O POÇO DA SOLIDÃO




PREFÁCIO

Marguerite Radclyffe Hall, poetisa e romancista inglesa, nasceu no Condado de Hants, em Bournemouth, em 1886. E faleceu em Londres, aos 7 de outubro de 1943.

A obra prima de Radclyffe Hall, foi O Poço da Solidão. Ao ser publicado em 1928, O Poço da Solidão deu ensejo a um dos mais celebres processos por obscenidade na história da justiça britânica, resultando numa proibição de 20 anos na Inglaterra e Estados Unidos. Além de sua qualidade intrínseca, O Poço da Solidão tem um valor histórico pois chamou a atenção do público para a existência das lésbicas, bem como das lésbicas para as suas próprias circunstâncias.

Há aqueles para quem o livro de Marguerite ainda fala de um sofrimento muito próximo de sua realidade particular.


***

Não era de índole religiosa, consequência decerto de estudar demais.

Anna Gordon deu à luz uma filha; uma insofrida pequerrucha de flancos estreitos e de ombros largos.
[Desde aqui a autora dá características masculinas à personagem, como se para ser "invertida" a pessoa tivesse que ter essas características, provavelmente se pensava algo assim na época]

Ele não somente insistia em chamar a criança pelo nome de Stephen como queria até batizá-la assim.

Conquanto aquela voz fosse amistosa, os olhos estavam frios; e a mão que acariciava era, nesse gesto, demasiado dúbia, como forçada a acariciar. E Stephen percebia esse esforço.

Anna, olhando de modo grave para a filha, reparando naqueles cabelos abundantes, escuros, naqueles olhos castanhos tão vivos, tão parecidos com os do pai, sentia-se acometida por uma reação brusca, próxima quase do ressentimento.
[E desde aqui, a autora coloca a aversão da mãe à "inversão" visível na filha. A semelhança da criança com o pai logo começa a parecer maior do que seria possível em uma menina "normal"]

Mulheres da região com seus toucados, tão parecidas com suas galinhas.

E passava o resto das horas resmungando, pois quando se é infeliz se deve resmungar, pelo menos quando se tem ainda somente sete anos, pois mais tarde não adianta mais!

Os feitiços! De fato, agiram conforme sempre acontece com os feitiços feitos com atraso e negligência.

Mais do que tudo, invejava a esplêndida convicção dele de que isso de ser um rapaz constituía um privilégio na vida.
[Os primeiros sentimentos de uma mulher trans? Talvez]

Um vale com pequenos casais e árvores de ar maternal, suavemente ondulado.

Eram acima de tudo, tenazmente conservadores como espírito, tão conservadores como o serviço de mesa conjugal, e quase tão persistentes quanto às diferenciações específicas entre damas e cavalheiros.

Ainda não aprendera a terrível lição, ainda não sabia que o lugar mais desolado deste mundo é a “terra de ninguém” do sexo.
[Ainda não sabia que seria vista como "anormal" e sofreria muito com isso, mas não demoraria a perceber que algo estava "errado"]

“Uma jovem daquela idade, montar a cavalo feito homem? Isso é inadmissível!”

Para ela, não parecia haver nada de exótico nem de profano no amor que sentia por Ângela Crossby. Isso lhe parecia uma coisa inevitável, uma parte tão sua como a própria respiração.
[E deveria ser visto dessa forma pelas pessoas, mas infelizmente não é]

“Sou o que eu me sinto, ou o que sou eu?”

Não poderia sequer proteger nem defender, e muito menos honrar, amando; suas mãos estavam completamente vazias. Ela, que de bom grado daria até a sua vida, devia ir para o amor de mãos vazias, como mendiga. Só podia aviltar aquilo que tanto ansiava exaltar, macular o que tanto ansiava conservar puro e imaculado.
[Por causa de uma sociedade preconceituosa e hostil, pessoas sofrem tanto por ter nascido como nasceram. Esse preconceito é um dos maiores absurdos criados pelo animal humano]

Da chaminé da casinhola pacífica de. Williams, se levantaria uma fumaça — muito negra — a primeira fumaça matutina. Lar, aquilo significava um lar, duas pessoas juntas, respeitadas por causa de sua vida respeitada. Duas pessoas que tinham tido o direito de amar em sua mocidade, e às quais a velhice não dividira.

