PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM



A partida dos homens A viagem.

Houve um momento grande, parado, sem nada dentro.

Difícil aspirar as pessoas como o aspirador de pó.

– Papai, inventei uma poesia.
– Como é o nome?
– Eu e o sol.
– Sem esperar muito recitou: – “As galinhas que estão no quintal já comeram duas minhocas mas eu não vi.”
– Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?
– Vi uma nuvem pequena coitada da minhoca acho que ela não viu.

Se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo. Mesmo quando não lhe doía nada, se ficava defronte do relógio espiando, o que ela não estava sentindo também era maior que os minutos contados no relógio. Quando acontecia uma alegria ou uma raiva, corria para o relógio e observava os segundos em vão.

Deus seria tão amigo dela, mas tão amigo que... que o quê?

Podia-se ficar tardes inteiras pensando. Por exemplo: quem disse pela primeira vez assim: nunca?

Não era normal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões?

E, livre, nem ela mesma sabia o que pensava.

Ela sentia dentro de si um animal perfeito. Repugnava-lhe deixar um dia esse animal solto.

Não, não – repetia-se ela –, é preciso não ter medo de criar.

Porque a melhor frase, sempre ainda a mais jovem, era: a bondade me dá ânsias de vomitar.

Talvez fosse apenas falta de vida: estava vivendo menos do que podia e imaginava que sua sede pedisse inundações.

Roubar torna tudo mais valioso. O gosto do mal – mastigar vermelho, engolir fogo adocicado.

Tudo o que não sou não pode me interessar.

Tenho um corpo e tudo o que eu fizer é continuação de meu começo.

Seus pensamentos eram, depois de erguidos, estátuas no jardim e ela passava pelo jardim olhando e seguindo o seu caminho.

Quando a brisa leve, a brisa de verão, batia no seu corpo todo ele estremecia de frio e calor. É porque estou muito nova ainda e sempre que me tocam ou não me tocam, sinto – refletia.

Ser livre era seguir-se afinal.

A única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou? Bem, isso já é demais.

Perco a consciência, mas não importa, encontro a maior serenidade na alucinação.

Não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

Como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? Havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?

– Otávio – dizia-lhe ela de repente – você já pensou que um ponto, um único ponto sem dimensões, é o máximo de solidão?

Aspirou o ar morno e claro da tarde, e o que nela pedia água restava tenso e rígido como quem espera de olhos vedados pelo tiro.

O pai morrera como não se vê o fundo do mar, sentiu. Não estava abatida de chorar. Compreendia que o pai acabara. Só isso. E sua tristeza era um cansaço grande, pesado, sem raiva. Caminhou com ele pela praia imensa. Andou, andou e não havia o que fazer: o pai morrera.

O que acontecesse contaria a si própria. Mesmo ninguém entenderia: ela pensava uma coisa e depois não sabia contar igual igual.

Eternidade não era só o tempo, mas algo como a certeza enraizadamente profunda de não poder contê-lo no corpo por causa da morte.

A música era da categoria do pensamento, ambos vibravam no mesmo movimento e espécie. Deixava até de sentir a harmonia quando esta se popularizava – então não era mais sua. O pensamento só era igual a música criando-se.

É que a visão consistia em surpreender o símbolo das coisas nas próprias coisas.

Na confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que talvez desse mais poder-de-vida do que conhecê-la.

A princípio sonhava com carneiros, com ir à escola, com gatos tomando leite. Aos poucos sonhava com carneiros azuis, com ir a uma escola no meio do mato, com gatos bebendo leite vermelho em pires de ouro. E cada vez mais se adensavam os sonhos e adquiriam cores difíceis de se diluir em palavras.

Sim, havia muitas coisas alegres misturadas ao sangue. Mesmo sofrer era bom porque enquanto o mais baixo sofrimento se desenrolava também se existia – como um rio à parte.

– Minha filha, você é quase uma mocinha, pouco falta para ser gente...

Nessa busca de prazer está resumida a vida animal. A vida humana é mais complexa: resume-se na busca do prazer, no seu temor, e sobretudo na insatisfação dos intervalos. – Quem se recusa o prazer, quem se faz de monge, em qualquer sentido, é porque tem uma capacidade enorme para o prazer, uma capacidade perigosa – daí um temor maior ainda. Só quem guarda as armas a chave é quem receia atirar sobre todos.

– Mau é não viver, só isso. Morrer já é outra coisa. Morrer é diferente do bom e do mau.

O que importa afinal: viver ou saber que se está vivendo?

Inspirai-me, eu tenho quase tudo; eu tenho o contorno à espera da essência; é isso? – O que deve fazer alguém que não sabe o que fazer de si?

Tudo o que possuo está muito fundo dentro de mim. Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que viver?

