QUE BOBAGEM!
UM MODO DE OLHAR
PARA O MUNDO
Na maioria dos debates, da mesa
do bar ao plenário do Congresso Nacional, ter a ciência ao seu lado é quase
sinônimo de “estar certo”. Dizer-se “científico” é reivindicar
atenção, prestígio, um espaço privilegiado na mídia e no olhar do poder
público.
[A
gente vê muito disso, ao mesmo tempo em que criticam a “incapacidade” da
ciência que “não sabe tudo”, as pessoas adoram citar cientistas que estão de
alguma forma corroborando suas crenças, por mais absurdas que elas sejam].
O prestígio a que a ciência faz
jus vem de sua atitude fundamental de respeito pela totalidade da evidência –
principalmente pela parte que contradiz aquilo em que gostaríamos de acreditar
– e de abertura à revisão crítica.
Quando a atitude científica
básica é posta de lado, o que se obtém – e não importa quantos PhDs, MDs ou
prêmios Nobel estejam envolvidos – é pseudociência: uma falsificação, uma
impostura. Algo que se arroga a credibilidade, o prestígio social e a atenção
pública devidos à ciência sem, de fato, merecê-los.
A constatação de que há “outros
saberes” importantes para a vida humana. Além da ciência, é muito
verdadeira – ninguém pensa em conduzir um teste duplo-cego com grupos placebo
antes de escolher um namorado, por exemplo (embora essa talvez fosse uma boa
ideia).
Chegando aos programas de
autoajuda que recomendam romper amizades com pessoas “negativas”, como
se lê neste abominável conselho de um best seller que promete ensinar o caminho
das pedras para o sucesso financeiro: “As pessoas ricas buscam a companhia de
indivíduos positivos e bem-sucedidos. As pessoas de mentalidade pobre buscam a
companhia de indivíduos negativos e fracassados”.
[E as
mesmas pessoas que dão esse tipo de conselho, em seguida e muitas vezes,
colocam nas redes sociais frases do tipo “Quando você está mal os amigos
desaparecem”. Ou seja, eu devo me afastar das pessoas negativas para obter
sucesso, mas se as pessoas se afastarem de mim vou culpa-las e dizer que são
todas falsas e más. Santa hipocrisia!]
Uma terapia que falha em mostrar
benefícios para a saúde quando testada de forma rigorosa pela ciência pode
desempenhar um sem-número de outras funções – emocionais, sociais, religiosas,
artísticas, econômicas, espirituais, o que seja. Mas é certamente incapaz de
realizar as curas que promete.
ERRO HUMANO
No dia a dia, operamos por meio
de heurísticas – estratégias que permitem extrair conclusões rápidas a
respeito do que acontece no mundo ao nosso redor.
Se cada um de nós tivesse de
parar para avaliar toda a evidência disponível e calcular as probabilidades
conscientemente antes de tomar toda e qualquer decisão, provavelmente jamais
sairíamos da cama.
Como tudo na vida, seu uso requer
atenção e moderação.
Sua aplicação irrefletida não só
alimenta preconceitos, mas também superstições.
Falácias (estilos inválidos de
argumentação que tendem a produzir conclusões equivocadas) e vieses cognitivos
(predisposições psicológicas) indicam onde o raciocínio sai dos trilhos.
Afirmação do consequente é a
falácia de inserir uma causa única a partir de um efeito que pode ter várias
causas.
Post hoc (post hoc ergo
propter hoc, depois disso logo por causa disso) é a falácia de concluir que
uma relação no tempo implica uma relação de causalidade.
Viés de confirmação é a tendência
inconsistente de prestar mais atenção em exemplos que confirmam aquilo em que
queremos acreditar, e ignorar ou tratar como irrelevantes os exemplos do
contrário. É o melhor amigo das terapias ineficazes.
No caso de questões de saúde,
densidade de efeito significa que a doença em questão tem uma alta taxa de
remissão espontânea.
[Em casos
normais] Qualquer remédio para resfriado “funciona”, seja canja
de galinha, pílula multivitamínica ou homeopatia: o resfriado ia passar de
qualquer jeito!
Quando o número de pessoas
tentando a pseudocura é elevado aumenta a chance de surgirem exemplos de supostos
“resultados positivos”.
Modismos como a fosfoetanolamina
sintética encaixam-se aqui, bem como as curas pela fé e os benefícios
atribuídos à maioria das psicoterapias, incluindo a psicanálise.
O PODER DE ESCULÁPIO
Outro fator que pode dar a impressão
de que um tratamento inócuo (ou mesmo prejudicial!) está fazendo bem é a
variabilidade natural da doença.
Caso o paciente não sofra de uma
doença muito grave, já no estágio do declínio final, a mera variação natural da
intensidade dos sintomas tende a levá-lo de volta a um estado menos
desconfortável, e a melhora será atribuída ao tratamento. Caso o declínio se
instale, basta dizer que a terapia foi aplicada “tarde demais”, ou que o
paciente teve azar, ou lhe faltou fé.
PLACEBOS
A todas essas ilusões, vem
somar-se algo muito real, o efeito placebo.
No final do século XIX, Ivan
Pavlov estabeleceu um dos conceitos mais famosos da psicologia, o que chamamos
hoje de condicionamento clássico.
Não é que o condicionamento
apenas levava o animal a “pensar” que havia comida por perto. Uma reação
fisiológica totalmente involuntária e inconsciente, a secreção de suco gástrico
também era desencadeada.
[Descreve
um teste]
O mecanismo que faz a fisiologia
dos cães reagir ao som de uma sineta como reagiria normalmente à presença de
comida é o mesmo que faz o organismo humano reagir a uma pílula de açúcar da
mesma forma que reagiria a um analgésico.
Placebos, portanto, são capazes
de produzir mudanças fisiológicas reais e afetam também animais não humanos.
BIOQUÍMICA
Usando um bloqueador de
receptores opioides, o grupo conseguiu desligar o efeito placebo!
O alívio geral sentido pelo
paciente é uma soma do efeito específico do analgésico e do efeito da
expectativa, o efeito placebo.
O placebo tem base química.
Foi possível bloquear um efeito,
tido como psicológico, com uma droga.
Placebo não é apenas ilusão. A
redução da dor é fisiológica. Mas, certamente, envolve condicionamento e
expectativa.
[Não
esquecer que efeito placebo existe e funciona, mas não faz milagre. Uma doença
realmente grave não desaparecerá graças ao efeito placebo, faça o tratamento!]
Há diferentes graus de efeito
placebo. Injeções funcionam melhor do que pílulas, duas pílulas funcionam
melhor do que uma, pílulas coloridas funcionam melhor do que brancas, e
qualquer tratamento teatral, que envolva manipulação do corpo, funciona melhor
do que todos os demais.
O efeito placebo torna-se, assim,
o melhor amigo de práticas de medicina alternativa. A atenção especial dedicada
ao paciente também funciona como um placebo. Não por acaso, as práticas
alternativas parecem funcionar melhor para dor e doenças relacionadas ao
estresse.
Hans era um cavalo que sabia
aritmética. Seu dono ou qualquer outra pessoa dava uma operação matemática, Hans
batia um casco no chão até chegar ao número correto da resposta.
O cavalo só conseguia acertar o
resultado quando podia ver o dono ou outros seres humanos. Estava respondendo à
linguagem corporal das pessoas. Animais de companhia são extremamente sensíveis
à linguagem corporal.
Carinho e contato humano
funcionam como efeito placebo em animais.
Para prescrever placebo, o médico
teria que deliberadamente enganar o paciente. E o placebo não cura nada. Além
disso, o efeito é inconstante: algumas pessoas são mais (ou menos) suscetíveis.
Ninguém, sofrendo com dor
intensa, vai melhorar com placebo em vez de morfina, e nenhum médico vai operar
com placebo em vez de anestesia. Utilizar placebo – assim como medicina
alternativa – pode atrasar ou impedir diagnósticos e tratamento de condições
mais sérias.
Sempre podemos nos beneficiar do
efeito placebo, se o médico ou profissional de saúde for atencioso e carinhoso.
Talvez esta seja a única grande lição que a medicina alternativa tem mesmo a
ensinar.
Não importa quantos exemplos de
suposta “cura por X” você tem: sem o controle adequado dos demais
fatores, nem a maior pilha de “casos de sucesso” do mundo é suficiente
para estabelecer um fato.
Seguir usando impressões,
vivências e narrativas como guias, quando há informação científica disponível,
é não só perigoso como também irresponsável. O direito à própria opinião não
implica o direito à negligência.
O TESTE CLÍNICO
O tratamento num número grande de
pessoas reduz o risco de vermos benefícios ou problemas aparecendo por mero
acaso (um paciente pode ter sorte de sarar por conta própria logo depois de
tomar o remédio, mas o mesmo acontecer com dezenas ou centenas é mais difícil)
EXOTÉRICOS E ETS
Bobagens convertem-se em
doutrinas, ideologias e sistemas exatamente porque fazem aquilo que a ciência –
por seu compromisso com a ética e a verdade – é incapaz de fazer: prometem
curas, soluções e explicações, aqui e agora, para todos os males que afligem o
ser humano.
Pseudociências e “outras
epistemes” são limitadas apenas pela imaginação, vaidade e, não raro,
ganância de seus promotores. Por isso, seu poder de sedução é enorme.
ASTROLOGIA
Em 2019, o jornal britânico, The
Guardian chamava a atenção para a presença de preconceito contra certos
signos astrológicos em áreas tão diversas quanto mercado imobiliário e mercado
de trabalho. [Isso é muito grave. Deveria ser o
suficiente para as pessoas pararem de pensar que não tem nada de mais acreditar
em horóscopo]
Um horóscopo desfavorável poderia
minar a confiança do público no grande líder ou abalar a moral das tropas às
vésperas de uma batalha.
A despeito de suas raízes
antigas, de sua importância histórica e de seu impacto social crescente nas
últimas décadas, tanto a crença astrológica quanto a arte da astrologia carecem
de qualquer tipo de validade objetiva.
No caso específico da astrologia,
o problema vai além da falta de comprovação e de validade: a prática é
comprovadamente inválida.
Existe um modo astrológico que,
parafraseando Marx e Engels, parece sólido, mas se desmancha no ar.
NA TEORIA
O céu astrológico foi definido há
cerca de 2.000 anos pelo matemático egípcio Cláudio Ptolomeu. [...] Esse céu de
Ptolomeu, miúdo, anacrônico e ingênuo, [...] ainda é, essencialmente o céu dos
astrólogos.
Hoje em dia, em 21 de março,
quando, segundo os astrólogos, o Sol está entrando em Áries, no céu de verdade
ainda se encontra lá pelo meio de Peixes. Além disso, a União Astronômica
Internacional (IAU, na sigla em inglês) identifica 13, não 12, constelações no
zodíaco. Entre Escorpião e Sagitário encontra-se o Serpentário, constelação
solenemente ignorada nos horóscopos.
Enquanto, para a astrologia, o
Sol passa cerca de 30 dias em cada signo, no céu real as constelações têm
tamanhos diferentes e o astro rei as percorre em tempos diferentes.
Há astrólogos muito bem
informados sobre astronomia. Esses afirmam que os signos zodiacais e as
constelações do zodíaco são coisas diferentes. [...] É uma explicação
conveniente, mas que deixa em aberto a questão – por que esses signos?
Se a ideia é dividir uma faixa
circular em 12 setores iguais, o primeiro corte pode acontecer em qualquer
ponto. [...] A resposta deixa claro o caráter primitivo e provinciano da
astrologia: É porque 21 de março é a data tradicional do início da primavera do
hemisfério norte. [...] Essa é uma correspondência que só faz sentido no
hemisfério norte.
A suposta “sabedoria”
astrológica é essencialmente provinciana, focada no umbigo do homem do
Mediterrâneo, e primitiva, porque vê o céu e o mundo como se nada tivesse
mudado, como se a humanidade nada tivesse aprendido nos últimos 2 mil anos.
Não há modo plausível de o
movimento dos planetas no espaço afetar a personalidade ou o destino de vidas
individuais aqui na Terra.
NA PRÁTICA
Levantamentos estatísticos
exaustivos foram feitos e demonstraram que o signo astrológico não tem efeito
nenhum sobre a personalidade e o comportamento humano, incluindo sobre a
formação (ou dissolução) de relacionamentos.
Dezenas de estudos, envolvendo
centenas de astrólogos, conduzidos nos últimos 50 anos produziram resultados
que são compatíveis com o esperado pelo acaso.
COMO FUNCIONA?
Diferentes pessoas tiram
benefícios, tanto sociais (amigos, trabalho, amantes) quanto emocionais (serenidade,
senso de pertencimento, de identidade) ao aderir a sistemas ideológicos tão
incompatíveis entre si quanto comunismo e liberalismo, e a religiões com
metafísicas tão mutuamente contraditórias quanto cristianismo e budismo. O que
importa não é se o sistema é verdadeiro [...] e sim a presença de um esquema
simbólico e de narrativa que mobilizem sentimentos profundos e ofereçam algum
senso de coerência, ainda que apenas superficial. A astrologia atende a essas
demandas.