Você não é anormal, nem abominável, nem louca; você é, quando muito, parte, como qualquer outra, daquilo que o povo chama natureza; mostre ao mundo que gente como você pode muito bem ser tão desprendida e magnânima como o resto da humanidade.

Você tem de se habituar ao mundo... é um lugar horrível cheio de gente medonha, mas é tudo quanto há, e nós vivemos nele.

Você há de se querer casar, não é mesmo? Nenhuma mulher é completa a não ser que se case.
[Essa é uma criação anormal de uma sociedade anormal e hipócrita]

Dar-se-ia conta, mais nitidamente do que nunca, de que o amor só é permitido àqueles que são talhados em perfeito acordo com o padrão da vida.
[Da vida não! De uma sociedade hipócrita e má]

Eu sou uma pobre coisa errada, sou um erro de Deus...Não sei se há mais alguém assim como eu, tomara que não haja, pois é um autêntico inferno.

— Então tu sabias! Sempre soubeste e, movido por piedade, não quiseste me falar! Oh! Pai...E há tantas e tantos assim como eu... Milhares de miseráveis, milhares de pessoas indesejáveis, que não têm direito a amar, nenhum direito à compaixão porque são defeituosas, medonhamente defeituosas e horrendas...Deus é cruel; ao nos criar, Ele nos fez criaturas imperfeitas.

Nada existe que seja completamente perdido ou excluído; tenho certeza! Todos fazemos parte da natureza. Dia virá em que o mundo reconhecerá isso.
[Para ela, demorará tempo demais]

Sou atormentada por este corpo que sempre me afligiu, que nunca me deixará em paz nem terá paz ele próprio. Que fiz eu para ser amaldiçoada?

Todas as suas belas teorias de fazer só o bem em consideração aos que eram assim, ser nobre, generosa, paciente, honrada, suportando tudo porque assim é que tem de ser, este o único direito nato do invertido.
["Invertido" é como se chamavam as pessoas LGBT naquela época. E pouco se sabia sobre elas porque eram vistas e tratadas como doentes e anormais]

Todas as belas teorias de Pudle jaziam aos pedaços. Naquele momento, só via uma coisa claramente: o gênio legítimo agrilhoado, e agrilhoado pela carne, um admirável espírito sujeito à servidão física.

Agora já não sentia amor quando se lembrava de Angela Crossby... E isso significava que seu coração tinha morrido dentro dela. Um coração morto! Ah! Que companheiro mais tétrico, um coração morto!

Que coisa terrível isso de liberdade! As árvores ficavam livres quando o vento as arrancava pelas raízes; os navios ficavam livres quando arrebentavam suas amarras; os homens ficavam livres quando eram expulsos de seus lares...Liberdade. Que direito tinha uma mãe de abominar a filha que brotara dos seus secretos momentos de paixão? Ela, a mãe honrada, feliz, produtiva, amada e amorosa, desprezava o fruto do seu amor. Fruto? Não, antes dizer: vítima. “Preferia te ver morta a meus pés...” Demasiado tarde, muitíssimo tarde. Pois perduro, vivo, aqui estou eu, a criatura que concebeste através do teu amor. Através da tua paixão criaste o ser que eu sou. Quem és tu para me negares o direito de amar? Pois não foi por teu intermédio que conheci a existência?

Só podia degradar o espírito uma vida de perpétuos subterfúgios, de opiniões contidas e de ações encobertas, de mentiras por omissão, a injustiça do mundo pelo fato de precisar manter permanentemente um silêncio judicioso, as sinceras amizades acaso feitas devendo ser mantidas à custa de hábeis despistamentos, para não se dar ao caso de virem a saber de tudo e se afastarem.

