TEMPO DE GRAÇA, TEMPO DE DOR
Você não pode brincar muito tempo no sol! Vai ficar com o rosto moreno e nunca vai casar.
- Orientação para moças de famílias ricas nos anos 20/30 e, talvez, até hoje em algum lugar.
O que é a verdade? Uma pessoa pode ser completamente sincera na crença do que viu e de quando viu. Mas outra, ao ver a mesma coisa, tem uma percepção diferente. O que vemos no mundo depende muito de quem somos e do momento em que estamos.
Quando somos jovens, nos entregamos completamente. Permitimos que nossos primeiros amigos, os primeiros amantes e as primeiras canções entrem e se tornem parte de nosso ser não formado, sem sequer pensar nas consequências ou em sua permanência dentro de nós. Esta é uma das belezas da juventude e um de seus fardos.
Se a paixão está profundamente ligada à incerteza, o amor de mãe é o oposto: jamais hesita, jamais depende do desempenho, jamais exige uma quantidade igual de amor em troca. Você tem o luxo de não dar importância ao amor de mãe, sabendo que seu desprezo ou sua indiferença jamais farão com que ele desapareça.
O fogo não se importa se você é uma menina ou uma moita de cana; ele não vai parar por sua causa. Ele quer tudo que tocar.
Jega não tinha permissão de querer nada além dos desejos mais básicos da condição humana: um prato de comida, uma cama, sobrevivência. Mas Das Dores? Das Dores tinha ganhado um caderno e um lápis, aulas, livros e palavras. Tinha ganhado música e uma plateia. Tinha ganhado uma amiga.
Fiquei pasma com a avidez daquele incêndio no canavial. Era lindo em sua necessidade constante, em sua fome sem limites. Olhei-o queimar, o calor golpeando minha pele, e soube que éramos parecidos, aquele fogo e eu. Queríamos mais do que nos davam, e sempre seria assim.
Fizemos nossos planos.
Fugimos.
Deixamos tudo que nos atava.
Depois disseste que eu não te amava.
Não sabes que esse amor,
mais incêndio do que brasa,
não mantém a luz acesa,
Não aquece a nossa casa?
Meu amor é lavar as janelas.
Meu amor é remendar o colchão.
Meu amor é enxugar as panelas.
Meu amor é encerar o chão.
O que é o som, senão uma vibração levada pelo ar? Uma maré interminável e invisível que bate em nossos tímpanos durante toda a vida. É avassalador pensar na cacofonia do mundo. Nem mesmo o útero é silencioso: ouvimos o chiado do sangue, a percussão do coração, o ronco do estômago e a voz da nossa mãe – reverberada no líquido – até vibrar dentro de cada um dos nossos ossos minúsculos. Assim, veja bem, o som nunca é simplesmente som. O som é memória.
Nossa Graça nunca precisava suportar as indignidades da velhice: os ossos doloridos, a carne flácida, a memória se esvaindo. Quando o Alzheimer de Vinicius progrediu, ficou mais difícil para ele invocá-la. Nos dias em que o rosto dele era uma máscara – as enfermeiras chamavam de Cara de Leão – impassível e sem emoções, como se Vinicius tivesse desaparecido dentro de si mesmo. Como será sentir a si mesmo escapulindo?
Os patrões sabem pouco sobre os empregados, mas o contrário nunca é verdadeiro. Quando você trabalha numa casa, vê cada lençol manchado, cada travesseiro com ranho endurecido de choro noturno, cada coisa no lixo, cada comida que fica no prato, cada comprimido no armário de remédios, cada livro deixado aberto na última página lida.
O casamento era uma inevitabilidade que pairava sobre o futuro de Graça, jamais com data ou hora certa, como a morte. Sabíamos que iria acontecer, mas nos convencíamos de que não seria tão cedo.
(Isso quando a “senhorinha” tinha 12 anos)
Quando Graça e eu éramos meninas presas nos canaviais do Nordeste do Brasil, o casamento era um modo de os ricos manterem suas fortunas restritas a um grupo minúsculo e aceitável. E o amor? O amor era apenas algo que a gente ouvia nas canções.
Parte de mim sempre acreditou no sofrimento: que o sofrimento é um dever e que nos deixa mais fortes, como a argila no fogo. Mas perder Graça para um marido era um golpe que eu não estava disposta a suportar.
