CORAÇÃO DAS TREVAS



Entre nós havia o laço do mar, ele tinha o efeito de nos tornar tolerantes às longas histórias – e mesmo às convicções uns dos outros.

Todos os navios são muito parecidos, e o mar é sempre o mesmo. Na imutabilidade que habitam, são as terras estrangeiras, os rostos estrangeiros, a imensidade cambiante da vida, que se sucedem à frente deles.

Não existe nos homens do mar mistério algum além do próprio mar.

Os longos relatos dos homens do mar têm uma simplicidade direta cujo significado total cabe na casca de meia noz.

A selvageria mais extrema se fechara à sua volta. E não existe iniciação para esses mistérios. Ele precisava viver no meio do incompreensível, que também é detestável. E tudo isso ainda tem um fascínio de abominação.

Eram conquistadores, e para isso basta a força bruta – nada de que alguém possa se vangloriar, pois a sua força não passa de um acidente produzido pela fraqueza dos outros.

A conquista da terra, que antes de mais nada significa tomá-la dos que têm a pele de outra cor ou o nariz um pouco mais chato que o nosso, nunca é uma coisa bonita quando a examinamos bem de perto.
[Porque é um roubo, e um roubo seguido de muita violência]

Só o que redime a conquista é a ideia. Uma ideia por trás de tudo; não uma impostura sentimental mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia – uma coisa que possamos por no alto, frente à qual possamos nos curvar e oferecer sacrifícios.
[E achar normal, e até válido e louvável, cometer as mais terríveis atrocidades. Assim é a humanidade e assim são as suas crenças]

Apareceu uma cabeça branca secretarial.

Besteiras dessa ordem vinham circulando em profusão naquela época, tanto em letra impressa como de viva voz, e a boa senhora, exposta à euforia de toda aquela vigarice, acabara se deixando levar. Falou de “desapegar esses milhões de ignorantes dos seus modos horrendos”, insistindo a tal ponto que, dou-lhes a minha palavra, fiquei muito constrangido. E me arrisquei a sugerir que a Companhia existia para dar lucro.

Encontramos um navio de guerra ancorado ao largo da costa. Não havia nem mesmo uma palhoça naquele local, e o navio bombardeava a mata. [...] Um navio de guerra disparando contra um continente.

Paramos em mais alguns lugares com nomes de farsa, onde a dança agitada da morte e do comércio prosseguia numa atmosfera imóvel e empoeirada como a de uma catacumba superaquecida.

É engraçado o que algumas pessoas aceitam fazer por uns poucos francos ao mês.
[A frase vale para qualquer moeda, né?]

Seis homens negro avançavam em fila, traziam farrapos negros enrolados em torno dos quadris. Eu podia distinguir todas as suas costelas, a justa dos seus membros lembravam nós numa corda, cada um trazia uma coleira de ferro no pescoço e todas estavam unidas por uma corrente cujos grandes elos oscilavam entre os homens, chacoalhando ritmicamente.

Por nenhum esforço de imaginação aqueles homens podiam ser chamados de inimigos. Aqui eram chamados de criminosos, e a lei que violaram chegara a eles da mesma forma que aqueles projéteis explosivos, um mistério insolúvel vindo do mar.

Já vi o demônio da violência, o demônio da cobiça e o demônio do desejo ardente; mas, por todas as estrelas, eram todos demônios fortes, vigorosos, de olhos vermelhos, que dominavam e impeliam os homens. Mas ali, naquela colina, antevi que ao brilho ofuscante do sol daquela terra eu iria conhecer um outro demônio, flácido, falso e de olhos fracos, de uma insensatez rapinante e impiedosa.

Não eram inimigos, não eram criminosos, não eram mais coisa alguma que fosse terrena – nada mais que sombras negras da doença e da fome, jazendo de cambulhada na penumbra verde.

Bem, se um bando de negros misteriosos portando todo tipo de armas assustadoras adotasse de uma hora para outra o hábito de percorrer as estradas entre Deal e Gravesend [porto e cidade de Londres], capturando a torto e a direito os locais mais simplórios para obrigá-los a carregar seus fardos pesados, imagino que as propriedades e os chalés da região também se esvaziassem em pouco tempo.