É uma linguagem vaga que se
estrutura em mensagens cheias de lacunas – lacunas que o leitor, já predisposto
a ver alguma sabedoria ali, preenche por conta própria, com suas ansiedades
particulares e detalhes autobiográficos, num processo conhecido como validação
subjetiva.
Previsão para 2022 do site
Personare: “As previsões para 2022, segundo a astrologia, indicam que vem aí
um ano quente, com muitas coisas começando, novas frentes se abrindo e mais
oportunidades”. [...] Qualquer um, exceto talvez um prisioneiro numa
solitária, viverá algo que vai validar a previsão.
QUAL O PROBLEMA?
Neste ponto alguém poderia
perguntar: e daí se a astrologia é insustentável? Se há quem tire benefícios
[...] por que atrapalhar?
Quem decide recorrer à astrologia
ou apoiar-se nela tem o direito de fazê-lo – mas tem também o direito de saber
em que está se apoiando e a que está recorrendo, e de receber esse conhecimento
de fontes que não [...] movimenta(m) um mercado global de bilhões de dólares.
[...] decisões informadas requerem informação.
A crença na validade da
astrologia oportunidades de trabalho e emprego. Pode até afetar políticas
públicas.
A linha que separa o uso
descontraído dos efeitos deletérios de se levarem bobagens “a sério demais”
é muito tênue.
HOMEOPATIA
A homeopatia movimenta um mercado
de aproximadamente US$ 17 bilhões por ano nos EUA. [...] no Brasil a homeopatia
é utilizada por um público que na verdade não sabe muito bem do que se trata.
HISTÓRIA
A homeopatia nasceu em 1790,
idealizada pelo médico alemão Samuel Hahnemann. [...] a ciência ainda não sabia
sobre microrganismos, não tinha sequer conhecimentos básicos sobre a
importância da higiene. [...] O tratamento padrão dos galênicos era a sangria.
Já os paracelsianos gostavam de porções contendo metais pesados tóxicos, como
mercúrio. [...] pacientes morriam mais do tratamento do que da doença.
Hahnemann construiu um sistema
alternativo. Nesse sistema substâncias tóxicas administradas em doses
extremamente baixas, altamente diluídas – a maioria das diluições homeopáticas
é tão intensa que não resta nenhum traço do suposto princípio ativo no
medicamento. O doente está consumindo apenas açúcar, água ou álcool.
As ideias de Hahnemann nunca
foram aceitas pela comunidade médica.
Dois princípios gerais da homeopatia:
Princípio dos similares –
semelhante cura semelhante.
Princípio da diluição
infinitesimal – quanto mais diluído, maior sua potência.
O princípio de que similar cura
similar não encontra respaldo em nenhuma lei da biologia ou medicina.
Alguns exemplos de “princípios
ativos” de Hahnemann: arsênico para resfriados e diarreias, concha de ostra
para indigestão, petróleo para eczemas e doenças de pele.
Afirmar que, quanto mais diluído
um composto, mais potente ele fica, contraria todas as leis da química, física
e biologia.
Alegar que a homeopatia gera
benefícios específicos, para além do efeito placebo, é uma afirmação
extraordinária. Não há qualquer explicação possível para uma suposta eficácia
dessa prática que não contrarie completamente tudo o que sabemos hoje sobre
ciência.
Vamos tomar como exemplo um
preparado homeopático comum. O Oscilococcinum. Feito à base do fígado e do
coração de um pato. O suposto medicamento foi inventado há cerca de 100 anos
pelo homeopata francês Joseph Roy [...] Trata-se de um medicamento baseado em
um princípio ativo duplamente ausente: primeiro porque a própria diluição
homeopática garante isso e, segundo, porque a bactéria que deveria estar lá, e
que é a própria razão de ser do preparado, nunca existiu na realidade. Roy
tentava dar um verniz de realidade à homeopatia incorporando a existência de
microrganismos, algo ignorado no tempo de Hahnemann. Mas só produziu ridículo.
Hoje, homeopatas que apelam para nanopartículas e Física Quântica agem da mesma
forma. [...] A homeopatia já foi testada exaustivamente, e não funciona.
A HOMEOPATIA NOS TESTES CLÍNICOS
A homeopatia não deve ser usada
para tratar condições crônicas, graves ou que possam se agravar. Pessoas que
optam pela homeopatia estão colocando em risco sua saúde, ao recusar ou atrasar
tratamentos que têm eficácia comprovada e são seguros.
Os EUA regulamentaram a
homeopatia pela lei de direito do consumidor. A bula de homeopáticos deve
conter os seguintes alertas:
1-
Não há evidência científica de que este produto
funcione.
2-
As alegações deste produto são baseadas somente
em teorias praticadas em 1700 e que não são aceitas pela medicina moderna.
Mesmo à luz de políticas de saúde
pública que buscam valorizar o “conhecimento tradicional” a homeopatia não tem
um encaixe adequado.
O argumento de que seria injusto
avaliar a homeopatia pelas regras do método científico é tão honesto quanto
dizer que é injusto avaliar o desempenho do Brasil na Copa do Mundo pelas
regras do futebol.
MAS É SÓ COMPLEMENTAR!
O fato é que complementar um
tratamento com açúcar e atenção não é necessariamente muito diferente de
complementar com canja de galinha e abraço de mãe.
É falsa a ideia de que para
tratar o paciente de forma holística, ou para dar-lhe protagonismo em seu
tratamento, é preciso sair do universo da medicina dita “convencional”.
Se há falhas no sistema, deve-se
trabalhar para aprimorar o sistema, e não “integrar” ali um outro
sistema que pode produzir graves prejuízos.
Não houve uma única descoberta de
um novo – ou antigo – tratamento que se mostrasse eficaz.
Não há evidências de que tais
práticas economizem dinheiro para os sistemas de saúde, mas há certamente
evidências de que consomem dinheiro público, que poderia ser mais bem
investido.
MAS FAZ MAL PARA O PACIENTE?
O preparado homeopático não tem
uma única molécula de princípio ativo. Nesse sentido, não há dano algum em
ingeri-lo. Homeopatia é feita de “nada”. E “nada” não poderia
causar mal a ninguém, certo?
O problema não é o preparado
homeopático em si, mas o que ele representa em mudança de comportamento e
aceitação do pensamento mágico como solução para problemas reais.
O uso da homeopatia, por
funcionar como qualquer outro placebo, pode mascarar sintomas e dar uma falsa
impressão de melhora, atrasando diagnósticos de doenças que, se detectadas
precocemente, têm alto potencial de resolução.
COMO FICA A ÉTICA MÉDICA?
A homeopatia é eticamente
inaceitável e deveria ser ativamente repudiada pelos profissionais de saúde.
Entre os pontos negativos da
prática, a possibilidade de o paciente homeopático não procurar tratamento
médico eficaz, desperdício de recursos, promulgação de crenças falsas e o
enfraquecimento do compromisso com a medicina científica.
Informação clara e precisa sobre
homeopatia não costuma aparecer nos consultórios, e a ética médica não admite
prescrição de placebos.
Imagine se um médico homeopata
realmente informasse o paciente sobre o preparado homeopático. Talvez algo
assim: “Para tratar o seu quadro gripal, eu vou usar um preparado baseado em
uma teoria inventada há dois séculos na Alemanha. Essa teoria não tem base
científica e contraria tudo que sabemos hoje de química e física. O remédio que
estou receitando é feito a partir do fígado de uma espécie de pato, dentro das
premissas de que ‘similar cura similar’, e ‘quanto mais diluído, mais potente’.
Esse fígado de pato foi diluído na proporção de 10⁶⁰. Isso quer dizer que não
tem mais nenhuma molécula de fígado na solução final, é só água. Mas a
homeopatia acredita que a água tem memória, embora isso nunca tenha sido
provado cientificamente”.
Será que, se as consultas fossem
todas assim, ainda teríamos tantos usuários de homeopatia?
ACUPUNTURA E
MEDICINA TRADICIONAL CHINESA
“Medicina Tradicional Chinesa”
(MTC). A expressão foi cunhada por Mao Tsé-tung.
[Olha
só! É “coisa de comunista”. Pra direita de plantão deveria ser perigosa, né?]
Segundo os praticantes funciona
reequilibrando a energia vital (chi), o balanço ente yin e yang e a relação
entre os cinco elementos do universo: madeira, terra, fogo, água e metal.
O sistema foi construído ao longo
de décadas de elaboração intelectual na China pós-revolução. Seria mais ou
menos como se a ditadura brasileira de 1964-85 tivesse resolvido juntar num
mesmo balaio o passe espírita, a pajelança, a ayahuasca, as receitas de chá da
vovó, as garrafadas, os rituais de benzedeira e chamar tudo isso de “Medicina
Tradicional Brasileira”.
Não há, apesar das tentativas de
praticantes modernos de MTC, como desconectar a MTC da metafísica e da mitologia,
e a tentativa dos defensores desse sistema de traduzir o discurso mitológico em
realidade fisiológica e anatômica é forçada, irrealista e chega a soar como
má-fé.
MTC é filosofia, ideologia,
mitologia. Seus componentes certamente têm valor histórico e cultural. Mas não
valor científico e/ou médico.
A existência da energia “chi”
e dos meridianos supostamente ligados aos órgãos e funções humanas nunca foi
demonstrada.
Apesar disso, em 2019, a MTC foi
incluída no décimo primeiro volume da Classificação Internacional de Doenças
(CID).
A OMS oferece uma pátina de
legitimidade à superstição. Por exemplo, o diagnóstico SG26 permite atribuir
sintomas que podem ser sinais de uma doença grave como meningite a uma “disfunção
do meridiano da bexiga”.
Ou a “síndrome de sede
debilitante”, caracterizada por fome excessiva e aumento do fluxo de urina,
explicada por um desbalanço nos fluidos “yin” do pulmão, rins e baço, e
geração de calor no corpo. O tratamento recomendado é balancear o equilíbrio de
“yin” / “yang”, calor e frio, com alimentos “frios” como
chá de espinafre, aipo e grão de soja, além de acupuntura e moxabustão. Um
médico convencional provavelmente veria os sintomas como um sério alerta de
diabetes e pediria exames para confirmar. Atrasar ou impedir um diagnóstico de
diabetes coloca a vida do paciente em perigos.
Aqui no Brasil, o Conselho
Federal de Medicina fecha os olhos para a questão da legitimação científica e
reconhece a acupuntura como prática médica, assim como a homeopatia.
MERCADO
O mercado internacional de MTC [Medicina Tradicional Chinesa] movimenta bilhões.
Durante a pandemia de COVID19,
uma lei foi proposta pelo município de Pequim para punir e criminalizar
declarações críticas à MTC.
A propaganda da MTC ultrapassa
fronteiras.
HISTÓRIA
A primeira referência à
acupuntura em si data de 90 a.e.c.
[Adoro
o fato de muitas pessoas terem abandonado a abreviatura “a.C.”. Faz muito mais
sentido “Antes de Era Comum” do que “Antes de Cristo” uma vez que a única
certeza que se tem a respeito de Cristo é a de que ele é um personagem de um
livro considerado sagrado por algumas religiões]
O conceito de chi vem do termo hsieh-chi,
ou influências malignas. Os chineses antigos acreditavam que as doenças eram
causadas por demônios ou espíritos.
A prática de inserir agulhas
nesses pontos deveria liberar os demônios e restaurar o equilíbrio e, logo, a
saúde. O uso de agulhas era inexistente, referências encontradas falam do uso
de objetos pontiagudos e incisões em pontos específicos para provocar
sangramento. Não há nada sobre meridianos e fluxos de energia.
Durante o século XX, no Ocidente,
também não há registros de pontos de acupuntura, as agulhas eram simplesmente
inseridas próximas ao local da dor. A primeira pessoa a usar o termo “meridiano”
ou “energia” para se referir ao chi foi Georges Soulier de Morant, na
França, em 1939.
Anterior à decisão de Mao
Tsé-tung de promover a MTC, a prática da acupuntura ficou restrita às áreas
rurais da China. Mao fez a medicina chinesa andar para trás.
Promover a MTC foi um ato
político, não uma decisão científica.
DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO
Como tantas outras práticas
antigas, devemos lembrar que os componentes da MTC [Medicina
Tradicional Chinesa] surgiram em épocas em que o conhecimento do
corpo humano e a verdadeira causa das doenças era precário. A dissecação de
cadáveres e as cirurgias eram proibidas, pois acreditava-se que o corpo deve
ser mantido intacto para encontro com os ancestrais. [...] Como não podiam
estudar anatomia humana, os sábios imaginavam órgãos e funções. [...] Se a pessoa
se curava, qualquer coisa que tivesse sido administrada por último levava o
crédito.
Há diferentes escolas de
acupuntura. O acupunturista Felix Mann disse que se levarmos em conta todos os
textos existentes, não sobraria um único centímetro de pele que não fosse um
ponto de acupuntura.
Os próprios acupunturistas não
conseguem chegar a uma conclusão sobre onde os pontos estão localizados.
Se as estruturas anatômicas
variam de uma pessoa para outra, os pontos de acupuntura e os meridianos também
não deveriam variar? Tanto faz, porque os pontos e meridianos são imaginários.