E Brockett continuou a tagarelar, e, ao fazer isso, sua voz tomava aquele timbre efeminado que Stephen sempre odiava e temia. — Oh! estava secretamente aprovando, não porque ela, sua visita, fosse um ser humano decente, com vontade de trabalhar, com um cérebro eficiente, com algo que mais tarde viria a ser um ótimo talento, mas sim porque via ali na sua frente todos os estigmas exteriores da pessoa anormal.... na verdade, as feridas de alguém pregado em uma cruz....
[Tantas vezes acontece algo do tipo! De tanto ser exposta à opinião de que é anormal e não merece nenhuma consideração, afeto e menos ainda amor, a pessoa começa a sentir essa aversão pelas pessoas que são semelhantes a ela. Na outra pessoa, recusa a si mesma. Muito triste isso!]

— Valérie não gosta mais de mim! — suspirou ele com um olhar desgostoso para Stephen. — Maldito destino o meu! Sempre que apresento um ao outro os meus melhores amigos ou amigas.... se mancomunam imediatamente e me deixam ao relento. Ainda bem, louvado seja Deus, que sei perdoar!...

Nesta vida a gente tem de pagar seu gozo...Eles pagariam com filhos, e isso a Stephen parecia coisa belíssima.

Com as suas presumidas regras de comportamento feitas para serem infringidas por quantos se enchem de jactância e de orgulho ante a certeza genérica de serem normais. E pisam na nuca daqueles outros milhares que, Deus sabe por que razão, não são feitos como eles; tomados de indignação, estufam de orgulho individual e se acham no direito lógico de emitir juízos que acham acertados. Pecam grosseiramente, ignobilmente mesmo, como bestas-feras luxuriosas; mas é que são...normais! E o mais ignominioso dentre eles pode apontar com o dedo para ela, acusá-la e ser estridentemente aplaudido.
[Eis a descrição da sociedade que repudia as pessoas diferentes, hipocrisia e maldade é uma mistura tóxica]

“Somos todos uns imbecis para com a natureza. Criamos as nossas regras e chamamos a isso natureza; dizemos: ela faz isto, ela faz aqui! Imbecis! Ela faz o que lhe apraz e em seguida nos mostra a língua”.

Então, ela e Mademoiselle se punham a conversar sobre a infância de Stephen, bem como sobre o seu futuro, mas cautelosamente, pois Pudle observava o maior empenho para não deixar que aquela criatura tão simples percebesse qualquer coisa. Quanto a Mademoiselle, está também se mostrava muito prudente, aceitando tudo sem fazer perguntas. Contudo, não obstante as inevitáveis lacunas e restrições, uma real simpatia brotou de ambas, Pois cada uma sentiu na outra uma valiosa aliada, que travaria uma leal batalha em favor de Stephen.

E, leal para com as suas tradições, a linda cidade fazia tudo para esconder, debaixo de uma ampla beleza, a hediondez do presságio já realidade. Procurava mascarar a significação verídica da guerra, servindo-se de atavios e pompas. E onde, dias antes, bandos de crianças tinham estado brincando, agora acompanhavam tropas que se estendiam até os Champs Elysées. A multidão atacava lojas por causa de seus nomes alemães, e a mercadoria era jogada nas sarjetas. Pauline disse: — Ao mar, dei meu pai e meu irmão mais velho...Tenho ainda dois irmãos moços. Fiquei só com estes, mas os darei à França. Bon Dieu, que coisa terrível ser mulher! A gente tem de dar tudo!
[Está prestes a começar a Primeira Guerra Mundial]

Algum dia soube você de alguma coisa mais estúpida do que esta guerra? Não se vai ouvir mais nada, minha querida, a não ser a morte!

Tudo quanto possuía configuração máscula se lhe tornava mais agressivo, mais talvez do que nunca, por causa dessa nova frustração. Sentiu-se perplexa ao se dar conta do grotesco da sua contingência humana e pessoal. A guerra e a morte deram um direito à vida, e a vida tinha um gosto bom, quase doce, jamais amargo. Depois, mais tarde, é que a haveriam de sentir amarga, com desilusões, mas nunca mais se submeteriam, tais mulheres, a serem enxotadas para seus buracos e recantos. Nisso de guerras chega uma hora em que o hábito acaba tornando cediça até mesmo a compaixão.

