EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO - O caminho de Guermantes



Esses “vocês” que poderiam ter mais cavalos que os Guermantes éramos nós.

Semelhante a essas plantas que um animal, ao qual aderem por completo nutre com os alimentos que apanha, come e digere para elas e lhes oferece em seu último e assimilável resíduo.

[Sobre Françoise, a criada Françoise] Para ela, a riqueza era como uma condição necessária à virtude, cuja falta faria a virtude destituída de mérito e encanto.
Achava que o criado-grave era um amigo para ela, pois não cessava de lhe denunciar com indignação as medidas terríveis que a República ia tomar contra o clero.
[Lembra pobre de direita]

Enquanto o mundo for mundo – dizia – haverá patrões para nos fazerem trotar e criados para se prestarem a seus caprichos.

O bairro parecia ao duque – e isso a grandes distâncias – apenas um prolongamento do seu pátio, uma pista mais comprida para seus cavalos.

Sentimos num mundo, pensamos e nomeamos em outro mundo, podemos entre ambos estabelecer uma concordância, mas não preencher o intervalo. A dos criados é sem dúvida de uma estranheza ainda mais monstruosa e apenas o hábito no-la oculta.
[Ele está falando sobre criados da nobreza que desenvolvem adoração e interesse, por vezes lembrando um espécie de fixação, pela pessoa ou família a que servem]

Certas existências são tão normais que devem fatalmente engendrar determinadas taras.

Muito havíamos rido antigamente, minha mãe e eu, da sra. Sazerat que dizia, falando dos criados: “Essa raça, Essa espécie”. Mas devo confessar que o motivo pelo qual não me ocorria substituir Françoise por qualquer outro é que esse outro teria pertencido, do mesmo modo e inevitavelmente, à raça geral dos criados e à espécie particular dos meus.

A essa época eu pensava ainda que era por meio das palavras que a gente revela aos outros a verdade.

Toda realidade é talvez tão dessemelhante da que julgamos perceber diretamente e que compomos com a ajuda de ideias que não se mostram mas são ativas, assim como as árvores, o sol e o céu que não seriam tais como os vemos se fossem conhecidos por seres que tivessem os olhos constituídos de maneira diversa da nossa, ou então, que possuíssem, para esse fim, órgãos diferentes dos olhos e que proporcionassem das árvores, do sol e do céu equivalentes não visuais.

Uma pessoa não é, como o acreditara, clara e imóvel diante de nós com suas qualidades, seus defeitos, seus projetos, suas intenções a nosso respeito, e sim uma sombra onde jamais podemos penetrar, para a qual não existe conhecimento direto.

A língua falada, como a escrita, experimenta de tempos em tempos essa necessidade de alterações no sentido das palavras.

Todos nobres, salvo um ou dois plebeus, mas em quem os nobres tinham, desde o colégio, adivinhado amigos e aos quais se haviam ligado de muito boa vontade, provando assim que não eram, em princípio, hostis aos burgueses, fossem mesmo republicanos, contanto que tivessem as mãos limpas e comparecessem à missa.

Há muito menos ideias do que homens, portanto todos os homens de uma mesma ideia são parecidos. Como uma ideia nada tem de material, os homens que só materialmente estão ao redor do homem de uma ideia não a modificam em nada.

E como uma ideia é algo que não pode participar dos interesses humanos nem poderia gozar de suas vantagens, os homens de uma ideia não são influenciados pelo interesse.

Dir-se-ia que uma parte do meu peito fora seccionada por hábil anatomista, retirada e substituída por uma porção igual de sofrimento imaterial, por um equivalente de nostalgia e de amor. E, por mais bem-feitos que fossem os pontos de sutura, a gente vive muito mal quando a saudade de alguém substitui nossas vísceras.

Tem-se dito que o silêncio é uma força. Nada convida tanto a aproximar-se de uma criatura como aquilo que dela nos separa, e qual a barreira mais intransponível que o silêncio? Diz-se também que o silêncio é um suplício, capaz de tornar louco a quem a ele seja coagido nas prisões. Além disso, mais cruel que o das prisões, semelhante silêncio é a própria prisão.