MEDIDINA DE ERVAS
Algumas ervas e extratos de
plantas recomendados pelo conhecimento tradicional realmente continham
moléculas com efeito farmacológico, como a efedrina, um conhecido estimulante,
enquanto outros eram inócuos, e outros tantos, tóxicos.
[Essa
visão seletiva das ervas lembra muito hábito comum de tecer louvor à natureza
como sendo “a maravilhosa criação de um deus todo poder e bondade”, visão que convenientemente
“esquece” o fato que nem tudo que faz parte da natureza pode ser descrito como
maravilhoso, pelo menos não no sentido que as pessoas costumam usar essa
palavra quando se referem à beleza plásticas de coisas como flores, pôr do Sol
e voo de pássaros canoros e coloridos]
Plantas e partes de animais eram
utilizadas porque seu formato lembrava órgãos ou funções humanas.
O chifre do rinoceronte para o
tratamento da impotência e seu uso como afrodisíaco. O rinoceronte negro está
praticamente extinto no Leste Asiático por causa dessa crença. A bile extraída
de ursos pardos vivos, num processo excruciante para os animais, é “conhecida”
por equilibrar o chi.
Antes do século XX, a medicina de
ervas era tudo a que uma parte significativa da população chinesa,
principalmente no campo, tinha acesso.
Negligenciar esses valores é
errado, mas atribuir-lhes valor científico antes de testá-los, também.
Atribui-se a uma erva uma função
biológica de acordo com seu nome, formato, cor ou outras noções figurativas e
mitológicas.
Alegações de que as propriedades
medicinais de plantas já foram comprovadas pela ciência são frequentes, mas
apenas um caso é citado, talvez por ser realmente o único de sucesso conhecido:
a artemisinina.
A substância foi descoberta e
isolada por uma equipe de cientistas formada nos anos de 1960.
Em 1972, o grupo conseguiu isolar
o composto antimalárico, uma molécula com a fórmula química C15H22O5. Após ter a estrutura molecular devidamente
descrita, os cientistas desenvolveram a di-hidroartemisinina, que tinha maior
eficácia.
A artemisinina é um exemplo de
pesquisa científica séria e meticulosa, feita dentro da melhor metodologia da
ciência moderna. Representa muito mais um caso de sucesso do método científico
do que da MTC.
A aspirina também é um
medicamento feito à base de uma molécula sintética construída a partir do
extrato de uma planta conhecida, tradicionalmente, por controlar a dor. O
conhecimento tradicional europeu sobre a casca do chorão deu origem à aspirina.
E não vemos ninguém usar a aspirina como exemplo de medicina alternativa.
Aristolochia fangchi, erva que
faz parte da farmacopeia da MTC, era recomendada para perda de peso. No início
dos anos 1900, na Bélgica, aproximadamente 100 mulheres desenvolveram doença
renal progressiva que culminou em necessidade de implante de rim. [...] A erva
foi usada por milênios, e demorou muito para alguém perceber a sua toxidade,
principalmente porque os efeitos renais e tumores demoravam a aparecer.
EVIDÊNCIAS
Como desenhar um estudo
randomizado, duplo cego, para a acupuntura?
Proliferam estudos malfeitos para
a acupuntura, que ficaram famosos por “demonstrar” eficácia. Na verdade,
apenas demonstram efeito placebo.
O grupo liderado por Edzard Ernst
conseguiu desenvolver agulhas falsas retráteis.
As agulhas foram adotadas por
grupos e estudos em diversas partes do mundo, a fim de investigar a eficácia da
acupuntura.
Com uma amostra de 1100 pacientes
com dor crônica na coluna. [...] Demonstraram que o efeito obtido era
exatamente o mesmo com agulhas verdadeiras ou falsas.
Testaram a acupuntura com
pacientes com dor de cabeça. [...] Não foi observada diferença significativa
entre o grupo tratado e os grupos que receberam acupuntura superficial ou em
pontos falsos.
Testaram acupuntura para o
tratamento de enxaqueca em 308 pessoas. [...] Não observaram diferença
significativa entre o grupo que usou agulhas convencionais e o grupo que usou
agulhas falsas.
Estudaram o efeito da acupuntura
em 638 pacientes com dor crônica na coluna. [...] Nenhuma diferença foi
encontrada entre os grupos que receberam tratamento individualizado, padrão ou
falso.
A conclusão de todos esses
estudos foi que não importa se as agulhas são de fato colocadas, nem onde elas
são colocadas. O efeito observado nessas situações é o mesmo.
Ou seja, a acupuntura não
demonstra eficácia além do efeito placebo.
Meta-análises e revisões
sistemáticas [...] já foram feitas à exaustão.
Um compilado da Colaboração Cochrane,
publicado em 2018, avaliou o uso da acupuntura para mais de 60 condições de
saúde. Não encontrou evidência de benefício para nada.
Outro problema a ser levado em
consideração é o que chamamos de viés de publicação. [...] Isso faz com que
estudos que falham em mostrar, ou ao menos sugerir, benefícios acabem
engavetados. [...] Num ambiente politicamente carregado, em que um governo
autoritário tem como diretriz promover uma ideologia específica sobre saúde.
[...] Quase 100% dos estudos de acupuntura publicados na China são positivos.
São necessários estudos? [...]
Após mais de 3 mil ensaios clínicos com resultados negativos, parece pouco
provável que valha a pena investir em mais 3 mil.
RISCOS PARA A SAÚDE
Cavalos marinhos secos [...] um
declínio de 30 a 50% na população de pelo menos 11 espécies. [...] Asnos: da
pele extrai-se uma gelatina. [...] 250g custa algumas centenas de dólares.
[...] A bile de ursos extraída de animais vivos [...] também foi indicada para
tratar COVID19 [...] O fungo ophiocardyceps sinensis [...] que cresce no
Himalaia [...] foi levado à beira da extinção.
Além dos impactos óbvios para o
bem-estar animal e a biodiversidade, a MTC também apresenta riscos diretos e
indiretos à saúde. [...] Contaminação e desonestidade são comuns na farmacopeia
de MTC.
Em 50% dos remédios de MTC, ao
menos um componente não declarado foi detectado, incluindo verfarina,
dexametasona, diclofenaco, ciclopheptadina e paracetamol, todas moléculas com
atividade farmacológica comprovada. Um preparado de ervas contendo paracetamol
oculto provavelmente vai reduzir a febre – mas não por causa das ervas. Também
os metais pesados arsénio, chumbo e cádmio [...] 92% dos remédios de MTC
avaliados apresentavam contaminação ou substituição.
Para ilustrar melhor, um exemplo:
a amostra MTC², descrita como um remédio para febre do feno e alergias nasais
continha efedrina (estimulante), ácido salicílico (analgésico e antitérmico),
amoxilina (antibiótico), metilefedrina (derivado de efedrina usado como
descongestionante) e varfarina (anticoagulante). A combinação desses
medicamentos tem efeitos difíceis de prever, principalmente se consumida por
gestantes, idosos ou crianças.
Ervas comercializadas com MTC
[...] e partes extraídas de animais em extinção, podem ser compostos tóxicos
desconhecidos, ou uma miscelânea de compostos conhecidos para causar um efeito
real [...] mas em combinação e proporções que nunca foram avaliadas e
aprovadas.
E as agulhas? Podemos dizer que
mal não fazem? Infelizmente não. [...] Complicações, efeitos adversos e até
mortes têm sido atribuídos ao uso de acupuntura.
Acupunturista em geral não tem
treinamento para fazer diagnósticos alinhados com a medicina moderna, podendo
assim perder ou errar diagnósticos importantes, colocando a saúde do paciente
em risco.
Infecções comuns associadas à
acupuntura incluíram hepatite, abcessos, tétano, infecções auriculares,
infecções locais, infecções por microbactéria e por staphylococus sp.
A MTC é apresentada como eficaz,
milenar, baseada em evidências e em estudos clínicos controlados [...] Como uma
técnica, uma arte, um tratamento “holístico” [...] Uma opção segura, natural, e
com preço acessível. Uma análise minuciosa e científica, no entanto, derruba
todos esses mitos.
Existem várias razões para que um
determinado comportamento, medicamento ou tratamento seja adotado por um povo e
se tornado tradicional. Ser capaz de, objetivamente, curar uma doença ou
aliviar um sintoma é uma das razões, mas não a única, e nem a principal –
significado cultural, valor simbólico, apego emocional, mesmo conveniência
política e acidentes históricos também influenciam a formação de tradições.
Quando produzem resultados
positivos robustos, o conhecimento é integrado ao patrimônio médico da
humanidade, sem a necessidade de rótulos especiais. Medicina que funciona
dispensa adjetivos ou gentílicos, é apenas medicina.
CURAS NATURAIS
No Ocidente, durante séculos, as
ideias de “progresso” e “civilização” estiveram intimamente
ligadas à subjugação do mundo natural e à exploração de seus recursos, sem
muita atenção para as consequências.
Há os que se refugiam num
saudosismo romântico, sonhando com o resgate de um passado de harmonia plena,
edênica, entre a humanidade e a natureza, que nunca existiu. Outros
simplesmente negam que haja um problema, apostando que as forças de mercado
produzirão uma nova supertecnologia que, no último segundo, vai nos salvar
pelas mãos de um messias bilionário. E há os que tentam resolver racionalmente
a complexa equação do desenvolvimento sustentável.
Encontramos os que não estão
preocupados em resolver as angústias do cidadão confrontado com os limites da
natureza e os dilemas da vida moderna, mas sim em faturar com eles.
O apelo à natureza, ou a produtos
ditos naturais, é usado para vender alimentos, cosméticos, detergentes, livros,
práticas médicas autorizadas [mas ineficazes] e também curandeirismo. O mercado
da marca “natural” é imenso, movimentando montantes ainda maiores do que
os da indústria farmacêutica.
A distinção entre “natural”
e “artificial” é largamente artificial.
[Se a
natureza é tudo o que existe, então tudo que existe é natural, incluindo o que
foi criado (ou manipulado) pelo ser humano, que aliás, também é natural, sempre
e independente de seu comportamento, sua aparência, sua sexualidade, suas taras
e seus “desvios”]
Os alimentos e medicamentos ditos
“naturais” foram plantados, colhidos, preparados e embalados por alguém,
a partir de variedades vegetais que em geral só existem porque seus ancestrais
foram reconhecidos e selecionados por seres humanos, que alteraram o meio
ambiente para favorecer a reprodução dessas espécies em detrimento de outras.
Além disso, todos os produtos considerados “artificiais” têm como base
recursos extraídos da natureza. [...] Não há nenhuma conexão necessária entre
naturalidade e artificialidade, de um lado, e qualidade e segurança, de outro.
Há matérias-primas que, no estado
de manipulação mínima, são tóxicas e que, quando “artificializadas”,
tornam-se alimentos ou medicamentos perfeitamente saudáveis; e há processos de
artificialização que destroem nutrientes e elevam o potencial tóxico da
matéria-prima original.
Decisões racionais baseadas em
análise de risco não são o forte da humanidade.
O movimento antivacinas se
aproveita do apelo ao natural para vender serviços e produtos que, de acordo
com a ideologia dos proponentes, seriam incompatíveis com as vacinas, que são
produtos, químicos feitos por mãos humanas. [...] Grande parte da propaganda
antivacinas é direcionada especificamente para mães.
Embora ninguém discorde que é
importante ter hábitos de vida saudáveis e uma alimentação balanceada, e de que
poluição e degradação do meio ambiente devem ser evitadas, nada disso é
garantia de segurança, longevidade ou proteção contra doenças infecciosas.
Se por um lado seria interessante
estimular o mercado de fraldas de pano para evitar o acúmulo de lixo não
biodegradável, por outro lado, bebês não precisam usar somente roupas de
algodão orgânico e certamente precisam de vacinas para prevenir doenças
infecciosas e de medicamentos comprovadamente seguros e eficazes.
Uma terceira crença instrumental
é de que o natural é mais agradável aos sentidos. [...] Um experimento [...]
testou se consumidores conseguiam perceber a diferença entre um tomate orgânico
e um convencional, só pelo sabor. O resultado foi negativo.
A crença de que natural é melhor
e ponto final é uma crença visceral, que independe de elaboração teórica ou
justificativa.
OS FATOS
Não existe nada na literatura
científica que comprove qualquer vantagem instrumental, material ou moral para
produtos, comportamentos e ideologias ditas “naturais”.
Ser natural não é garantia de ser
benéfico. A dicotomia natural/artificial ignora as questões centrais da toxicologia:
dose e exposição.
Luz solar é natural e pode ser
benéfica para fixar vitamina D, mas se a exposição ao sol for prolongada pode
causar câncer de pele.
Em 1990, Bruce Ames, o cientista
que desenvolveu o Teste de Ames [...] sobre a ocorrência de pesticidas na
natureza, produzidos pelas plantas como mecanismo de defesa contra pragas.
[...]
O consumidor americano ingere em
média 1,5g de pesticidas naturais por dia. 10 mil vezes mais do que os resíduos
de pesticidas sintéticos.
Não faz sentido traçar uma linha
entre pesticidas naturais e sintéticos, inferindo automaticamente que o natural
é inócuo e o sintético faz mal. Isso vale também para medicamentos, alimentos,
produtos de limpeza e roupas. [...] Parafraseando o médico renascentista
Paracelso, a dose faz o veneno.
