que escapou da guerra suja; virou um senhoraço com barriga, que vota nos conservadores.

Gostei de ver que havia muitas mulheres fazendo o mesmo trabalho dos homens. Se algum machismo tinhas, por culpa de Etelvina, nunca por culpa minha, ali o perdeste.

Servimos milho tenro na espiga, salada de cebola e tomate, pão fresco, doces e muita aguardente e vinho, porque dor se suporta melhor com álcool.

O que mais me emocionou foi a casinha com chão de terra batida, onde moras com a cadela e a gata que te adotaram.

Passamos a vida negando o fato irrefutável de que vamos morrer.

A bondade desgasta muito, já te avisei. Os maus se divertem mais e chegam à velhice em melhores condições.
Se já não existe o inferno e há dúvidas sobre o céu, parece-me pouco razoável esmerar-se tanto em ser boa pessoa.

Imagina, Camilo, oito pessoas desatinadas num bote inflável amarelo, com colete salva-vidas, para que o cadáver possa flutuar, e capacete, para evitar que o cérebro se esparrame em caso de a cabeça arrebentar contra uma rocha.

O pior da cadeira é que meu nariz fica na altura do umbigo dos outros, e a primeira coisa que vejo neles são os pelos do nariz.

Tive de admitir que precisava de ajuda. Com humildade, é menos doída a humilhação cotidiana de depender.

Até os bilionários, que normalmente não dão nada aos pobres, porque tem mais glamour doar à Sinfônica, estão contribuindo para tuas cadernetas. Segundo Etelvina, fazem isso mais por vergonha que por compaixão.

És um tipo excepcional, e não digo isso por corujice, pois metade deste país concorda comigo, e a outra metade não tem peso nenhum.

Há um tempo para viver e um tempo para morrer. Entre ambos há tempo para recordar.

Por andar distraída ou muito ocupada, alcancei pouca sabedoria. Se fosse verdade essa história de reencarnação, eu teria de voltar ao mundo para realizar o que ficou faltando. É uma possibilidade aterradora.

Dor e memória não se medem em relógios. Morrer exige muito esforço.
Imagino que não haja pressa, porque vou ficar morta por muito tempo, mas essa espera me aborrece.
Nos últimos vinte anos, faltaram-me oportunidades de pecar, e pelos erros anteriores eu já paguei.

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