A malvadez não tem provavelmente na alma do mau essa pura e voluptuosa crueldade que o mal nos faz só de imaginar. O ódio o inspira, a cólera lhe dá um ardor e uma atividade que nada têm de muito alegre; seria necessário sadismo para dele extrair prazer, e o malvado julga que é malvado aquele a quem faz sofrer.

O que os artistas chamam inteligência parece pretensão pura à sociedade elegante, a qual, incapaz de se pôr no único ponto de vista de onde julgam tudo, jamais compreendem a atração particular à qual cedem ao escolher uma expressão ou ao estabelecer uma aproximação – e experimenta junto dele um cansaço e uma irritação, de onde bem depressa nasce a antipatia.
Mas uma obra, mesmo que se debruce exclusivamente sobra assuntos que não são intelectuais, ainda assim é uma obra da inteligência, e, para dar num livro, ou numa conversa que dele pouco difira, a impressão acabada da frivolidade, é preciso uma dose de seriedade de que seria incapaz uma pessoa inteiramente frívola.

É verdade que o caleidoscópio social estava prestes a mudar e que o caso Dreyfus ia precipitar os judeus para o último degrau da escala social. Mas não é no começo de uma tempestade que as ondas atingem sua maior violência.

Como mulher agradável e que se esquiva ao tom das pretenciosas, ela evitava falar da questão do Oriente aos primeiros-ministros, tanto quanto da essência do amor aos romancistas e aos filósofos – O amor? – dissera uma vez a uma dama pretenciosa que a interrogara: Que pensa do amor? – O amor? Faço-o muitas vezes, mas nunca falo sobre ele.

Ouvindo os maridos dizerem maravilhas do espírito da duquesa, achavam que esta era tão superior ao resto das mulheres que se aborrecia na sua sociedade, pois as mulheres não sabem falar de nada. E é verdade que a duquesa se aborrecia junto das mulheres quando a sua qualidade principesca não lhes emprestava um interesse especial.

Cada um vê mais bonito o que vê à distância.

Ela raciocina como um homem, formula como um escritor.
[
Ah, o machismo sempre presente!]

A França, graças a Deus, não é uma república sul-americana e não se faz sentir a necessidade de um “pronunciamiento”.
[E a xenofobia]

Dizendo essas horríveis palavras quase doidas, o sr. de Charlus me apertava o braço a ponto de me fazer sentir mal. Lembrava-me da família do sr. De Charlus citando tantos casos de bondade admiráveis do barão, para com essa velha criada cujo patuá molieresco acabava de evocar, e dizia comigo que seria interessante estabelecer as relações, ao que me parecia pouco estudadas até agora, entre a bondade e a malvadez em um mesmo coração, por mais diversas que pudessem ser.

Pelo menos trata-se de um homem, não é um desses efeminados, como a ente encontra tanto hoje em dia.
[E a homofobia]

Era uma discussão entre nosso mordomo, que era deryfurista, e o dos Guermantes, antidreyfurista, as verdades e contraverdades que entre si opunham no auto os intelectuais da Liga da Pátria Francesa e as dos Direitos do Homem se propagavam de fato até as profundezas do povo.

Evidentemente a razão é mais livre; todavia, ela obedece a certas leis que não impôs a si mesma.

Na enfermidade é que percebemos que não vivemos sós, mas acorrentados a uma criatura de outro reino, cujos abismos nos separam, que não nos conhece e pelo qual nos é impossível fazer-nos compreender: o nosso corpo.

Para uma só afecção que os médicos curam com medicamentos (assegura-se, pelo menos, que isso aconteceu algumas vezes), provocam dez outras em pacientes saudáveis, inoculando-lhes esse agente patogênico, mil vezes mais virulento que todos os micróbios, a ideia de que estamos doentes.

Desfrutamos as finas músicas, os belos quadros, mil delicadezas, mas não sabemos o que essas obras custaram aos que as inventaram.