A dose letal de 50% (DL50) indica
a dose mínima em que metade das cobaias morreram.
[...]
Comparando o paracetamol, um
medicamento sintético, a cafeína, um composto natural, e o sulfato de cobre, um
fungicida orgânico. [...] Pensando num humano de 70 kg, as doses letais seriam
de 168g (paracetamol), 13,3g (cafeína) e 2,1g (sulfato de cobre).
DE ONDE VÊM OS SINTÉTICOS?
Organizações ambientais
comprometidas com a defesa do meio ambiente, infelizmente contam com poucos
cientistas a bordo.
A expressão “produto químico”
costuma ser associada popularmente a câncer, toxidade e morte.
A verdade é que nós, seres
humanos, não somos tão criativos assim. Apenas 30% das moléculas utilizadas em
desenvolvimento de fármacos, nos últimos 25 anos, são completamente sintéticas.
Aspirina [...] O remédio é
considerado um “produto químico” sintético. Ela saiu, literalmente, de
uma casca de árvore, a casca do chorão.
AVALIANDO PERIGO E RISCO
Já que os dados de toxidade não
corroboram a intuição de que natural é sempre bom, sintético é sempre ruim, por
que essa crença é tão frequente?
Mesmo com acesso à informação, os
seres humanos avaliam o risco de forma muito mais emocional do que racional.
Tendemos a maximizar riscos e eventos raros como desastres de avião e ataques
terroristas, e minimizar riscos reais, como acidentes de automóvel ou mudanças
climáticas.
O risco de dirigir sem cinto de
segurança é muito maior que o de sobrevoar o Atlântico num avião comercial, mas
para muitas pessoas a intuição diz o contrário.
O povo não especialista é afetado
por considerações de natureza simbólica e emotiva, e isso pode prejudicar a
capacidade das pessoas de entender avaliações de custo/benefício. E o que
acontece quando essas heurísticas, essa “intuição” que favorece o
natural e acusa o sintético, é transformada em ferramenta de marketing por um
mercado inescrupuloso?
PRODUTOS E SERVIÇOS “NATURAIS”
Há um mercado perverso que lucra
em cima da desinformação. Vendedores de ilusões empurram suplementos, remédios
ditos naturais, livros, DVDs, práticas sem base científica que prometem curar
desde unha encravada até câncer e depressão, oferecendo segredos sobre saúde
que “eles” não querem que você saiba [...] A promessa de uma solução em
harmonia com a natureza, livre de produtos químicos sintéticos, sem efeitos
colaterais, toca algo que o público quer muito que seja verdade, porque “sente”,
de alguma maneira, que é correto.
Uma forma encontrada pelo mercado
“natural” e “alternativo” para contornar regulamentação dura foi
substituir a palavra “saúde” pela expressão vaga e difusa “bem-estar”
(“wellness”, em inglês), que além de incluir remédios e alimentos abarca
ainda atividades de “integração mente-corpo”, como meditação e yoga.
A falácia do natural mira em dois
alvos: o medo e a vaidade.
O consumidor por vaidade se sente
num plano espiritual superior por causa da aula de yoga, meditação (Estudos de
psicologia indicam que atividades “mente-corpo” tendem a reforçar e não
suprimir, o narcisismo dos praticantes) e do pedigree do tomate que põem na
salada [...] engolir placebos faz parte do estilo de vida.
Pessoas perfeitamente bem de
saúde que esperam minimizar os incômodos inerentes à condição humana com
simulacros de medicação e de terapia.
A forte presença dos
influenciadores digitais nesse mercado também não passa despercebida.
Alguns domínios sequer têm
relação com saúde, e promovem extremismo e discurso de ódio.
A Jolivi “afirma” que o
Alzheimer é causado por dieta e não pelos genes, mas por via das dúvidas (e,
provavelmente, aconselhamento jurídico) oferece a seguinte ressalva:
O leitor deve, para qualquer
questão relativa à sua saúde e bem-estar, consultar um profissional devidamente
credenciado pelas autoridades de saúde. O editor deste conteúdo não é médico ou
pratica medicina a qualquer título, ou qualquer outra profissão terapêutica.
Apenas expressa sua opinião baseado em dados e fatos apresentados por agentes
de saúde, ou conteúdo informativo disponível ao público, considerados confiáveis
na data de publicação. Posto que as opiniões nascem de julgamentos e
estimativas, estão sujeitas a mudança.
ENSINO
Em apoio ao mercado gigantesco de
produtos de bem-estar e curas naturais, existe um outro: o de formação de “profissionais
de saúde” de naturopatia [...] No site da Associação de Acreditação de
Escolas de Naturopatia Médica (AANMC), encontramos indicações de sete
faculdades de naturopatia, duas no Canadá e cinco nos EUA.
Na universidade de Bastyr, na
Califórnia, interessados podem se formar como “doutor em medicina
naturopática”, com opção de dupla titulação como “mestre em aconselhamento
psicológico”, ou podem optar pelo grau de “mestre em nutrição”.
RISCOS
Em junho de 2019, a mídia de
língua inglesa anunciou a morte da britânica Katie Britton-Jordan, de 40 anos,
vítima de câncer de mama [...] Katie optou por não seguir o curso de tratamento
recomendado pela medicina e decidiu confiar sua vida a uma dieta vegana e a um
combo de terapias “naturais”.
Essa “abordagem alternativa”
incluía, além da dieta vegana, produtos caros e de base científica frágil ou
inexistente [...] Os custos estimados chegavam a dezenas de milhares de libras
[...] A terapia convencional, se aceita, seria coberta pelo sistema público de
saúde inglês.
Postagens em redes sociais deixam
claro que Katie queria muito sarar da doença e viver. Mãe de uma menina de 2
anos, quando diagnosticada, ela disse que desejava ver a filha crescer. A
criança ficou órfã de mãe aos 5 anos [...] O caso Katie está longe de ser o
único.
Pessoas que desistem do
tratamento convencional e optam por terapias “alternativas” correm risco
até seis vezes maior de perder a vida para a doença do que quem segue o curso
recomendado pela medicina.
O mercado natural e do bem-estar
vai do perverso ao fútil. Causando um estrago muitas vezes irreversível.
A liberdade sexual igualdade
social da mulher não serão conquistadas com ovos de jade na vagina, mas com
movimentos organizados por direitos e salários iguais e representatividade nos
conselhos empresariais, acadêmicos e sistemas políticos e governamentais. O que
humaniza um parto é o tratamento respeitoso dispensado à gestante, não o fato
de ele acontecer em casa, ou num bosque, e sem anestesia.
Ninguém, em sã consciência, é
contrário à alimentação saudável, ao exercício físico ou nega que algum nível
de contato com a natureza seja agradável do ponto de vista emocional e
psicológico. Mas os movimentos de bem-estar, de milhões de dólares [...]
Promovem serviços e produtos desnecessários e perigosos, cujo único objetivo
não é favorecer a saúde, mas levar à dependência de um estilo de vida que é
altamente lucrativo para quem o vende e autoritário e manipulador para com quem
nele embarca.
CURAS ENERGÉTICAS
Expressões como “medicina
energética”, “cura de base energética” e mesmo “energia” são
usadas de modo vago e muito pouco preciso no campo das chamadas [...] “medicinas
alternativas”. Em linhas gerais, “energia” é uma espécie de conceito
tampão usado para preencher as sempre constrangedoras lacunas explicativas
presentes na defesa dessas modalidades [...] Porque envolve algo difícil de
entender, a tal “energia”. Em termos retóricos é o equivalente de
interromper o jogo chutando a bola no mato.
Vamos nos ater a terapias que
pressupõem algum tipo de “fluxo energético” passando entre terapeuta e
paciente, como reiki, toque terapêutico (TT), johrei ou a modalidade chinesa
conhecida como qigong.
A essência do tratamento é “a
comunicação de energia vital” [...] Há quem afirme que a energia curativa
pode ser projetada por longas distâncias, ou mesmo via equipamentos
eletrônicos.
Há dois problemas com essa
família de terapias. O mais relevante é que a suposta “energia” [...]
não existe.
Essa “energia vital” não
pode ser a nenhuma das quatro forças fundamentais do universo reconhecidas pela
física [...] se estivesse, já teria sido detectada e medida.
O argumento de que energias
curativas são por demais sutis para serem captadas por equipamentos científicos
não procede: qualquer interação forte o suficiente para deslocar um elétron
dentro de uma molécula no corpo humano é também forte o suficiente para ser
captada pelos instrumentos de que a ciência dispõe hoje.
A ideia de que o eletromagnetismo
natural do coração, do cérebro ou dos nervos seria capaz de desencadear efeitos
biológicos relevantes fora do corpo, ou no corpo de outras pessoas, não tem
base científica e desafia um princípio fundamental da física, o de que a
intensidade do campo eletromagnético cai com o quadrado da distância [...] ele
efetivamente se perde no ruído de fundo.
Há quem apele para conceitos como
“campo de consciência” ou “vácuo quântico” para contornar essa
limitação [...] Mas “campo de consciência” não existe, e o vácuo quântico não
funciona do jeito que os proponentes da medicina energética imaginam.
Qualquer fenômeno capaz de gerar
os efeitos que os promotores de curas energéticas alegam observar em seus
pacientes, já teria sido notado por instrumentos.
Dizer que há forças misteriosas
em ação é como dizer que há um gigante invisível passando diante de nós. Se
fosse real, sentiríamos o chão tremendo sob o peso de seus passos e veríamos
suas pegadas.
O físico Sean Carroll [em seu
livro The Big Pictore (O quadro geral)] não afirma que nenhum novo fenômeno
físico jamais será descoberto; o que diz é que qualquer nova força, se
relevante na escala humana, do cotidiano, já teria sido notada, caso de fato
existisse.
Organismos vivos são feitos dos “mesmos
quarks e elétrons que compõem uma rocha ou um rio”, são alvo das mesmas
forças, a ciência hoje é capaz de detectar efeitos eletromagnéticos
infinitesimais – mas jamais captou indício de força vital ou poder psíquico.
Claro, o fato de a ciência ser
incapaz de explicar um fenômeno não implica, necessariamente, que o fenômeno
não existe [...] Mas aí chegamos ao segundo problema das terapias energéticas:
quando tomamos todos os cuidados necessários para isolar as fontes de erro e
engano que tendem a levar as pessoas a acreditar em coisas que não existem,
fica claro que qualquer benefício atribuído às “curas energéticas” é na
verdade causado pelos nossos velhos amigos efeito placebo, regressão para a
média, remissão espontânea, efeito de um tratamento convencional com remédios
convencionais ou mera coincidência.
MAS QUEM DISSE QUE FUNCIONAM?
Emily Rosa tinha 11 anos quando
conseguiu algo com que muitos cientistas com décadas de carreira apenas sonham:
assinar um artigo publicado num periódico científico de primeira linha.
[...]
A metodologia adotada era de uma
clareza solar: profissionais de TT [...] tinham de introduzir suas mãos por um
anteparo e determinar se, do outro lado, havia ou não a mão de outro ser
humano. As chances de acerto, por pura sorte, eram de 50%. Se realmente
houvesse um campo energético humano, “energia sutil” ou força vital detectável,
o resultado deveria ser próximo de 100%. A real: 44%. O experimento publicado
foi composto de 280 testes individuais e os participantes tinham, em alguns
casos, quase três décadas de experiência.
QIGONG
Um grupo de pesquisadores, do
qual fez parte o ilusionista James Randi [submeteu a teste] um certo doutor Lu,
mestre qigong, uma forma chinesa de “cura” por imposição das mãos com
(suposta) transferência, transmissão ou manipulação de alguma forma de energia
vital.
[...]
Numa demonstração inicial para o
comitê, ele realizou suas manipulações energéticas sobre uma paciente, que
reagiu de modo dramático, movendo-se “às vezes de forma lenta e comedida; às
vezes, violenta e convulsiva”. O mestre qigong estava a dois metros e meio
da voluntária.
[...]
O teste foi de uma clareza
fantástica; mestre e paciente foram colocados em salas separadas, sem contato
visual ou acústico entre si (doutor Lu tinha certeza de que sua capacidade de
manipular e emanar qi funcionaria à distância e através de paredes).
Durante uma série de rodadas de
duração predeterminada, o mestre iria transmitir energia em direção da paciente
ou se manter imóvel – o que aconteceria em cada rodada seria determinado por um
lance de cara ou coroa. [...]
Resultado registrado no livro: “durante
um período, a moeda saiu coroa quatro vezes seguidas, isso significa que o
mestre qigong não transmitiu o qi por 14 minutos e 45 segundos. No entanto, a
voluntária se contorceu ao longo de todo esse tempo. As duas únicas rodadas em
que a voluntária se manteve imóvel foram rodadas em que a moeda havia caído
cara e o doutor Lu tentava influenciar a paciente”.
SOPRO DE AR
Boa parte dos defensores da
suposta eficácia das curas energéticas praticadas por imposição das mãos,
independentemente da modalidade, gosta de reivindicar para sua técnica o
caráter de prática ancestral, tradicional ou milenar. Trata-se de uma mentira:
o qigong surgiu em 1955, o reiki em 1922, o johrei na década de 1930. A
penicilina, comumente citada como um marco da medicina moderna, foi descoberta
em 1928.