Fora encarregado da manutenção da estrada, declarou. Não posso dizer que tenha visto manutenção, a menos que o corpo de um negro de meia-idade com um furo de bala na testa, no qual praticamente tropecei cinco quilômetros adiante, possa ser considerado um melhoramento permanente.

A saúde triunfante, em meio à derrocada geral das constituições, já era um poder em si mesma.

Uma atmosfera de intriga pairava por todo o posto. Era tão irreal a falsa intenção filantrópica do empreendimento, como as suas conversas, como o seu governo, como o trabalho que simulavam realizar.

Deixei que ele prosseguisse, aquele Mefistófeles de papier mâché, e me pareceu que, caso eu quisesse, poderia trespassá-lo com o indicador sem encontrar substância alguma além de uma certa sujeira solta, talvez.

O grande rio que eu via através de uma brecha escura cintilando, cintilando, enquanto seguia seu vasto curso sem nem mesmo um murmúrio. Perguntei-me se devia ver como um apelo ou como uma ameaça o aparente silêncio da imensidão que nos contemplava. O que éramos nós, que tínhamos ido fazer ali? Seríamos capazes de dar conta daquela coisa muda, ou era ela que acabaria conosco?

Odeio, detesto e não suporto a mentira, não porque eu seja mais correto que o resto dos homens, mas simplesmente porque ela me causa horror. Existe um ranço de morte, um laivo de mortalidade na mentira – que é exatamente o que odeio e detesto no mundo.

Nenhum relato de sonho sabe transmitir a sensação do sonho. Vivemos como sonhamos – sozinhos.

Nenhum homem – o senhor me compreende? – nenhum homem daqui tem a vida protegida por magia alguma.

A sua própria realidade – para você, não para os outros – que nenhum outro homem jamais terá como conhecer. Os outros só enxergam a mera aparência, e jamais sabem o que a pessoa de fato sente.
[A mente da outra pessoa é o território mais desconhecido que existe, e o mais difícil de alcançar]

A linguagem que usavam, contudo, era a dos bucaneiros mais sórdidos: descuidada sem ousadia, gananciosa sem audácia e cruel sem coragem.

Arrancar tesouros das entranhas da terra era seu desejo, e por trás do projeto não havia mais finalidade moral que entre os arrombadores de um cofre.

Aprendia a cerrar os dentes bem a tempo de impedir que meu coração saísse pela boca.

Penetrávamos mais e mais fundo no coração das trevas.
[primeira aparição do título]

Ali podíamos ver a monstruosidade à solta. Não era uma coisa deste mundo, e os homens... Não, não eram desumanos. Bem, vocês sabem, era isso o pior de tudo – essa desconfiança de que não fossem desumanos.

A ideia do nosso parentesco remoto com toda aquela comoção selvagem e passional era muito feia.
[Sempre se tenta dizer das pessoas diferentes, das pessoas perversas que não são humanas... mas isso não é verdade, é pura invenção que criamos, em uma tentativa frustrada de separar tais pessoas de nós, como se fôssemos superiores]

Princípios? Os princípios não funcionam. As aquisições, as roupas, tudo belos panos – panos que se desprendem, e o vento leva no primeiro embate.

Vocês se perguntam se por acaso não desci em terra para berrar e dançar um pouco? Bem, não – não desci. Os belos sentimentos, dizem vocês? Pois ao diabo com os belos sentimentos! O que eu não tive foi tempo.

E eu ainda precisava tomar conta do selvagem que fazia as vezes de foguista. Era um espécime evoluído; sabia manter acesa uma caldeira vertical. Ficava logo abaixo de mim, e, dou-lhes a minha palavra, vê-lo trabalhar era tão edificante quanto assistir a um cão andar nas patas traseiras, vestindo uma paródia de calças e um chapéu de plumas. Alguns meses de treinamento haviam bastado àquele excelente sujeito.
[Mais indícios claros, e muitas vezes ignorados, de que são tão humanos e tão capazes quanto seus algozes que se acham tão superiores]

Eu olhava para eles como se pode olhar para qualquer ser humano, com curiosidade em relação aos seus impulsos, motivações, capacidades e fraquezas, quando postos à prova por uma necessidade física inexorável.