Um médico que não diz muita asneira é um doente meio curado, como um crítico é um poeta que já não faz versos, um policial é um ladrão que já não rouba.
[Não sei na época do Proust, mas hoje essa frase não é verdadeira, pelo menos quanto aos dois últimos casos, pelo menos não obrigatoriamente]

Mas é raro que essas grandes enfermidades, como a que por fim acaba de feri-la em pleno rosto, não se alojem por muito tempo no doente antes de matá-lo, e durante esse período não se façam logo conhecer, como um vizinho ou locatário sociável. É um terrível conhecimento, menos pelos sofrimentos que provoca do que pela estranha novidade das restrições definitivas que impõem à vida. Vemo-nos morrer, neste caso, não no próprio momento da morte, porém meses e até anos antes, desde que ela horrendamente veio morar conosco.

A amante que pressionamos, que suspeitamos esteja a ponto de nos trair, é a própria vida, e, embora sintamos que já não é a mesma, ainda acreditamos nela, pelo menos ficamos em dúvida até o dia em que ela enfim nos abandona.

Como está sozinha cada pessoa!

Houve um tempo em que a gente reconhecia bem as coisas, quando era Flomentin quem as pintava, e não as reconhecia mais quando se tratava de Renoir.

O tratamento pela sua pintura, pela sua prosa, nem sempre é agradável. Quando está acabado, o clínico nos diz: “Olhe agora.” E eis que o mundo (que não foi criado só uma vez, mas tantas vezes quantas apareceu um artista original) nos surge inteiramente diverso do antigo, mas perfeitamente claro.

Num dia em que tinha salvo, contra a sua vontade, uma viúva que se jogava ao mar, ela me dissera que não conhecia crueldade maior do que arrancar uma desesperada à morte que ela desejou e fazê-la regressar a seu martírio.

Qual amigo, por mais caro que seja, em cujo passado em comum com o nosso, não tenha havido esses minutos em que achamos mais cômodo persuadir-nos de que ele os esqueceu?

Quando as horas se envolvem nas conversas, já não podemos mais medi-las, nem sequer vê-las, elas se desvanecem e, de súbito, muito longe do ponto em que nos havia fugido, é que reaparece diante da nossa atenção o tempo ágil e escamoteado.

Apenas, o exemplo das outras coleções nos deveria advertir que trocássemos, que não tivéssemos somente uma mulher, porém várias.
Vivei completamente com uma mulher e não vereis mais coisa alguma do que vos fez amá-la.
[Talvez ele não tenha percebido que o mesmo pode valer para as mulheres quanto a viver com um homem]

E aqui devo apenas lamentar não ter permanecido bastante sábio para ver simplesmente minha coleção de mulheres, como se tem binóculos antigos, nunca suficientemente numerosos por trás da vitrine, onde sempre um lugar vazio espera um binóculo novo e mais raro.
[Pura manifestação machistóide!]

Não há nada como o desejo para impedir as coisas que dizemos de terem alguma semelhança com o que nos vai pelo pensamento.

Perder o caminho não é nada; o pior é não encontrá-lo.

Fariam reles figura moral devido à sua secura, à sua religiosidade superficial, que bradava apenas contra os escândalos, e sua apologia familiar de um cristianismo que findava infalivelmente num colossal casamento por dinheiro.

Pode-se dizer que o louvor mais alto de Deus está na negação do ateu, que acha a criação perfeita o bastante para prescindir de um criador.
[Eu não sou deste tipo; acho que a “criação” está MUITO longe de ser perfeita]

Fingia-se ignorar que o corpo de uma dona de casa era manuseado por quem quisesse, contanto que seu “salão” permanecesse intacto.

Ocupada em obras de caridade, de uma gentileza de tal modo humilde que se compreendia logo de que orgulho altaneiro essa gentileza se originava.

Enquanto Sait-Loup, que só possuía dívidasm deslumbrava Doncières com suas parelhas de cavalos, um Courvoisier muito rico nunca ali tomava senão o trem.