Mesmo onde os apelos à tradição
ancestral têm alguma legitimidade histórica, os apologistas das curas
energéticas cometem o anacronismo de projetar no passado remoto um conceito
essencialmente moderno, o de “energia” entendida como algo imaterial que
pode ser transmitido e capitado, como ondas de rádio.
ENERGIA VITAL
A transição da metáfora
fundamental do qi (ou ki, ou prana) de um tipo de gás para uma fonte de
radiação, contou com uma forte contribuição ocidental.
VITALISMO REDIVIVO
A evidência empírica, tanto para
a existência de um “biocampo” quanto para a eficácia de técnicas de “manipulação
energética” é hoje ainda mais negativa do que era no momento em que foi
elaborado o relatório da comissão sobre magnetismo animal do século XVIII.
A imaginação, na ausência de uma
suposta energia vital, produz efeitos notáveis; a suposta energia vital, na
ausência da imaginação, não produz nada.
MODISMOS DE DIETA
Seja qual for o seu problema,
alguém já inventou uma dieta que promete resolvê-lo.
Antes de prosseguir, um alerta:
comida não é medicamento. É comum encontrar uma frase atribuída a Hipócrates “Que
o alimento seja teu remédio”, mas não só Hipócrates nunca disse isso, como
se tivesse dito estaria errado.
O mercado de dietas para
emagrecer ou para manter o peso foi avaliado em US$ 192 bilhões em 2019.
O mercado de suplementos
dietéticos, incluindo vitamínicos, foi avaliado em US$ 152 bilhões em 2021.
Ao mesmo tempo em que mercados
bilionários vendem dietas e suplementos, com um marketing agressivo dedicado a
promover uma preocupação cada vez maior com bem-estar, saúde e estética,
doenças como obesidade, diabetes e hipertensão nunca foram tão prevalentes no
planeta.
Precisamos de livros e programas
de dietas que mandem comer frutas e verduras, moderar o açúcar refinado e o
álcool? Ou de “coaches” nutricionais que assustam o seu público nas
mídias sociais com listas de alimentos “permitidos” e “proibidos”?
ATÉ CRIANÇA SABE
Experimento conduzido pelo grupo
do professor Sebastião Almeida, psicólogo especializado em distúrbios de imagem
e transtornos alimentares da Universidade de São Paulo [...] mostram que as
crianças têm uma boa compreensão de quais alimentos são considerados saudáveis.
Mas a preferência pessoal é por alimentos considerados não saudáveis, e as
crianças entendem que seus pais também têm a mesma preferência!
Os estudos têm limitações: as
respostas são declaratórias e os voluntários podem se sentir tentados a das uma
resposta “certa” e não dizer o que realmente pensam. Ainda assim, um
ponto chama a atenção: o fato de que as crianças como os universitários sabem
como devia ser uma alimentação saudável.
Não existe, em princípio,
alimento “não saudável”, mas alimentos que podem ter efeitos maléficos
de longo prazo se forem consumidos de forma desproporcional.
O CONTO DAS CALORIAS
Outro conceito popularmente muito
difundido é o de que, para manter um peso saudável, basta controlar a
quantidade de calorias ingeridas [...] Em teoria, isso obviamente é correto. Na
prática, não é tão simples assim saber quantas calorias estamos realmente
absorvendo. As tabelinhas nutricionais que vêm nas embalagens são, no máximo,
aproximações.
A composição do alimento, se está
cru ou cozido, o quanto mastigamos, e até as espécies de bactérias que habitam
o intestino podem fazer com que mais ou menos das calorias presentes no
alimento sejam, de fato, capturadas pelo organismo.
Nós alteramos os alimentos,
facilitando ou dificultando a absorção de nutrientes, incluindo aí as calorias.
O uso de calorias, em essência, é
um modelo correto, mas na prática, excessivamente simplificado.
CARBOIDRATOS
Carboidratos e proteínas, consumidas
em excesso, podem virar gordura, mas o contrário não é verdadeiro.
A digestão muito rápida
contribuiu para a má fama dos carboidratos.
A frutose acabou sendo vítima de
muita confusão nessa onda de carboidratos malvados.
Dietas que limitam a ingestão de
carboidratos, embora tenham a capacidade de causar perda de peso ocasional,
podem não funcionar tão bem para mudar hábitos de longo prazo, algo necessário
para a manutenção do resultado. E algumas são baseadas em premissas não
científicas.
FIBRAS E BACTÉRIAS
As bactérias do intestino, também
chamadas microbiota intestinal (os antigos falam em “flora”, que está
tecnicamente errado).
Temos a certeza de que fibras são
necessárias para manter uma microbiota saudável, porque as bactérias também precisam
de energia. Cortar as fibras da alimentação não é uma escolha saudável [dietas
estilo paleo].
LIPÍDEOS
Os lipídeos (moléculas de
gordura) são essenciais para a vida. Não existe membrana celular sem lipídeos.
Sem gordura, não existem células.
Assim como carboidratos, gorduras
não são “malvadas” em si. O problema é o excesso.
PROTEÍNAS
Proteína pode virar carboidrato
ou gordura, mas não o inverso. Parar de comer proteína, portanto, não é uma boa
ideia.
Podemos tirar energia de cada um
desses tipos de alimentos e nenhum deles é essencialmente bom ou ruim,
permitido ou proibido.
TRANSFORMANDO COMIDA EM ENERGIA
Consumimos energia o tempo todo,
só por estarmos vivos.
Todos os tipos de moléculas –
glicose, gorduras, proteínas – são continuamente consumidos para gerar energia,
mas a contribuição de cada um varia de acordo com o momento, o estado
nutricional e a demanda.
EMAGRECIMENTO MÁGICO
Uma vez que já sabemos que não
existe alimento emagrecedor mágico e nem engordador proibido, estamos prontos
para lançar um olhar mais crítico às dietas da moda, que prometem resultados
rápidos e fantásticos, movimentando um mercado bilionário.
Como não pretendemos ensinar
ninguém a se alimentar e/ou perder peso, mas sim evitar o emagrecimento extremo
do bolso do leitor, escolhemos alguns exemplos de dietas e produtos que ou
buscam enganar o público, ou vender caro o que não passa de simples bom senso
embalado em celofane.
DIETAS “LOW-CARB”
Dietas que restringem a ingestão
de carboidratos. Todas, em princípio, funcionam para perder peso.
Mas, se dieta low-carb funcionam,
então qual é o problema de estarem na moda? É que vendem produtos geralmente
desnecessários e exageram a promessa de benefícios, ao mesmo tempo que
minimizam os riscos e os efeitos de longo prazo.
A dieta paleolítica [uma
low-carb], ou “paleo” promove a ideia de que deveríamos nos alimentar
como nossos antepassados caçadores-coletores [...] quando a alimentação era
escassa, os alimentos eram ingeridos crus e sem nenhum tipo de processamento,
simplesmente porque ainda não tínhamos o hábito de cozinhar, fermentar, fazer
farinha e também ainda não praticávamos agricultura, mas morríamos aos rodos de
desnutrição, feridas sépticas e doenças infecciosas.
Alegam que não houve tempo evolutivo
para nos adaptarmos às plantas domésticas e seus derivados processados (10 mil
anos de agricultura parecem-lhes insuficientes), como farinha, pão, grãos e
laticínios.
A ideia de que o animal humano
evoluiu até atingir algum tipo de “adaptação ótima” ao ambiente
não faz o menor sentido. Não existe estado ótimo de convivência com o meio,
pela simples razão de que o ambiente, assim como nós, muda [...] O que existia
naquela época não existe mais. Tudo o que comemos hoje foi modificado pela
prática da agricultura.
GLÚTEN
O mito de que glúten faz mal
tornou-se persistente no imaginário popular. Mesmo médicos nutricionistas
parecem ter dificuldade em separar o joio do trigo, literalmente, neste caso. O
mercado de produtos sem glúten é especialmente lucrativo.
Existe um grupo de menos de 1% da
população que apresenta diagnóstico de doença celíaca. Doença celíaca é muito
conhecida e bem documentada. As pessoas que têm o diagnóstico de doença celíaca
realmente precisam cortar o glúten da dieta.
Se a doença é tão rara, de onde
vem a noção de que glúten faz mal para todo mundo? Tim Spector, especialista em
genética e microbiota, conta que houve um estudo publicado em 2013 que
correlacionou uma dieta muito rica em glúten a aumento de peso – em camundongos.
Ninguém lembrou do detalhe de que para um ser humano consumir,
proporcionalmente a mesma quantidade de glúten que havia engordado os roedores,
seria preciso devorar vinte fatias de pão integral ao dia, todo dia. Outro
estudo mostrou que grandes doses de gliadina (uma das proteínas componentes do
glúten) em camundongos não resultava em ganho de peso, mas o estrago estava
feito.
Fenômeno comum no universo do “bem-estar”:
um estudo dá pretexto para que um ingrediente qualquer seja destacado na mídia
de saúde e boa forma como “vilão” (ou “herói”) e a partir daí a
indústria se move para surfar (e amplificar) a onda.
Se, ao cortar o glúten, as
pessoas modificarem a dieta para comer menos pães e massas e mais frutas e
verduras, há uma melhora na saúde e provável perda de peso. Se por outro lado,
ao cortar glúten, a dieta passe a ser predominantemente composta de produtos
livres de glúten, mas ricos em carboidratos simples refinados, açúcar e poucas
fibras, a saúde piora e o peso tende a aumentar. E o glúten não tem nada a ver
com isso.
LACTOSE
Em humanos, a evolução fez uma “gambiarra”.
Mais ou menos 7500 anos atrás, quando começamos a domesticar animais para leite,
surgiu uma mutação que impede que a proteína reguladora desligue o gene da
lactose. O gene fica ativo durante toda a vida. A mutação acabou se fixando em
grande parte da população europeia. Já na Ásia, onde a domesticação de animais
de ordenha não era tão popular, não houve pressão seletiva para favorecer essa
mutação. Assim, esse continente concentra a maior parte da população mundial
que é realmente intolerante à lactose.
Curiosamente, o argumento da
turma “paleo” de que não houve tempo evolutivo, em 10 mil anos, para que
os humanos se adaptassem à ingestão de glúten esquece que a adaptação à lactose
tem praticamente a mesma idade. Não faz sentido, portanto, o conselho comumente
encontrado de que “todo mundo” deveria evitá-la.
SUPLEMENTOS ALIMENTARES
Outro mercado bilionário é o de
suplementos alimentares, de multivitamínico e de superalimentos.
Mais de 100 alimentos conhecidos
já foram catalogados como “super”. Alimentos são elevados à categoria “super”
porque contém algum micronutriente em grande quantidade, e esse micronutriente
está associado a alguma propriedade que, o pessoal de marketing quer fazer você
acreditar, pode prevenir ou curar doenças.
Em geral não há nada que um único
alimento possa ter de tão especial que venha a torná-lo indispensável para a
dieta. Mas dizer que algo tem superpoderes é sempre uma boa estratégia de
vendas.
A ideia de superalimentos nasceu
de uma campanha de marketing para aumentar o consumo de bananas durante a
Primeira Guerra Mundial [...] Sem dúvida esses alimentos podem fazer parte de
uma alimentação saudável, mas não são essenciais nem têm superpoderes.
A moda do abacate aumentou de tal
forma o plantio no México que causou um problema de desmatamento.
DETOX
Outro mito é o de que precisamos
desintoxicar, ou “detoxicar”, o organismo.
(como se as moléculas de um
morango fossem menos “químicas” que as de um picolé). Não existe nenhuma
possibilidade biológica para isso.
Os proponentes das dietas
prometem livrar o corpo das indesejadas – ainda que imaginárias – toxinas.
Detox é um termo de marketing. Um
mito.
A MÍDIA NÃO AJUDA
Os meios de comunicação sofrem de
uma atração fatal por conteúdos sobre dietas.
John Bohannon queria mostrar como
era fácil enganar os jornalistas com temas de saúde. A estratégia? Inventar um
instituto de pesquisa falso e publicar um artigo científico completamente
enviesado.
O componente da dieta escolhido
foi o chocolate amargo: tem gosto ruim então todo mundo acha que faz bem [...]
Parece trapaça? É porque é trapaça!
O artigo posterior de Bohannon,
confessando a farsa, teve muito menos repercussão.
A mídia está repleta de
reportagens enaltecendo superalimentos.
Além do dano para o bolso do
consumidor, a indústria da dieta alimenta um problema social grave: a
hipervalorização da magreza.
A ditadura da magreza afeta
desproporcionalmente mulheres, enviesando até mesmo características de
obesidade que comparam classes sociais.
Não existe “dieta mágica”.
Nada é proibido e moderação é a regra.
PSICANÁLISE E
PSICOMODISMOS
O sofrimento mental – categoria
que inclui desde desconforto emocional e problemas potencialmente
incapacitantes, como fobias, ansiedade, depressão e comportamentos compulsivos
– é tão real quanto o físico e pode, em muitos casos, ter origem orgânica ou
fisiológica.