Há uma coisa que a humanidade não consegue nunca destruir, a despeito da sua insensata vontade de aniquilação. Trata-se do seu próprio idealismo, essa parte integrante do seu próprio ser. Os velhos e os cínicos podem fazer guerras, mas os jovens e os idealistas os combaterão.
[Sim, combaterão. Mas tão poucas vezes vencerão... se é que vencerão um dia]

As remanescentes da Unit se viam obrigadas a trabalhar como verdadeiros negros.
[Nem se pensava em chamar esse tipo de comentário de racismo na época em que o livro foi escrito, infelizmente]

Todos os cursos de seus pensamentos eram veredas que vinham dar de novo em Mary.

Pierre tratou de apontar para a fita verde e vermelha na lapela do casaco de Stephen. — C ’est la Croix de Guerre! E assim todos acabaram à sua volta, para admirar aquela meia polegada de honra e glória.

O mundo condenaria, mas ambas se rejubilariam; exiladas sem pejo, excluídas gloriosas, párias triunfantes!

“Eu sou uma dessas a quem o Senhor marcou na testa. Como Caim, fui marcada, e manchada estou. Se você vier para mim, Mary, o mundo a abominará, a perseguirá e a chamará de imunda. O nosso amor poderá ser sincero até a morte e além dela..., mas ainda assim o mundo o chamará de impuro. Com o nosso amor, não prejudicaremos nenhuma criatura viva; pelo contrário, nos tornaremos mais perfeitas quanto à compreensão e à caridade, por causa do nosso amor; mas nada disso salvará você do desprezo do mundo, que arredará os olhos das suas mais nobres ações, só achando corrupção e vilania em você. Fartar-se-á você de ver homens e mulheres se corrompendo um ao outro, atirando o fardo de seus pecados para cima dos filhos. Verá você insinceridades, mentiras e dolos entre aqueles que o mundo contempla com ar de aprovação. Descobrirá você muitos de coração cada vez mais duro, mais egoísta e mais voraz, tendo só crueldade e ambição. E então, você se voltará para mim e me dirá: “Merecemos muito mais respeito do que essa gente. Por que é que o mundo nos persegue, Stephen?” E eu lhe responderei: “Porque neste mundo só é tolerado aquilo que é tido como normal”. E quando você correr para mim, em busca de proteção, eu direi: “Eu não posso protegê-la, Mary, o mundo me destituiu do meu direito de proteger. Não posso fazer absolutamente nada, apenas posso amar você”.
[Uma pessoa não deveria nunca ser obrigada a descrever seu amor com tanto amargor assim]

Não passava de uma mulher que sofria de reumatismo no inverno e de opressões no verão.

O coração pulsava mais depressa, e a alma se debatia em misteriosos pensamentos, ficando pesada de uma tristeza indefinida, de desejos já não mais contidos, enquanto o corpo se alvoroçava com a ânsia de realizações plenas.... Oh! Antes de te ver eu tinha paz.

O amor não se escraviza à simples linguagem. Que vontade sentia Mary de que Stephen a tomasse nos braços! Que desejo de apoiar a face de encontro ao ombro de Stephen, como se ambas tivessem direito a uma tal música, a comparticipar das canções de amor do mundo.

O tempo, o mais implacável inimigo dos amantes, prosseguiu tenazmente até desaguar na primavera.

Esses irmãos negros não eram nada parecidos um com o outro. Lincoln, o mais velho, era de tez mais opaca. Baixote e atarracado, tinha, porém uma fisionomia esculpida, mas intelectual — uma cara forte, vincada demais para uma pessoa de trinta anos. Seus olhos possuíam aquela expressão paciente, indagadora, tão comum nos olhos da maioria dos animais e dos espécimes de todas as raças de evolução lenta.
[O racismo estrutural explícito e comum naquele tempo]

Aquele Homem que era Deus, um Deus que esperava, poderia Ele responder ao enigma da existência de Wanda? Se Lhe fosse perguntado, responderia? E se ela, a própria Stephen, se pusesse de repente a clamar: “Baixa Teus olhos sobre nós: nós duas aqui estamos, lutando em nome de milhares e milhares! Nosso nome é legião, e também nós estamos esperando e também já estamos exaustas, oh! terrivelmente exaustas. Não nos darás alguma esperança de um alívio final? Não nos dirás o segredo da nossa salvação?”
[Não é fácil se desvencilhar da religião hoje, menos ainda naquela época. Então, as pessoas "invertidas" adoravam o deus que foi criado para trazer o sofrimento a elas. Muitas pessoas LGBT fazem o mesmo ainda hoje]

Pertencia à geração mais nova, e por conseguinte mais inquieta, mais agressiva e mais senhora de si; uma geração que marchava para a batalha com muito mais entusiasmo, com muito mais sons de tambores e de clarins, uma geração que viera depois da guerra para empreender uma nova guerra em um mundo hostil.