Não há medo que resista à fome, não há paciência capaz de suplantá-la, o asco simplesmente deixa de existir onde a fome aparece e, quanto à superstição, as crenças ou o que vocês podem chamar de princípios são menos ainda que farelo ao vento.

Na verdade, é mais fácil passar por qualquer outra privação, enfrentar a desonra ou a perdição da alma – do que esse tipo de fome duradoura. É triste, mas verdadeiro.

Mesmo a dor extrema pode acabar encontrando vazão na violência – só que no mais das vezes assume a forma de apatia...

A torrente enganosa que brotava no coração das trevas impenetráveis.
[Segunda citação do título]

Ah, sim, ouvi mais que o suficiente. E de fato eu tinha razão. Uma voz. Ele era bem pouco mais que uma voz.

Como podem vocês imaginar a qual região particular das eras primevas os pés desimpedidos de um homem podem levá-lo quando ele se depara com a solidão – a solidão absoluta, sem polícia – quando se depara com o silêncio – o silêncio absoluto, sem a voz de um bom vizinho para ser ouvida a lembrar-lhe num murmúrio a opinião pública?
[Quem usaria a ética e obedeceria às leis o tempo todo se tivesse certeza da impunição e de que ninguém saberia?]

Fui encarregado de zelar pela sua memória. E fiz por ela o suficiente para adquirir o direito incontestável de destiná-la, se assim decidir, a um repouso eterno na lata de lixo do progresso, junto com toda a sujeira e, falando figurativamente, todos os gatos mortos da civilização.

Na região sem luz de horrores sutis a que eu me sentira transportado num salto, a selvageria pura e sem complicações constituía um autêntico alívio, por ser alguma coisa que tinha o direito de existir – com toda a obviedade – à luz do sol.

Gritavam juntos, a intervalos, uma enfiada de palavras espantosas que não lembravam nenhum som da fala humana.
[Porque para os colonizadores, aqueles povos não eram humanos, e infelizmente, para muitas pessoas escrotas, não são ainda hoje]

"O horror! O horror!”
[Exclamação mais famosa e emblemática do livro e do filme]

Que coisa engraçada é a vida – esse arranjo misterioso de lógica impiedosa visando algum desígnio fútil. O máximo que dela se pode esperar é um certo conhecimento de si mesmo – que chega tarde demais – uma safra de remorsos inextinguíveis. Já lutei contra a morte. É a luta mais desinteressante que vocês podem imaginar.

Estive a um fio de cabelo da última oportunidade de me pronunciar, e descobri humilhado que provavelmente não teria nada a dizer.

Vi-me de volta na cidade sepulcral, ressentido com as pessoas que andavam apressadas pelas ruas empenhadas em conseguir surrupiar algum dinheiro umas das outras, devorar a sua comida infame, engolir a sua cerveja insalubre, sonhar os seus sonhos ridículos e insignificantes.

O coração das trevas vitoriosas.

“O horror! O horror!”

UM POSTO AVANÇADO DO PROGRESSO
[Conto do mesmo autor que faz parte da edição da Companhia de Bolso]

Toda ideia, grande ou insignificante, pertence não ao indivíduo mas à massa: à massa que acredita cegamente na força irresistível das suas instituições e da sua moral, no poder da sua polícia e da sua opinião.

A sociedade, não por ternura mas em razão de suas estranhas necessidades, sempre olhara por aqueles dois homens, proibindo-lhes qualquer pensamento independente, qualquer iniciativa, qualquer desvio da rotina.

Qualquer pessoa demonstra uma deferência respeitosa perante certos sons que ela própria ou os seus semelhantes são capazes de emitir. Quanto aos sentimentos, porém, ninguém na verdade sabe nada.

Ninguém sabe o que significa o sofrimento ou o sacrifício – exceto, talvez, as vítimas da finalidade misteriosa dessas ilusões.