Apoiei-me demais no jogo que distrai e consola e quando dele me afasto, encontro-me bruscamente sem amparo.

Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.

Sou pois um brinquedo a quem dão corda e que terminada esta não encontrará vida própria, mais profunda.

É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre esqueci.

E era tão perfeito o momento que eu nada temia nem agradecia e não caí na ideia de Deus.

Quero morrer agora, gritava alguma coisa dentro de mim liberta. Queria subir e só a morte como um fim me daria o auge sem a queda.

Sobretudo, pensou ainda, compreende a vida porque não é suficientemente inteligente para não compreendê-la.

Tinha a sensação de que a vida corria espessa e vagarosa dentro dela, borbulhando como um quente lençol de lavas. Talvez se amasse...

Havia o perigo de se estabelecer no sofrimento e organizar-se dentro dele, o que seria um vício também e um calmante.

Exijo ou dou-lhes o equivalente das velhas palavras que sempre ouvimos, “fraternidade”, “justiça”. Se elas tivessem um valor real, seu valor não estaria em ser cume, mas base de triângulo. Seriam a condição e não o fato em si. Porém terminam ocupando todo o espaço mental e sentimental exatamente porque são impossíveis de se realizar, são contra a natureza.

Transforma-se o ódio em amor, que nunca passa na verdade de procura de amor, jamais obtido senão em teoria, como no cristianismo.

Acho que nada escapou à natureza do fato, a não ser o próprio mistério do fato.

E o mais curioso é que no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo.

Joana mordera os lábios a princípio cheia de raiva porque ainda não sabia com que pensamento vestir aquela sensação violenta, como um grito, que lhe subia do peito até entontecer a cabeça. E foi tão corpo que foi puro espírito. Sofreu sobretudo de incompreensão, sozinha, atônita.

Só não se habituara a dormir. Dormir era cada noite uma aventura, cair da claridade fácil em que vivia para o mesmo mistério, sombrio e fresco, atravessar a escuridão. Morrer e renascer. Era sempre inútil ter sido feliz ou infeliz. E mesmo ter amado.

Não gosto tanto de mim a ponto de gostar das coisas de que eu gosto.

– Adiar, só adiar, pensou Joana antes de deixar de pensar. Porque os últimos cubos de gelo haviam-se derretido e agora ela era tristemente uma mulher feliz.

É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas.

O que não sou deixaria um buraco enorme na terra.

Eu me sinto tão dentro do mundo que me parece não estar pensando, mas usando de uma nova modalidade de respirar.

A tragédia moderna é a procura vã de adaptação do homem ao estado de coisas que ele criou.

O cientista puro deixa de crer no que gosta, mas não pode impedir-se de gostar do que crê.

Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela transformação na natureza.

Fazer milagres, para um Deus humanizado das religiões, é ser injusto ou reconhecer um erro, corrigindo-o.

Há coisas indestrutíveis que acompanham o corpo até a morte como se tivessem nascido com ele.

Veio-lhe a consciência do mundo, de sua própria vida, do passado aquém de seu nascimento, do futuro além de seu corpo.

Em todos os ventres de mulheres pode nascer um filho.

Como é bela e é mulher, serenamente matéria-prima, o casamento é o fim, depois de me casar nada mais poderá me acontecer. Ser uma mulher casada, quer dizer, uma pessoa com destino traçado. Eu pensava: nem a liberdade de ser infeliz se conserva porque se arrasta consigo outra pessoa. A dois, comendo diariamente o mesmo pão sem sal, assistindo à própria derrota na derrota do outro... Isso sem contar com o peso dos hábitos refletidos nos hábitos do outro. E de repente eis que vem o cansaço, o grande “para quê” me envolvendo.

Dorme, meu filho, dorme, eu lhe digo. O filho é morno e eu estou triste. Mas é a tristeza da felicidade. Mas depois, quando eu lhe der leite com estes seios frágeis e bonitos, meu filho crescerá de minha força e me esmagará com sua vida. Ele se distanciará de mim e eu serei a velha mãe inútil.

Parou e sem os seus passos ouvia o silêncio mover-se.

Todos os sangues corriam lentamente, pesadamente em todas as veias. E um grande não-ter-o-que-fazer arrastava-se nas almas.

Tão forte era a presença da outra na casa, que os três formavam um par.

Onde se guarda a música enquanto não soa? – indagava-se. E rendida respondia: que façam harpas de meus nervos quando eu morrer.

– E o filho? – indagou ele. Qual será o papel do pobre em todo este sábio arranjo?
– Oh, ele viverá – respondeu.
– Só isso? – tentou ele o sarcasmo.
– Que é que se pode fazer além disso? – lançou ela no ar a pergunta, de leve, sem aguardar resposta.

Eu sou pequena e pobre, não saberei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco. Enfim enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só.

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