O bar conhecido como Alec, aquele cruel esconderijo onde se negociava com drogas, com a morte, e para onde trotava o rebanho vencido dos homens que o resto da humanidade conseguira espezinhar, e que, abominados pelo mundo, se abominavam a si mesmos sem a menor esperança de salvação.
[A descrição de um dos lugares onde pessoas "invertidas" conseguiam permanecer sem precisar fingir]

Usavam joias que só podiam ser usadas por esses homens quando se achavam assim reunidos juntos; somente ali, no Alec, ousavam dar saída à tais gostos; o que ainda havia de pessoal em cada um se exteriorizava ali, no Alec. Abominados, cuspidos, desde os seus prematuros dias vítimas de incessante perseguição, se havia um Deus, Sua raiva devia se levantar ante tamanha injustiça.

Tudo isso neles não passa de desespero, Srta. Gordon. No entanto, aí fora existe gente feliz que dorme o sono dos chamados justos e direitos. E, quando acordarem, será para perseguir aqueles que, por causa de uma falta que não é absolutamente deles, foram postos à margem desde o dia em que nasceram, ficando privados de toda simpatia e compreensão...

A impelia uma necessidade urgente, a ânsia de aliviar seu espírito cansado de tantos problemas concernentes à inversão. Como tantos outros invertidos, ela achava um alívio passageiro em discutir esse intolerável estado, em dissecá-lo pedaço por pedaço, muito embora sem chegar jamais a qualquer solução. Até quando haveria tal perseguição de continuar? Até quando Deus se quedaria quieto e suportando esse insulto à Sua Criação? Até quando se deveria tolerar o ponto de vista absurdo de que a inversão não era uma parte da natureza? Pois, já que ela existia, que é que ela era, afinal? Então todas as coisas que existiam não eram uma parte da natureza?

Pessoas diligentes, homens honrados, mulheres direitas, algumas até possuindo cérebros ótimos, e, todavia, não tendo a coragem de admitir que eram invertidas. Esplêndidas, ao que parecia, em tudo, menos na atitude que o mundo as forçara a adotar, nessa mentira indigna, através da qual esperavam achar paz e confiavam poder fazer face ao lance da existência. E tais pessoas eram obrigadas a carregar consigo essa mentira como áspide venenosa de encontro ao peito, deviam esconder indignamente seus amores e a negá-los, conquanto fossem — seus amores — a mais bela coisa que possuíam.

Que dizer dessa curiosa ânsia pela religiosidade que frequentemente seguia lado a lado com a inversão? Muitíssimas dessas pessoas eram profundamente religiosas, e este era, sem dúvida, um dos seus mais amargorantes problemas. Elas acreditavam e, acreditando, ansiavam por uma bênção sobre o que, para algumas delas, parecia uma união sacratíssima, profunda e sincera. Mas a bênção da igreja não era para elas. Podiam ser crentes, levar vidas corretas, não lesar ninguém, e, todavia, a igreja voltava as costas, pois suas bençãos eram destinadas estritamente a pessoas normais.

Mais penosa ainda era a situação de um grande número de jovens que, sendo elas próprias normais, davam seu amor a uma criatura invertida. O mundo havia de tomar conhecimento de suas existências. Mas, enquanto isso, cumpria cultivar uma altivez sempre maior, deviam aprender a ser altivos em seu isolamento.