Os maus foram embora, mas o medo ficou. O medo sempre fica. Um homem pode destruir tudo dentro de si, o amor, o ódio e a fé, e mesmo a dúvida, mas, enquanto ele se aferrar à vida, não consegue acabar com o medo.

Carlier teve um acesso de raiva provocado pelo incidente e começou a falar da necessidade de exterminar todos os negros para que aquele país se tornasse habitável.

Detesto hipócritas. Você é um hipócrita. É um traficante de escravos. Eu sou um traficante de escravos. Só existem traficantes de escravos nesse maldito país.

POSFÁCIO
[De Luiz Felipe de Alencastro]

A conquista da terra, que antes de mais nada significa tomá-la dos que têm a pele de outra cor ou o nariz um pouco mais chato que o nosso, nunca é uma coisa bonita quando a examinamos bem de perto.

Movido pelo comércio e pela ideia de progresso, o colonizador arroga-se o direito de perpetrar matanças.

Perto do Congo, na atual Namíbia, então colônia da Alemanha, ocorreu em 1904 o massacre do povo hereró perpetrado em nome da civilização pelo exército alemão, primeiro autêntico genocídio do século XX.

O bandeirante antigo, predador dos índios e predador de terras.

No século XVII, os bandeirantes haviam sido condenados pelo Conselho Ultramarino. No século XX eles são transformados em heróis e em nome de rodovias.
[Temos todo tipo de assassinos e ditadores em nosso panteão de heróis, e tem muita gente que ainda hoje acha isso certo]

O imperialismo consumado em nome da Civilização e do Progresso [...] permitia que o texto ímpar de Oliveira Viana inicialmente intitulado “Evolução da raça”, fosse publicado por um órgão do governo federal brasileiro, como introdução oficial dos resultados do Censo Nacional de 1920.
[Eugenia, ideia falsa, preconceituosa e absurda que deveria estar morta mas que continua tendo defensores]

Conrad também era um colonizado. Polonês nascido fora da Polônia, francófilo frustrado no seu projeto de se estabelecer na França, tripulante de navios de outras nações nos mares do mundo.

O abolicionismo e a bandeira da “civilização contra a barbárie” serviram também para legitimar a intervenção militar, a ocupação e a colonização em largos territórios africanos.

Conrad constata que a filantropia europeia servia de cobertura à mais abjeta sujeição dos africanos.

Em 1904 Conrad escreve: “Um rei rico e inescrupuloso não é um adversário fraco [...] mas o fato é que [...] existe na África um Estado do Congo, criado por um ato das Potências europeias, onde a brutalidade e crueldade sistemática para com os negros é a base da administração [...] Faça o uso que você quiser do que estou lhe escrevendo”.

“A selvageria mais extrema se fechara à sua volta – toda aquela vida misteriosa e desconhecida que pulsa nas matas, nas florestas, nos corações dos homens selvagens [...] Ele precisa viver no meio do incompreensível, que também é detestável. E tudo isso ainda tem um fascínio, que começa a atuar sobre ele. O fascínio da abominação”.

No final do filme, Kurtz (Brando), contando a Marlow-Willard as atrocidades cometidas pelo Vietcongue elogia a frieza e a eficácia de seus inimigos, e completa: “A gente deve ter homens que tenham moralidade... e que sejam capazes de utilizar ao mesmo tempo seu instinto primordial para matar sem sentimento... sem paixão... sem reflexão... sem reflexão. Porque é a reflexão que nos derrota”. A frase salienta a questão de fundo implícita em “Apocalypse now”: em que circunstâncias as democracias ocidentais podem levar a cabo as guerras coloniais? Exposta por Conrad, estudada por Hannah Arendt, a questão continua na atualidade.

Mais de cem anos após sua publicação, a novela ainda nos interpela como leitores e como cidadãos do mundo.

[O filme é maravilhoso, o livro é imperdível, uma narrativa agradável e fluida. Conciso e fantasticamente abrangente ao mesmo tempo. Uma preciosidade na minha opinião]

 

 

 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

GÊNEROS LITERÁRIOS - Angélica Soares

O GUIA DO MOCHILEIRO DAS GALÁXIAS - Douglas Adams

DO GROTESCO E DO SUBLIME de Victor Hugo