Às vezes estamos dispostos a crer que as condições atuais de um estado de coisas seja a única possível. Excelentes espíritos acreditaram que uma república não poderia ter diplomacia e alianças, e que a classe camponesa não suportaria a separação da Igreja do Estado. Afinal, a polidez em uma sociedade igualitária não seria um milagre superior ao sucesso das estradas de ferro e à utilização militar do aeroplano. Depois, se de fato a polidez desaparecesse, nada prova que isso seria uma desgraça. Enfim, uma sociedade não seria secretamente hierarquizada, à medida que fosse verdadeiramente mais democrática? É bem possível. O poder político dos papas aumentou muito desde que eles deixaram de possuir Estados e exércitos.

O espírito dos Guermantes – entidade tão inexistente quanto a quadratura do círculo, segundo a duquesa, que se julgava a única Guermantes a possui-lo.

Vivendo dessa vida mundana, cujo ócio e esterilidade estão, para uma atividade social verdadeira, como, na arte, a crítica está para a criação.

É possível, aliás, para retomar estas sessões da Câmara, que, quando se abrem, os próprios deputados se assemelham ao homem de bom senso que lerá o seu resumo. Sabendo que operários em greve enviaram seus delegados ao ministério, talvez se indaguem ingenuamente: “Ah, bem, que se terão dito? Esperemos que tudo se acomode”, no momento em que o ministro sobe à tribuna, em meio ao profundo silêncio, que já estimula emoções artificiais. As primeiras palavras do ministro: “Não tenho necessidade de dizer à Câmara que possuo um alto senso dos deveres de governo para não receber essa delegação, de que a autoridade do meu cargo não precisava tomar conhecimento” são um lance teatral, pois era a única hipótese que o bom senso dos deputados não havia formulado. Mas justamente porque se trata de um lance teatral, é acolhido por tais aplausos que só ao cabo de alguns minutos é que o ministro pode se fazer ouvir, esse ministro que receberá, ao voltar à sua cadeira, as felicitações dos colegas.

É bem raro que um dentre nós tenha o topete de sua originalidade e não se aplique em assemelhar-se aos modelos mais elogiados.

Às vezes na vida, sob o impacto de uma emoção excepcional, a gente diz o que pensa.

- Que linda flor!
- Encantada de que lhe agrade: elas são deslumbrantes, repare na sua golinha de veludo cor de malva; apenas, como pode ocorrer com pessoas muito bonitas e bem vestidas, têm um nome horrendo e cheiram mal.

Parece que, no meu recanto de jardim, passam-se de dia mais coisas inconvenientes que à noite... no Bois de Boulogne! Apenas, isso não é notado porque entre flores é feito com muita simplicidade; vê-se apenas uma chuvinha alaranjada, ou então uma mosca, muito poeirenta, que vem secar as patas ou tomar uma ducha antes de entrar numa flor. E tudo está acabado!
[Bois de Boulogne é um parque parisiense famoso por abrigar encontros íntimos de casais]

Tem-se entre nós e cada pessoa o muro de uma língua estranha.

Nossa memória e nosso coração não são bastante grandes para poderem ser fiéis. Não temos bastante espaço, no nosso pensamento atual, para nele guardar os mortos ao lado dos vivos.

Se um devoto será mais capaz de nos responder sobre a liturgia do que um livre-pensador, em compensação um arqueólogo anticlerical poderá muitas vezes fazer reparos a seu cura sobre tudo o que se refira até mesmo à igreja deste.

Por mais que se chamassem príncipe de Agrigento ou de Cystria, sua máscara de carne e de inteligência comum os transformava em homens quaisquer.

A necessidade de falar não impede apenas de escutar, mas de ver, e, nesse caso, a ausência de toda descrição do meio exterior já é uma descrição de um estado interno.

A doença produz modificações tão profundas no rosto como usar barba ou variar a repartição do cabelo.

Nossas existências são de fato, pela hereditariedade, tão cheias de cifras cabalísticas, como se na verdade existissem feiticeiras.

Como todas as pessoas que esposam uma opinião apaixonada, preferia, para explicar que certas pessoas dela não compartilhassem, supor-lhe uma razão pré-concebida, um preconceito contra o qual nada havia de fazer, em vez de razões que se pudessem discutir.

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