A MÚSICA DO SILÊNCIO



[Auri é uma personagem linda que aparece nos dois primeiros livros da Crônica do matador do rei. Eu adoro como ela é sensível e como respeita todas as coisas, a ponto de ver sentimentos e desejos nos objetos. Sentimentos bons e maus. A ponto de privar a si mesma de desejos e confortos, e até mesmo do essencial, em respeito aos sentimentos que ela percebeu em um objeto. Auri me lembra a Luna Lovegood dos livros do Harry Potter; uma pessoa considerada "louca" por seu imenso respeito ao mundo, às pessoas e aos seres com quem tem contato. Por isso gostei DEMAIS desse livro, talvez mais ainda do que dos anteriores, embora tenha gostado muito deles e esteja ansiosa para ler a continuação da Crônica].

Nada era nada mais. Nada era nada que não devesse ser.

Mais para um lado, a refinada xícara branca que pertencia a ele o esperava, com uma paciência que Auri invejou.

Era sábio o bastante para se conhecer, corajoso o bastante para ser ele mesmo e impetuoso o bastante para se modificar, ainda que, de algum modo, se mantivesse inteiramente correto.

Viu então um lampejo de luz e seus dedos esbarraram em algo sólido e frio, de contornos definidos e lisos. Estava cheio de amor e de respostas, tão cheio que ela os sentiu vazarem a seu mais leve toque.

A chave necessitava de cuidados urgentes. Era, com certeza, a mais inquieta do grupo. O que não trazia a menor surpresa. As chaves estavam longe de ser conhecidas por sua complacência, e aquela praticamente implorava por uma fechadura.

Era um dia de achar, e não havia dúvida de que a pobrezinha queria muito ser cuidada.

Não era a terceira porta, nem a sétima. Auri já planejava seu caminho por Passa-Fundo quando avistou a nona porta. Ela estava à espera. Ansiosa.

Havia algo errado na sala. Não era nada gritante. Esse era um bom lugar. Quase perfeito. Tudo era quase. Se não fosse um dia branco, com tudo feito da maneira adequada, talvez Auri nem tivesse conseguido perceber que havia algo errado. Tornou a correr os olhos pela sala. Era um lugar bom, e quase como deveria ser. Mesmo assim, havia algo errado.

Fazia uma eternidade que ela não chegava a um lugar completamente novo. Um lugar que ousasse ser inteiramente ele mesmo.

As paredes eram nuas e meio condescendentes. Havia uma porta, mas era de uma timidez terrível, por isso, educadamente, Auri fingiu não vê-la.

Havia os que não tinham nome, e isso era sempre triste. Uma coisa era ser reservado. Mas não ter nome? Que horror! Que solidão!

A penteadeira era uma coisa jovial: tagarela e desinibida.

Atrás da porta ficavam pendurados dois sacos de linho vazios. O menor deles estava ansioso para entrar em ação, por isso Auri sorriu e o enfiou num bolso.

Dificilmente confiaria em que um lugar como aquele se portasse bem no escuro.

Às vezes ela era uma coisa cobiçosa. Querendo algo para si. Distorcendo a forma apropriada do mundo inteiro. Querendo mandar em tudo com o peso do seu desejo.

A estatueta de pedra e o pedaço de renda estavam à vontade. O cristal valente ficou satisfeito no suporte para garrafas de vinho. O osso do braço e o saco de linho ficaram tão confortáveis que pareciam estar ali fazia cem anos.

Ela pegou o cristal e o colocou junto da engrenagem. Mas não adiantou nada; só serviu para aborrecer o cristal. Auri deu-lhe um beijo rápido de desculpas e o devolveu ao suporte de garrafas de vinho.

Auri assustou-se ao ver que o espelho estava agitado. Ansioso, até. Ele queria movimento, mas primeiro tinha que ser acalmado. Consolado. Adulado. Auri foi obrigada a buscar o cobertor de sua cama. Estendeu-o sobre o espelho e virou a face dele para a parede. Só então foi possível movê-lo para o outro lado do quarto e postá-lo diante da janela fechada por tijolos, onde ele queria tão desesperadamente ficar. Nunca tinha visto o espelho tão contente. Sorrindo para si mesma, ela escovou o cabelo.