Não há nenhum motivo para que as
terapias e os procedimentos que se propõem a aliviar as dores da mente estejam
isentos de passar pelos mesmos procedimentos de testagem e escrutínio crítico
que se aplicam aos tratamentos propostos para aliviar as aflições do corpo. E
também do dever de dar atenção às armadilhas que levam a conclusões falsas.
Entre as armadilhas, encontram-se
tratar evidências anedóticas como prova de eficácia e tomar o produto do já
mencionado viés de confirmação como consolidação dessa prova. Essas duas
tendências tendem a confluir para dar corpo à falácia da “experiência
clínica”.
Uma família especial de
psicoterapias tem reivindicado passe livre que lhe permitiria isentar-se da
obrigação de conduzir testes [...] Arrogam-se uma posição privilegiada na
hierarquia do conhecimento clínico, argumentando que suas elaborações teóricas
e práticas clínicas encontram-se fora – de fato acima – do alcance das
ciências.
“As bases científicas do campo
da psicologia clínica estão ameaçadas pela contínua proliferação de técnicas
psicoterapêuticas, diagnósticas e de avaliação sem base e que nunca foram
testadas” – manual acadêmico Science and Pseudoscience in Clinical
Psychology
Witkowski e Zatonski referem-se
às psicoterapias como “uma atividade voltada prioritariamente ao mercado”.
Quando a psicoterapia traz
benefício, isso aparentemente deriva mais da pessoa do terapeuta do que da
técnica usada ou da teoria que embasa a técnica.
Em termos de saúde física, seria
como se os antibióticos e a teoria dos germes (a técnica terapêutica e a teoria
por trás dela) só funcionassem bem se o médico (o terapeuta) tivesse
características pessoais favoráveis – talvez o jeito de conversar, a
inteligência, a simpatia, capacidade de fazer o paciente se sentir à vontade, o
acolhimento. O que traz duas questões. Uma, por que o antibiótico/técnica/teoria
seria necessário afinal? Outra, qual o dano que um médico antipático/terapeuta
inábil pode causar?
TIPOS DE CIÊNCIA?
A ideia de que propostas
psicoterapêuticas deveriam ser avaliadas por regras diferentes deriva, em
parte, da velha concepção filosófico-religiosa de uma quebra radical entre
mente/espírito e corpo. Esse dualismo extremo, no entanto, não se sustenta
mais, frente aos avanços e descobertas da neurociência nos últimos dois
séculos.
Outra poderosa motivação para que
se tente isentar a psicoterapia das obrigações científicas é o enorme sucesso
que as teorias psicanalíticas de Sigmund Freud obteve entre a intelectualidade
europeia e norte-americana.
Desde pelo menos a década de
1950, no entanto, a teoria de Freud é dada como exemplo típico de
pseudociência.
Uma das tentativas envolve criar
uma distinção artificial entre ciências “nomotéticas” (que produzem leis
universais, como a física) e “hermenêuticas” (que produzem
interpretações dependentes de contexto, como as ciências sociais e, claro, a
psicanálise).
Se o método “hermenêutico”
é inválido, então ciências humanas são impossíveis. Se o método pelo qual a
psicanálise foi construída não se sustenta, as humanidades também não. Como
instrumento retórico, é o equivalente de uma tomada de reféns por terroristas:
a psicanálise seria o homem-bomba no prédio das humanas. Se explodir leva todo
mundo junto.
A ameaça [...] as críticas mais
contundentes à psicanálise vêm justamente do coração das humanidades. Da
própria psicologia científica, que cobra evidências mais robustas para embasar
tanto as alegações teóricas sobre a estrutura e funcionamento da mente quanto
as de sucesso clínico.
A distinção entre ciências “nomotéticas”
e “hermenêuticas” é insustentável. Até as ciências nomotéticas mais “duras”
são forçadas a levar contextos e história em consideração, e lidam com
interpretações.
É falsa a ideia de que as
ciências ditas “hermenêuticas” ou interpretativas dispensam regras e não
buscam produzir leis gerais.
FREUD
As doutrinas psicodinâmicas em
geral, e a psicanálise em particular, dependem de uma alegação que é
insustentável: a da existência do chamado inconsciente psicodinâmico.
Se esse inconsciente
psicodinâmico não está lá, todo o empreendimento psicanalítico faz tanto
sentido quanto a arte de prever o futuro examinando o fígado de animais
sacrificados. E que motivos temos para acreditar que esteja lá? A falácia da “experiência
clínica”.
Ainda que a pesquisa de Freud não
fosse como é, toda baseada em fraudes, fabricações e distorções, seus
resultados não seriam fortes o bastante para estabelecer o que ele alega.
Morris N. Eagle, conclui que, do
ponto de vista da base científica das alegações feitas pelos psicanalistas “não
existe evidência de progresso nenhum, e até, talvez, algum retrocesso”.
Fatos como os de que objetos caem
em direção ao centro da Terra, ou de que os planetas giram em torno do Sol,
podem ser confirmados mesmo por quem nunca ouviu falar em Isaac Newton. Já a
suposta “evidência” que estaria na base da teoria psicanalítica carece
dessa independência.
Uma teoria embasada em evidências
que só se manifesta para quem já a utiliza e acata de antemão.
Com algumas poucas e ambíguas
exceções, as curas de Freud foram largamente infelizes, quando não claramente
destrutivas.
Sigmund Freud estava mais
preocupado em contar uma boa história do que em ser fiel aos fatos.
As falsificações e os fracassos
de Freud têm especial relevância para a validade geral da psicanálise porque o
edifício psicodinâmico foi todo construído sobre a fundação da prática clínica
freudiana.
A filosofia da ciência já
advertia, há décadas, que essas são bases frágeis e insuficientes. E se o
trabalho foi todo falsificado e as curas nunca ocorreram, a “experiência
clínica” alegada é fictícia. O que já era inadequado revela-se inexistente.
O CÍRCULO
Todo psicanalista desde sempre
interpreta os sinais dados pelos clientes – falas, uso de linguagem, gestos,
relatos de sonhos – como se fossem evidências da presença de um inconsciente
recheado de desejos, memórias e outros tipos de conteúdo reprimido. O sistema
todo pressupõe o que deveria demonstrar: é um círculo vicioso.
O cliente, por sua vez, colabora,
ajudando o analista a construir uma narrativa fantasiosa a respeito do suposto
conteúdo do suposto inconsciente e que, superficialmente, “faz sentido”.
Assim, “prova” que o analista está no caminho certo e que a doutrina é válida.
Se, pelo contrário, o paciente reage negando a fantasia (no linguajar técnico
da psiquiatria, apresenta “resistência”), isso também prova que o
analista está no caminho certo e a doutrina é válida, porque, afinal, o
inconsciente não vai entregar seus segredos sem luta, certo?
A influência do terapeuta, de
suas inclinações teóricas, opiniões políticas e preconceitos pessoais sobre os
conteúdos e conclusões gerados “de modo espontâneo” pelo paciente,
aparece quando estudos imparciais são conduzidos. “Com frequência [..]
pacientes de freudianos repostando inspirações freudianas, pacientes junguianos
reportando inspirações junguianas, e assim por diante”.
Não há como negar que algumas
narrativas construídas dessa forma possam ser úteis e trazer conforto
psiquiátrico para algumas pessoas. Só que o mesmo pode ser dito da astrologia
ou, até, da hepatoscopia.
Se algumas fantasias construídas
na terapia podem, concebivelmente, ajudar algumas pessoas, há evidência clara
de que outras narrativas, produzidas da mesma forma, trazem efeitos terríveis.
Em 1994, um tribunal no estado da
Califórnia, Estados Unidos, concedeu uma indenização de US$ 500 mil a um pai
falsamente acusado de abusar sexualmente da filha, depois que uma terapeuta “recuperou”
memórias supostamente reprimidas da infância da paciente.
Também na década de 1990, o
psiquiatra americano Jonh E. Mack, da universidade de Harvard, trouxe à tona em
seus pacientes “memórias reprimidas” de abduções alienígenas.
Os casos da Califórnia e de Mack
são extremos e não representam o processo normal de psicanálise, mas
exemplificam os riscos de levar a sério, num contexto terapêutico, fantasias
expressas como “conteúdo inconsciente”.
Enquanto hipótese, o inconsciente
psicodinâmico funciona de modo muito semelhante a uma teoria da conspiração.
Um dos casos eticamente mais
complicados de Freud envolveu, exatamente, o esforço do psicanalista de
convencer uma menina de 14 anos de que ela sentia atração sexual inconsciente,
reprimida, por um adulto que havia tentado molestá-la.
O INCONSCIENTE, AFINAL
Freud costuma receber crédito
indevido por ter “descoberto” o inconsciente. O crédito é indevido
porque a ideia de que o cérebro contém processos inconscientes já havia sido
popularizada na filosofia da mente de Gottfried Wilhelm Leibniz, e era corrente
nos anos formativos do jovem Freud.
Leibniz ponderava que os
pensamentos não param só porque não os percebemos, e alguns de seus exemplos
[...] o cérebro segue registrando o som de uma cachoeira mesmo depois que paramos
de prestar atenção na queda d’água – estão muito mais próximos da concepção
moderna, científica, de inconsciente do que o calabouço mental dos
psicanalistas.
A relação e os processos
inconscientes reais, como detectados e descritos pela psicologia científica e
pela neurociência, e o inconsciente psicanalítico, fantasmagórico, é apenas
metafórica.
Do ponto de vista dos estudos
modernos sobre o funcionamento da memória, todo o conceito de repressão é
problemático. Sabemos que as memórias não são exatamente registradas, mas
reconstruídas cada vez que as evocamos.
Pacientes de estresse
pós-traumáticos sofrem não por memórias que perderam, mas por lembranças de que
não conseguem se livrar.
Quando partes do suposto conteúdo
reprimido parecem vir à tona, não há como distinguir de fabricações
imaginárias.
“Transferência” é um termo
técnico da psicanálise, um construto teórico freudiano, que se refere a um
suposto estado de dependência e submissão infantil do paciente em relação ao
analista.
O argumento de Freud é que a
psicanálise funciona porque a análise de transferência funciona. Mas a análise
de transferência e sua interpretação dependem dos mesmos pressupostos teóricos
que a psicanálise. O raciocínio se reduz a “psicanálise funciona porque psicanálise
funciona”.
Dependendo do ponto de vista do
analista, pacientes de cada escola tendem a trazer à tona exatamente o tipo de
dado fenomenológico que confirma as teorias e interpretações de seu analista!
Cada teoria tende a se autovalidar.
CONSTELAÇÃO FAMILIAR
Ao longo dos últimos séculos, a
ideia freudiana original de que a saúde moral depende da revelação de segredos
inconscientes reprimidos deixou descendentes e, entre eles, sofreu mutações de
diversos tipos. Algumas vezes, esse inconsciente, que Freud, de modo mais ou
menos implícito, localizava na estrutura física do cérebro, entre os neurônios,
acaba sendo transportado para um plano mágico, metafísico, comparável ao “mundo
das ideias” da filosofia platônica. Em outras é expandido para incluir até mesmo
o espírito dos mortos. É o que acontece numa modalidade “terapêutica”
que vem ganhando popularidade de modo alarmante no Brasil, principalmente como
ferramenta de conciliação jurídica: a constelação familiar.
[...]
O criador dessa proposta
terapêutica, Anton Suitbert “Bert” Hellinger, era padre católico jesuíta.
Segundo Hellinger, as pessoas que representam os parentes do paciente passam a
ter pensamentos muito próximos aos dos representados, mesmo sem nunca os ter
visto.
[...]
Hellinger preferia não tentar
explicar o fenômeno [...] é possível encontrar menções a “campos quânticos
de informação” e até mesmo o “campo morfogenético” postulado
pelo parapsicólogo britânico Rupert Sheldrak.
A possibilidade de campos assim
existirem, no entanto, é comparável à de haver unicórnios na Lua [...] Toda
ideia de que pensamentos e emoções “vibram” no espaço é pseudocientífica
em si, incluir as “vibrações” dos mortos no cardápio já avança para o
campo da religião.
Por mais que esses eventos sejam
impressionantes, não é necessário apelar para nenhum efeito paranormal para
explicá-los.
[...]
Há experimentos em que sessões
com um “vidente” foram gravadas e a gravação, depois, confrontadas com as
memórias do cliente a respeito do que foi dito na consulta. Em geral, o que é
realmente dito, e consta no conteúdo gravado, é muito mais vago, impreciso e
recheado de erros do que aquilo que o cliente se lembra de ter ouvido.
Em resumo, quando ouvimos alguém
descrever o que lhe aconteceu, geralmente recebemos um relato simplificado, não
muito bem descrito de algo não muito bem lembrado e que não foi muito bem
observado.
Qual o efeito terapêutico que se
espera de uma constelação familiar? Hellinger explica: “Para cada pessoas só
existe um lugar certo na família. Uma vez que você tenha tomado esse lugar,
surge uma nova perspectiva que o torna capaz de agir”.
E que “devido lugar” é
esse? Hellinger pode ter deixado o clero católico, mas sua visão de família
nunca deixou de ser igual à dos mais reacionários entre os católicos
conservadores.