No Riacho Doce, o açúcar mais valioso era o branco como leite, assim como a moça do pó de arroz Camélia, os rapazes sorridentes nos anúncios de vitaminas, as estátuas dos santos em todos os pedestais das igrejas. A maioria dos brasileiros não se encaixava num padrão tão rígido – nem mesmo os magnatas da indústria, os políticos e os donos de terras como Seu Pimentel e as patroinhas como Graça. Havia tons de aceitação: se você usava roupas finas ou tinha um bom nome de família, a pele mais morena ou o cabelo mais crespo seriam perdoados. Se você fosse branco feito leite, mas tivesse um sotaque nordestino no sul do Brasil, era considerado ralé. Só um padrão era garantido: se você fosse escuro como Nena, o Velho Euclides, a maioria dos trabalhadores do Riacho Doce ou aquelas baianas, não seria proibido de entrar nas lojas finas, nos teatros ou nas cabines de primeira classe, caso pudesse pagar – mas jamais poderia.
Muitas garotas do meu dormitório falavam sobre “derreter”: como elas eram capazes de se fazer derreter e fazer outras se derreterem também. Logo descobri o que era esse negócio de derreter e experimentei sozinha à noite, na privacidade escura da minha cama. Que maravilha nossos corpos!
Ser mulher é sempre uma performance; só as muito velhas e as muito novas têm permissão de sair do papel. Nossos corpos devem ser formas moldadas para se ajustar às exigências do nosso tempo: espremidas, repuxadas, pintadas, não pintadas, cobertas, descobertas, perfumadas, tingidas, apertadas, injetadas, empoadas, podadas, desleixadas, hidratadas, bem alimentadas ou não, e assim por diante. Qualquer desvio desse papel tem potencial para o desastre: Qualquer um desses extremos pode fazer com que você seja espancada, difamada ou simplesmente morta e largada numa vala.
Quando você não tem poder neste mundo, precisa criá-lo, precisa se adaptar ao ambiente e tentar evitar os muitos perigos ao seu redor. Por isso o encanto de uma mulher – o sorriso, a elegância, a animação, a doçura, o corpo perfumado, o rosto cuidadosamente maquiado – não é um subproduto idiota das modas ou dos gostos, mas um meio de sobrevivência. A performance pode até nos deformar, mas nos mantém vivas. Garotas como Graça e eu, se recusavam a ser qualquer coisa a não ser elas próprias. Essa, claro, é a coisa mais perigosa que qualquer garota pode ser.
O que é mais difícil de perder – e que é terrível quando perdemos – é a crença de que os sonhos que a gente alimentou na infância são alcançáveis, a ideia de que o trabalho duro pode compensar a falta de talento, a tola convicção de que a vida distribui recompensas e desafios de maneira justa entre nós. O que é justiça, afinal de contas, senão uma ilusão?
Em 1935, uma garota não era apenas uma garota: ela era uma propriedade. Primeiro você pertencia ao pai, depois ao marido.
Foram necessárias as mãos, os dentes e a língua de Graça para me trazer para mim mesma, para mostrar que meu corpo não era uma casca construída para suportar pancadas nem um instrumento feito para obedecer às minhas ordens. Ele não era uma “coisa” – era eu.
Sem dúvida éramos diferentes daquelas moças manteúdas com suas protetoras ricas. Éramos diferentes dos famigerados “sapatões” da Lapa, com seus cabelos espetados. Nenhuma garota sonhava em se tornar uma mulher desse tipo. E eu também não.
As mulheres não cantavam samba, tango ou jazz. Não compunham músicas nem tocavam instrumentos. Não faziam parte dos conjuntos.
Gegê era menos um tirano do que um mágico, fazendo as liberdades desaparecerem sem que a gente se desse conta.
Ninguém sabe o que quer de verdade. As pessoas só escolhem o que é mais fácil. Então vamos facilitar para elas.
Desde o início da vida devemos nos definir como meninos ou meninas. Mais tarde nos tornamos bons ou maus alunos, artistas ou comerciantes, bonitos ou simpáticos. Dizemos que somos advogados, vendedores de lojas, músicos ou cantores. Viramos maridos ou esposas. Cada nova definição vai se empilhando sobre todas as anteriores. E de repente ficamos esmagados sob o peso delas.
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Comigo não haveria enjoos matinais, idas secretas ao médico nem alegações de “apendicite”. Eu lhes dava toda a satisfação que um homem poderia dar (se não mais), sem nenhum dos perigos. Havia homens para mim também. A princípio o que me levou aos homens foi a curiosidade. Como era? Em que sentido era diferente? O que fazia Graça ficar tão enamorada deles?