Seu estômago era um punho vazio. Havia mais utensílios que comida. Cortou a fruta em sete pedaços iguais para comê-la. Estava curtida e cheia de outono.

Os caninhos de bronze de ar comprimido não se importavam nem um pouco. E a tubulação preta e gorda de urina achava tudo muito engraçado. Mas a tubulação de vapor não estava nem um pouco satisfeita.

Era um adesivo complicado, mas esse estava perfeito. Aderia, fixava-se e se espalhava. Era cheio de grama verde e pulinhos.

Em certos momentos, ela teve de parar, fechar os olhos e apenas respirar. E, mesmo assim, respirar quase não ajudou. Como poderia, se o próprio ar se tornara desleal?

O celeiro estava repleto de almíscar e de sono.

Havia um pedaço de sebo numa tigela e um favo de mel numa bandeja. O sebo estava enfurecido. Era uma tempestade de maçãs de outono, velhice e raiva. Não queria outra coisa senão partir. O favo de mel. Era um encanto. Era cheio de sinos silenciosos e tardes sonolentas de verão.

Alguns dias simplesmente pesavam na gente feito pedras. Desejou que fosse outro tipo de dia, mesmo sabendo que nada de bom podia advir de querer algo do mundo.

Auri seguiu para a Padaria. Que nesse dia não estava forneira, mas acocorada e macambúzia.

Auri bateu o pé no chão. Desejou que aquela coisa esganada passasse uma semana fazendo cocô. Torceu para que defecasse as tripas do seu eu horroroso, de cabo a rabo, e depois caísse numa fenda, perdesse o nome e morresse sozinha, vazia e oca na escuridão raivosa.
Achou que fosse chorar, mas, ao apalpar seu interior, descobriu que não lhe restava pranto algum. Estava repleta de vidro partido e carrapichos. Cansada e decepcionada com tudo de tudo.

A lua espiava vagamente pela grade do alto. Mas era gentil e distante, por isso Auri não se incomodou.

Ela subiu ao Férreo Antigo e achou a grade que mais gostava da lua.

Havia dias em que ela se irritava. Estava muito cansada de ser tudo, ela mesma. A única que cuidava do funcionamento adequado do mundo. Auri não se deixava enganar. A crueldade nunca tinha ajudado a fazer o mundo girar.

Faria frio à noite e Auri sentiria falta dele. Mas o cobertor estava feliz ali. Não merecia ser feliz? Por acaso tudo não merecia seu lugar certo?

Balançou a cabeça furiosamente. Em certos momentos ela era uma coisa malvada. Toda cheia de vontades. Como se a forma do mundo dependesse do seu estado de espírito. Como se ela fosse importante.

Certos dias eram orgulhosos feito trombetas. Anunciavam-se como o trovão. Outros eram corteses, cuidadosos como um cartão manuscrito numa bandeja de prata. Mas alguns dias eram tímidos. Não diziam seu nome. Esperavam que uma jovem cuidadosa os encontrasse. Aquele era um dia assim.

Auri não era presunçosa a ponto de impor sua vontade ao mundo. Mas sabia usar as coisas que o mundo lhe dera.

Quebrar e moer. Quebrar e moer. O pilão era uma coisa sinistra, meio bandida e tensa.

Nozes eram código e mistério. Mas isso não era particularmente problemático para Auri. Ela compreendia que alguns segredos deviam ser guardados.

Não seria um horror viver cercada pelo puro e agudo vazio das coisas apenas suficientes?

Era repleta demais de amor. Nada conseguia deslocá-la. Nada conseguia desviá-la de si. Quando o mundo inteiro era palimpsesto, ela era um palíndromo perfeito. Inviolada.

Algumas coisas eram simplesmente corretas demais para se manter.

Ela sabia muito bem como os segredos bem guardados podiam tornar-se pesados.

As estantes cuidadosas. Com garrafas acocoradas atrás do vidro muito, muito grosso. Não tinham rótulos. Eram meio vira-latas. Uma continha gritos. Outra, fúria. Havia ali muitas garrafas, e essas duas estavam longe de ser as piores.

Havia um segredo nas profundezas do coração oculto das coisas.

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