O pai da doutrina fala muito em “parceria
entre iguais” numa relação, mas sua ideia de igualdade é mais bem definida
como “iguais mas cada um no seu lugar”.
“Em sua forma mais comum, o
incesto representa a tentativa de reequilibrar o dar e o receber na família. Se
assim for, o agressor foi privado de alguma coisa: por exemplo, o que ele fez
pela família não merece o devido reconhecimento. Sob essa forma, o incesto
procura corrigir o desequilíbrio entre o dar e o receber”, diz o criador da
doutrina.
EFEITOS
Essa visão da centralidade do
poder patriarcal e do sexo heterossexual leva a outros postulados controversos
(para não dizer chocantes) como o do incesto, que já vimos. Segundo Hellinger,
o modelo que vê o incesto como um crime cometido contra a criança geralmente “não
ajuda em nada”.
Afirma que vítimas de abuso
sexual infantil que se tornam prostitutas fazem isso por amor inconsciente ao
abusador.
O paciente ouve que deve
encontrar seu lugar adequado no sistema familiar, e esse lugar é definido por
uma hierarquia rígida e sexista. Vítimas de abuso sexual ou violência doméstica
devem “reconhecer” o laço de amor que as une ao abusador, bem como
assumir uma parcela da culpa.
A constelação familiar foi
integrada à lista de terapias alternativas que o SUS está autorizado a custear
e promover.
No judiciário, sob o pseudônimo
de direito sistêmico, a constelação familiar vem sendo usada em processos de
conciliação entre as partes, principalmente em Varas de Família. Dado o caráter
machista e hierárquico da doutrina, não é difícil imaginar para que lado essas
“conciliações” pendem.
No Brasil, o Direito Sistêmico é
produto com marca registrada e esquema de marketing que lhe dá uma penetração
forte (e preocupante) no sistema judicial.
DODÓ
O diabo, como se diz, mora nos
detalhes. Algumas modalidades de terapia trazem mais potencial de dano que
outras. Além disso, há modalidades baseadas em pressupostos antiéticos e
preconceituosos, como a constelação familiar ou as terapias de “reorientação”
sexual, que buscam “curar” a homossexualidade.
PARANORMALIDADE
A expressão “psi”, diz a
frase de abertura de um explosivo artigo científico publicado on-line em
janeiro de 2011, denota processos anômalos de transferência de informação ou
energia atualmente inexplicado em termos de mecanismos físicos ou biológicos
conhecidos.
Essa definição também serve para
o que a maioria das pessoas entende por paranormalidade, um campo formado por
fenômenos que, embora sejam considerados reais – isto é, que acontecem de
verdade e são observados – fogem das leis conhecidas da ciência.
O autor era Deryl J. Bem,
professor emérito de psicologia da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e
o trabalho saía em uma das mais importantes revistas especializadas da área.
Bem apresentava os resultados de
nove experimentos, oito dos quais – segundo ele – estabeleciam, com rigor
científico, o fato de que a mente humana recebe e processa estímulos vindos do
futuro.
Logo que saiu publicado, o
trabalho de Deryl Bem foi lido, com olhar cético, por especialistas em
psicologia e estatística, e nada sobrou em pé. Tentativas independentes de
reproduzir os resultados também falharam.
Era como se Bem estivesse dando
tiros a esmo contra uma parede branca e depois fosse, com uma lata de tinta,
pintando alvos em torno dos buracos de bala.
Em vez de o cientista formular
uma hipótese clara e conduzir experimentos em uma busca imparcial por dados
relevantes que possam confirmá-la ou refutá-la, inicia-se uma coleta de dados
mais ou menos a esmo, sem hipótese clara, tendo-se apenas uma direção geral em
mente – provar que paranormalidade existe, digamos – e então “pesca-se”
no oceano de informações recolhidas, aquelas que parecem avançar nessa direção.
As hipóteses, então, são construídas em função dos dados pescados em vez de a
coleta de dados ser guiada pelas questões propostas na hipótese.
Um exemplo para ajudar a entender:
suponha que um grupo de adoradores da deusa grega Héstia resolva fazer um
estudo científico para provar que queimar incenso em homenagem a ela traz
benefícios. Que benefícios? Qualquer um serve. O que cair na rede é peixe.
Pesquisadores fiéis recrutam
voluntários e dividem em dois grupos, um que vai queimar incenso para Héstia e
outro que vai queimar incenso sem nenhuma intenção especial.
Terminado o período, os fiéis
fazem exames de saúde completos nos voluntários, em busca de alguma coisa,
qualquer coisa, que esteja melhor nos humanos “para Héstia”.
Depois de peneirar e cruzar os
dados de todas as maneiras possíveis, encontram uma diferença em pressão
arterial, e o culto de Héstia manda press-releases às páginas de
bem-estar dos jornais e às revistas de saúde dizendo que a devoção à deusa
Héstia reduz a hipertensão.
Quando se procuram resultados por
toda parte, e de qualquer jeito, não há como garantir que o benefício não tenha
aparecido por mero acaso, ou por algum outro fator específico que não tem nada
a ver com Héstia. É negligência ou má fé.
Numa entrevista, Bem admite que
procura dados que reforcem sua capacidade de convencer os outros daquilo que
acredita.
Disse ele: Juntei dados para
mostrar como eu poderia estar certo. Usei dados como forma de persuasão.
Essa atitude se repete ao longo
de toda a história da pesquisa sobre fenômenos extraordinários, da medicina
alternativa à telepatia, o que se reflete na baixa qualidade e no caráter
suspeito de quase tudo que é produzido nesses campos.
O INÍCIO
Percepção extrassensorial,
telepatia e clarividência somada à telecinese compõe o conjunto clássico dos “processos
anômalos de transferência de informação e energia atualmente inexplicados em
termos de mecanismos físicos ou biológico conhecidos” que entram na
definição de paranormalidade. Se soa como uma lista de poderes mágicos ou de
feitos milagrosos de santos e profetas, é porque é exatamente disso que se
trata.
Cientistas em geral são, é claro,
tão vulneráveis quanto qualquer outra pessoa à tentação de abraçar hipóteses “de
estimação”. Algumas ideias acabam reunindo entusiastas que conversam apenas
entre si mesmos e blindam-se contra supervisão crítica da comunidade maior.
Este é o caso da “pesquisa psíquica”, ou paranormal.
A “pesquisa psíquica” esteve
fortemente ligada aos fenômenos da religiosidade espiritualista, da qual o
espiritismo brasileiro é uma vertente particular.
Décadas de trabalho com médiuns,
no entanto, não só falharam em produzir evidência válida da realidade de
fenômenos paranormais, como expuseram inúmeros casos de fraude deliberada,
quase sempre por parte do médium, e algumas vezes com a cumplicidade do
cientista envolvido.
TRITURANDO NÚMEROS
A história do campo é toda
marcada por denúncias de fraude, manipulação incompetente da estatística e
falhas metodológicas que permitem erro de randomização, vazamento sensorial ou
parada opcional.
Nenhum resultado positivo jamais
foi encontrado que não acabasse seriamente questionado ou completamente
invalidado por algum desses fatores – fragilidade no desempenho do estudo,
manipulação indevida dos dados, defeitos dos materiais, fraude.
HOMEM E SUPER-HOMEM
[Caso] Uri Geller. Reputações
acadêmicas foram construídas (e demolidas) em torno dele.
James Rendi denunciava os truques
usados pelo ilusionista israelense para produzir seus efeitos supostamente
paranormais.
O truque envolvia a preparação
prévia dos objetos ou o uso de prestidigitação, ilusionismo para substituir
objetos intactos por similares pré-deformados. Cautela extra impediu que Geller
exibisse seu “poder” ao vivo na TV – ao menos aquela noite.
Rendi era especialmente impiedoso
com cientistas que se davam ares de objetividade absoluta só para depois
deixarem-se engambelar por embusteiros.
IMPOSSIBILIDADE
Nos últimos tempos vêm ganhando
volume as vozes que condenam a área como insustentável e anticientífica.
“Princípios científicos
fundamentais de causalidade, conservação da energia e termodinâmica proíbem a
existência de paranormalidade”
Se efeitos parapsicológicos como
a capacidade de mover objetos ou afetar o passado com poder da mente realmente
existissem, a própria ciência seria impossível.
As próprias leis da ciência,
observadas em laboratório, seriam diferentes dependendo do gosto pessoal e do
nível de poder paranormal de cada pesquisador.
EXPERIÊNCIA PESSOAL
Muitas pessoas têm a impressão de
que o paranormal é plausível porque algo do tipo aconteceu com elas.
Quando estudos científicos mostram que esses efeitos não existem. Há a
tendência de olhar para os pesquisadores como um bando de chatos ou imaginar
que existem realidades “além da ciência”.
A intuição de que ocorrências
paranormais são comuns é uma ilusão alimentada por heurísticas e vieses, como
os descritos na introdução deste livro, em geral atuando sobre o modo como
interpretamos coincidências notáveis.
Há uma explicação muito mais
simples, que dá conta desses fenômenos sem a necessidade de apelar para a
ficção científica: a Lei dos Números Realmente Muito Grandes.
Dado um número vasto o suficiente
de oportunidades, até as coisas mais improváveis acabam acontecendo, por puro
acaso. Ou: “Numa amostra grande o suficiente, qualquer coisa ridícula tem
probabilidade de acontecer”.
A chance de alguém acertar as
seis dezenas da Mega-Sena é menor que 1 em 50 milhões. Mas, de vez em quando,
alguém ganha. Quanto maior o número de apostadores, mais oportunidades de o
prêmio sair.
Um efeito indireto da Lei dos
Números Realmente Muito Grandes é tornar eventos que são muito improváveis na
escala do indivíduo quase inevitáveis em termos populacionais.
Todas as pessoas sonham [...]
adultos têm até três sonhos memoráveis por semana. O Brasil tem cerca de 220
milhões de habitantes, sendo 76% maiores de 18 anos [...] 500 milhões de sonhos
marcantes [...] ou 70 milhões por noite.
Talvez uma pessoa que sonhe com
um passarinho machucado, na mesma semana em que cai um avião, venha a acreditar
que o sonho foi uma profecia, por exemplo.
Estimar uma taxa de 1% de sonhos
supostamente premonitórios não é um chute muito alto.
Se há, a cada noite, 70 milhões
de sonhos que serão lembrados pelos sonhadores no dia seguinte, e se 1 sonho em
cada 1 milhão acaba parecendo “profético” por puro acaso, então podemos
esperar 70 sonhos “premonitórios” no Brasil – todos os dias.
O que é efetivamente impossível
para um indivíduo, acaba tornando-se inevitável na escala da população como um
todo.
Outra parte é a subjetividade do
foco da atenção: se o computador de uma repartição pifa quando eu apareço para
ser atendido, é só mais um dia no serviço público. Agora, se o computador da
delegacia pifa quando o João de Deus chegar para ser preso, todo mundo fica
espantado. Alguém, por acaso, parou para contar quantas outras delegacias
tiveram defeito elétrico no mesmo dia?
Crenças sobre magia e intuição
aparecem mais em mulheres, e crenças em maravilhas da natureza e da tecnologia,
como monstros e óvinis, aparecem mais em homens.
DISCOS VOADORES
Em março de 1966, um relatório
produzido pela USAF informava que, de todos os casos de óvini investigados até
então, apenas 6% permaneciam inexplicados em termos prosaicos, e mesmo esses 6%
correspondiam àqueles que poderiam ser explicados se houvesse mais dados a
respeito.
Questões de clima cultural e
interesses comerciais sempre estiveram fortemente relacionadas ao interesse do
público em óvinis.
A interpretação dada pelo público
a fenômenos incomuns ou difíceis de explicar vistos no céu é sensível às
ansiedades sociais e às expectativas psicológicas da época.
DO OUTRO MUNDO
O que o tamanho do Universo e a
probabilidade de haver vida em outros planetas têm a ver com a probabilidade de
aquela foto borrada que tirei ontem ser uma nave alienígena? Pensando bem,
quase nada.
A cadeia de argumentos “Universo
enorme = vida inteligente = óvinis são Ets” só soa plausível porque quem a
apresenta queima etapas, esconde elos cruciais de raciocínio, sem que a
audiência perceba; com isso, embute pressupostos altamente questionáveis.
O primeiro é equacionar “vida”
com “vida inteligente” [...] imaginar que a inteligência, tal como a
entendemos, é uma característica necessário ou inevitável da evolução é ou
preconceito religioso ou só arrogância mesmo.
Para o argumento que vai do
Universo abundante à abundância de discos voadores sustentar-se, não só vida
racional, mas vida racional com vontade, recursos e meios de criar e usar uma
tecnologia de viagens espaciais precisa existir em outros lugares.
As leis da física, como as
conhecemos hoje, sugerem que não é possível percorrer distâncias assim em
intervalos de tempo menores do que alguns milênios
Ainda é preciso somar a hipótese
de que o povo capaz e disposto a realizar esse tipo de viagem está interessado
em vir exatamente aqui, com tantas outras estrelas e planetas à disposição. E,
vindo aqui, não esteja muito preocupado nem em se esconder nem em se revelar.