Existe um mito de que os homens querem dominar e as mulheres querem se submeter. É o que vemos nos filmes e lemos nos livros, e ainda que possa ser verdade para algumas pessoas, não vale para todo mundo – e certamente não o tempo todo.
Com um homem, é como se o intuito do sexo fosse chegar a um determinado destino. Se você tiver sorte, ou habilidade, os dois chegam juntos. Com as mulheres existem níveis graduais de desejo – alguns sutis, alguns intensos – que aumentam e diminuem e não têm a ver com chegar a um ponto final. As mulheres são círculos, os homens são flechas.
Se a lembrança nos diz quem somos, o esquecimento é o que nos mantém sãos.
Nossas memórias são labirintos e é fácil supor que a doença de Vinicius o fazia se perder na dele, mas não era isso. Seu labirinto não estava ficando mais complexo, estava se simplificando.
Quando tudo que conhecemos de racional se apaga, o que resta? A mente racional nos força a definir, categorizar, separar: você é isso, eu sou aquilo; seu amor é esse tipo de amor, o meu é aquele; você é real ou é apenas uma memória.
- Você é real ou é apenas uma memória?
Dizem que a necessidade é a mãe da invenção. Eu diria que o despeito é o pai.
Quem nós somos, senão quem imaginamos ser?
Você pode fazer aceiros, morros de areia, estradas com a largura de dois caminhões. Diz a si mesmo que o fogo pode ser controlado, monitorado, contido. Mas o fogo pula. Ele se move. Dança. Como qualquer força da natureza, ele não tem escrúpulos, apenas necessidades.
É sempre mais fácil achar que nossas intenções são tão importantes quanto o resultado, mas não é verdade. O resultado é tudo. É com o resultado que a gente precisa viver.
Não me imagino jovem, mas ainda me espanto com a mulher que me olha no espelho: a coluna encurvada como a de um camarão, a pele sarapintada feito um mingau de aveia. O cabelo tão ralo que dá para ver pedaços do couro cabeludo. Ela franze os olhos. Nem parece uma ela, mas sim um conjunto de ossos num saco de pele mal ajustado. Nós estamos, todos nós, presos num corpo que não pode nos conter.
Uma estrela nada mais é do que a face pública do desejo privado.
Na Bedford Drive todo mundo era convidado: negros, brancos, vermelhos, marrons, ricos, pobres, homens, mulheres ou indecisos. Tínhamos apenas uma exigência com os convidados: ou você se juntava a todos nós ou não se juntava a ninguém.
Li os jornais, adorando os verbos familiares, os adjetivos cheios de sílabas e a velocidade e a facilidade com que entendia todos. O português era um refresco num dia quente.
Havia uma ansiedade sombria, infecciosa, que permaneceu até muito depois do fim da guerra. Era como se o mundo tivesse lutado contra uma doença que nós mesmos houvéssemos provocado – um vício, na verdade –, que durou anos, nos deixou devastados, cambaleando, e expôs as partes mais mesquinhas e baixas da nossa natureza.
Somos confrontados com a indiferença cruel da vida para com a nossa sobrevivência. Percebemos que estamos à mercê de forças que não podemos compreender; que o controle que pensávamos exercer sobre nossa vida escorrega como um peixe entre nossas mãos.
No rosto de uma mulher não há barba por fazer. Não há cheiro de loção nem suor. Na boca de uma mulher há uma suavidade, uma delicadeza requintada que jamais encontraremos na de um homem. Mas às vezes a gente não quer uma baía calma – quer um oceano violento. Quer ser jogada pelas ondas, atirada na areia, arrastada até ficar em carne viva, sentir os pulmões e o corpo arder, até finalmente, felizmente, subir para respirar.
Me conforta o fato de a música existir antes de qualquer um lhe atribuir nomes e de que ela vai continuar existindo mesmo quando a linguagem nos falhar.
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Pensamos que precisamos das palavras porque é de nossa natureza definir, decodificar, tentar entender dissecando as coisas e rotulando-as, como espécimes num museu.
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Ao lembrar, acreditamos que conhecemos, e, ao conhecer, acreditamos que entendemos. Os nomes nos trazem conforto. São as coisas que não podemos nomear que mais nos amedrontam.
Durante o ano que passei na escola as freiras falavam na criação e no pecado original, em confissões, no purgatório e nos nove diferentes tipos de anjos. Até a porcaria dos anjos tinham uma hierarquia! Se o céu das freiras é tão mesquinho e maldoso como nosso mundo, não quero ter nada a ver com ele.
A música não pode existir sem uma perturbação constante e um retorno contínuo ao que era e ao que pode ser.
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