Quanto às criaturas que se envergonhavam de se declarar, retraindo-se em busca de uma existência sossegada, ela positivamente desprezava, dessas, as que tinham cérebro lúcido. Eram traidoras de si próprias e de seus semelhantes, insistia ela, pois, quanto mais cedo o mundo percebesse que pessoas cultas eram frequentemente vítimas de inversão pessoal, mais cedo o mundo retiraria sua excomunhão e mais cedo cessaria a perseguição.
[Havia tão poucas opções! Por mais que pudessem ser vistas como traidoras, faz todo sentido que as pessoas "invertidas" se escondessem quando havia tanto repúdio e tanta incompreensão. Se hoje não é fácil "sair do armário", imagina naquela época]

Era verdade inegável que os invertidos eram muitas vezes religiosos, mas isso de frequentarem igrejas era neles uma forma de fraqueza; ela, pessoalmente, era claro que era pagã, tomando conhecimento apenas do deus da beleza; e já que o mundo todo, no presente, se tornara tão feio, ela se sentia muito grata pelo fato de o mundo não reconhecer sua presença.

Por que foi preciso que isso sucedesse com você... essa provação incompreensível? Só isso basta para uma pessoa não acreditar na existência de Deus!

Ele percebia a alegria com que ela se voltava para as coisas simples que com tamanha felicidade vêm ao encontro dos que são normais. Ele percebia muito bem a vontade categórica de poder olhar para os seus semelhantes com a confortante noção de que não precisava temê-los, que lhe dariam a sua amizade ao primeiro apelo, que as suas leis e os seus códigos seriam a sua proteção. As percepções de Stephen eram bem mais acuradas e de maior alcance, porque chegara à desesperadora intuição de que a mulher que ela amava era profundamente infeliz. Uma a uma, quase imperceptivelmente, Mary estava anulando as defesas de Stephen, sua firme decisão de não ceder, a arrogância do macho que existia nela. E uma noite, de repente, empurrou Mary cegamente, sem saber ao certo o que estava fazendo, apenas certa de que a arma que resolvera depor tornara-se instrumento de todo inútil, um ultraje ao seu amor para com essa jovem. Acometeu-a o pensamento lúcido de que o seu próprio amor era também uma espécie de ultraje.
[Abrir mão do amor por amor. Essa é a atitude de alguém que não merece viver?]

Agora, de fato, ia ela pagar bastante caro esse seu inerente respeito pelas coisas e pelas criaturas normais, que nada jamais conseguira destruir, nem mesmo os longos anos de perseguição... Agora via claramente tudo quanto estava faltando a Mary, filhos, um lar que o mundo respeitaria, laços de afeição, que o mundo consagraria.

Martin surgiu aos olhos de Stephen como uma criatura dotada de incalculável possibilidade, tendo em mãos todos esses dons inestimáveis que ela, mendiga do amor, não podia proporcionar nem ofertar. Apenas um dom ela podia oferecer ao amor, a Mary, e esse dom era Martin.

Cessou de responder à ternura da jovem, nem consentiu que continuassem sendo amantes. Passou a frequentar cada vez mais a casa de Valérie, Mary foi-se tornando presa de suspeitas. Stephen a maltratava cada vez mais, com isso se maltratando também, com imensa pena do mal aparente e atual que causava a Mary.

E, certo dia, Mary se negou a receber Martin. Voltou-se para Stephen e lhe disse, lívida e ameaçadora: — Pois você não entende? Está cega de todo? — Se não fosse você, eu poderia ter amado Martin Hallam!... Stephen ouviu a própria voz ressoar, longe, muito longe: — Se não fosse eu, você poderia ter amado Martin Hallam...

Martin disse: — Está tudo acabado. Você me derrotou, Stephen.... O jugo é irremovível. Ele assentiu, com um aceno de cabeça. — Deixarei Paris na próxima semana.
— Não, não se vá...por enquanto.

Stephen, responda-me: você é amante dela? E ela via os rostos, macerados e hediondos com aqueles olhos melancólicos dos invertidos...
— Stephen, Stephen, fala com o teu Deus e lhe pergunta por que foi que ele nos renegou? Ó Deus, em quem nós, os párias, acreditamos? Por que, ó mundo, dentro do qual nascemos desvalidos?
[E Stephen fingiu não amar e estar traindo Mary porque a amava demais para ficar com ela. Martin a levou e Stephen ficou só. Acho que foi a isso que a autora deu o nome de poço da solidão: o não ter direito de amar]

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