Mais outra: que a comunidade
internacional de astrônomos, milhares de pessoas em todo o mundo, jamais tenha
notado o tráfego de naves alienígenas pela vizinhança ou que esteja
participando de uma grande conspiração global de acobertamento.
Cada ocorrência é um caso
individual e requer uma explicação específica. O próprio conceito de “não
identificado” é subjetivo: uma luz no céu que parece intrigante ou
incompreensível para um advogado ou médico pode ter uma explicação óbvia para
um astrônomo ou metereologista.
FRAUDES
A notoriedade do fenômeno óvini
abriu espaço para todo tipo de fraude. O primeiro “disco voador” a causar
sensação no Brasil foi apenas um truque fotográfico aplicado por jornalistas da
revista O Cruzeiro.
Um grupo de pescadores produziu
inúmeros “avistamentos de óvinis” soltando balões de hélio decorados com
luzes coloridas e lanternas penduradas, ou acendendo luzes coloridas no alto de
colinas à noite.
O clima cultural que predispõe
parte do público a interpretar fenômenos celestes estranhos como “naves de
outro mundo” afita também a memória que as pessoas guardam desses eventos.
Processos inconscientes preenchem
lacunas da percepção e da memória de acordo com as crenças e expectativas de
cada um.
No fim, o principal argumento em
defesa da hipótese “óvinis são Ets” reduz-se à falácia do apelo à
ignorância: “Já que ninguém é capaz de explicar o que é esse fenômeno visto
no céu, então ele é uma nave de outro planeta”. Isso tem tanta lógica
quanto dizer que “Já que ninguém é capaz de explicar o que é esse fenômeno
visto no céu, então ele é o trenó do Papai Noel”.
Nada foi produzido pelo estudo de
óvinis nos últimos 21 anos que tenha que tenha somado ao conhecimento
científico.
SURGEM OS UAPS
UAPS (Em inglês: Fenômenos aéreos
não identificados)
Fenômenos simples (por exemplo, o
jato de um avião comercial distante que, por alguns instantes, apareça voltado
diretamente para a câmara infravermelha, causando um brilho intenso) podem
explicar várias das imagens mais impressionantes.
Nem o governo nem as Forças
Armadas dos Estados Unidos mantém vestígios de tecnologia alienígena guardados,
e não existe evidência nenhuma, em poder das autoridades, de que a Terra tenha
sido visitada por extraterrestres.
RELIGIÃO
A ufologia muitas vezes se reveste
de caráter religioso. Quando a ciência diz que no céu não há deuses ou anjos,
mas planetas onde talvez vivam alienígenas, não é difícil transferir os
sentimentos e a esperança de “salvação vinda de cima” para os discos
voadores.
A ufologia nacional é fortemente
influenciada por misticismos pseudocientíficos dos séculos XVIII, XIX e XX,
como teosofia, antroposofia e o espiritismo.
A ufologia brasileira, ao menos
no recorte apresentado no Senado, é uma seção (dissidência) do movimento
espírita.
SEPARAÇÃO INCOMPLETA
No mundo de língua inglesa, a
comunidade ufóloga foi aos poucos se afastando dessa sensibilidade exotérica,
assumindo ares cada vez mais técnico-científicos.
“Não identificado” não é
sinônimo de “alienígena”. Muitos acabam identificados.
Só porque vida alienígena é
possível, não significa que “eles” estão aqui.
Não dá para identificar tudo, e
isso não é prova de vida alienígena, mas de que testemunhos são imprecisos,
contextos nem sempre são claros e informação degrada-se com o tempo.
Na ausência de evidências
contundentes, o melhor que se pode fazer diante da pergunta “Mas o que era
aquilo no céu?” é deixar a questão em aberto ou adotar uma explicação
provisória baseada no balanço das probabilidades: mal-entendidos, erros
observacionais ou mesmo fraudes deliberadas.
PSEUDOARQUEOLOGIA
E DEUSES ASTRONAUTAS
Em agosto de 1939, a temida
guarda de elite do partido Nazista deixava o Tibet. O que mais interessava ao
comandante supremo da SS, era a busca por vestígios arqueológicos e antropológicos
que confirmassem a origem tibetana dos arianos, a inexistente “raça superior”.
Christopher Hale: “Arqueólogos
eram enviados para todas as partes do mundo para desenterrar as glórias da
pré-história ariana. E pobres daqueles que falhassem em descobrir as cerâmicas
e os artefatos da Raça-Mestra”.
Himmler: “Os arianos não
evoluíram de macacos como o restante da humanidade, mas são deuses vindos
diretamente do céu”.
A falsificação do passado pelos
nazistas era parte da própria justificativa político-ideológica do sistema.
O uso de ficções arqueológicas
não é exclusividade nazista, embora o Estado alemão tenha levado essa
estratégia ao paroxismo.
A hipótese de Charles Darwin,
hoje exaustivamente confirmada, de que nossa espécie surgiu na África era
desprezada ou ignorada.
A tentação de reescrever o
passado para melhor controlar o presente sempre existiu. A arqueologia nesse
aspecto é mais maleável, já que suas conclusões dependem da interpretação de
vestígios físicos.
O universo da pseudoarqueologia
liga muito pouco para constrangimentos. O Brasil já foi palco de manobras do
tipo.
DEUSES ASTRONAUTAS
A forma mais caricata de
pseudoarqueologia é a que invoca deuses astronautas ou “astronautas do
passado”.
Teriam vindo à Terra, ensinado os
primórdios da cultura ou ajudado as civilizações da África e das Américas a
erguer seus monumentos.
Curiosamente não vemos ETs sendo
convocados para explicar as grandes catedrais europeias: o racismo eurocêntrico
segue sendo uma marca desse tipo de especulação.
O fato de diversas culturas terem
contos e lendas sobre grandes enchentes ou dilúvios não reflete o fato de que
populações humanas a se estabelecer perto de fontes de água e inundações são
eventos comuns, com grandes chances de acabarem servindo de tema para o
folclore local, mas sim a “memória coletiva” de uma catástrofe global.
O fato de diversos povos terem
erguido pirâmides refletiria não a realidade física de que empilhar pedras numa
estrutura piramidal é a forma mais simples de erguer edifícios altos, mas algum
tipo de matriz cultural compartilhada entre, digamos, maias e egípcios.
A grande charlatona russa Helena
Bravatsky, fundadora do sistema exotérico conhecido como teosofia, afirmava que
seres espirituais do planeta Vênus haviam auxiliado na evolução humana.
Estilo, retóricas, insinuações,
parecem deixar o leitor livre para “pensar por conta própria”, elogios
dirigidos pelos autores a si mesmos pela “coragem” e “ousadia” que
demonstram. A prestidigitação retórica é notável.
Ora, com a exceção de
contradições lógicas patentes, como círculos quadrados ou solteiros casados,
todas as coisas são, a rigor, “possíveis”. A tarefa do ser racional é “pescar”,
no oceano infinito das possibilidades, o que é razoável e plausível, e jogar de
volta o que não é.
PIRI REIS
Outras características são um
profundo desleixo ao lidar com fatos e a produção de interpretações exóticas
para artefatos históricos e arqueológicos já bem compreendidos pela ciência.
O caso do Mapa de Piri Reis é um
dos mais interessantes. Relíquia histórica legítima, contém um desenho de
partes do Caribe. Talvez seja a mais antiga menção cartográfica preservada ao
“Rio de Janeiro”.
Mas não foram essas qualidades
reais que tornaram o mapa famoso, e sim a associação espúria com continentes
perdidos, civilizações pré-históricas e alienígenas do passado.
Autores de pseudo-história
basicamente copiam as ideias e alegações uns dos outros e acrescentam seus
próprios exageros particulares, sem se dar ao trabalho de conferir as fontes
originais.
Introduzem uma série de
informações claramente falsas a respeito do documento. Dizem que o mapa mostra
os contornos perfeitos das Américas do Norte e do Sul e os contornos estão
longe de ser “perfeitos”. Questionam se os mapas teriam sido “traçados”
a partir de observações feitas a bordo de uma máquina voadora ou veículo
espacial.
TERRA AUSTRALIS
A alegação de que a apresentação
das Américas no mapa seria “perfeita” não resiste a dois segundos de inspeção
visual cuidadosa.
O que resta é a suposta
representação “exata” da costa da Antártida. O que interpretam como “Antártida”
é uma dobra abrupta na costa sul-americana. O que põe todo o sul do Brasil no
continente gelado. O suposto continente antártico aparece ligado à América do
Sul.
Quanto à alegação de que a costa
da Terra Australis de Piri Reis reproduz fielmente a costa da Antártida, ela é
apenas falsa.
PIRÂMIDES
Dos monumentos do passado
explorados pela pseudoarqueologia, nenhum talvez tenha sido mais maltratado do
que as pirâmides de Gizé, no Egito. Embora a arqueologia moderna saiba que as
pirâmides foram erguidas por egípcios, a consciência popular parece dominada
pela ideia de que ainda envolvem algum grande “mistério”.
A história da evolução
arquitetônica da pirâmide é bem clara no registro arqueológico egípcio. É
verdade que o método exato utilizado continua a ser alvo de debate, mas é um
debate em torno de uma escolha racional entre técnicas de construção
disponíveis no mundo egípcio de 4500 anos atrás – sem a necessidade de se
apelar para raios antigravitacionais ou engenheiros atlantis.
CONHECIMENTO SECRETO
[Literalismo Bíblico da era
vitoriana] O racismo, sob a forma de antissemitismo, aparece como mola
propulsora da falsificação do passado. Das supostas correspondências
astronômicas, matemáticas e geográficas encontradas na pirâmide, eles deduzem a
“polegada piramidal”.
É possível comprovar qualquer
hipótese envolvendo fórmulas e números, por mais absurda que seja: Se você
medir a sua altura e multiplicar pelo dobro do comprimento do seu nariz, o
resultado será “espantosamente” próximo de alguma coisa.
Como explicar que o produto
matemático fundamental X está inscrito no meu nariz? Fácil: Primeiro achamos o
número, e então saímos procurando algo de significativo que correspondesse a
ele.
Dá pra fazer o contrário: começar
com o valor significativo e ficar fazendo contas até encontrar alguma relação
que corresponda ao valor “aproximado” de alguma coisa.
Monumentos e textos antigos
realmente esconderam conhecimento de forma enigmática ou estamos distorcendo o
trabalho deles, projetando e encaixando o conhecimento de nossa época?
Toda suposta evidência de que
alienígenas estiveram aqui foram fundadas ou inspiradas em supostas lacunas
(poucas reais, a maioria falsas) do conhecimento histórico ou antropológico
A chance de a Terra ser visitada
por formas de vida de outros planetas é infinitesimal. Quanto à Antártida ou
outras supercivilizações perdidas, simplesmente não há evidência de que tenham
existido.
Os egípcios bastam para explicar
o Antigo Egito, os maias bastam para explicar a Civilização Maia, do mesmo modo
que os franceses bastam para explicar a Catedral de Notre Dame.
Muitas das pessoas que hoje se
entusiasmam com hipóteses de deuses astronautas e civilizações perdidas
provavelmente não são racistas, mas o hobby que cultivam está impregnado
dessa ideologia.
A OUTRA FACE
Alegações baseadas em
pseudoarqueologia já foram usadas para estimular orgulho étnico e nacional.
Na Índia, pesquisadores acreditam
que relatos místicos descrevem maravilhas tecnológicas criadas por gênios
indianos do passado.
Há quem diga que Aristóteles “roubou”
sua filosofia da Biblioteca de Alexandria. A biblioteca foi estabelecida 200 anos
após a morte do filósofo.
Quanto à aparência dos antigos
egípcios, os dados disponíveis indicam que era norte-africana, mais semelhante
aos povos do Mediterrâneo e do Oriente Médio. A despeito disso, o Egito foi
governado, durante a 25ª. dinastia, por um faraó originário de Kush (atual
norte do Sudão).
Uma ala sugere que a civilização
olmeca da América Central teria nascido de uma colônia egípcia. A proposta
sofre de uma série de incoerências, indo da total ausência de evidências à incongruência
cronológica: Quando os kushitas conquistaram o Egito, construir pirâmides já
tinha saído de moda quase 2000 anos antes.
Afrocentrismo é tão errado quanto
eurocentrismo ou qualquer outro “centrismo”. Todas as regiões do mundo
desenvolveram culturas sofisticadas e elaboradas. Nunca houve um único “povo
genial”.
ANTROPOSOFIA
Antroposofia, a “Ciência
espiritual” criada pelo austríaco Rudolf Steiner, pseudocientista e
defensor da supremacia branca.
Pediatria antroposófica é uma
fonte histórica de resistência à vacinação infantil.
A antroposofia afirma a realidade
histórica do continente perdido de Atlântida, vê problemas de saúde como efeito
de predisposições inatas trazidas de encarnações anteriores e considera certas
formas de doença e sofrimento como elementos úteis.
Autores, apologistas ou
comentaristas preferem minimizar, ou mesmo omitir, a afinidade de Steiner com a
mitologia racial abraçada pelo nazismo.
Na narrativa antroposófica,
espíritos humanos vão reencarnando em corpos de pele e cabelos mais claros à
medida que progridem: Genocídios podem ser necessários e bem-vindos.
ANTI-DARWIN
A publicação de A origem das
espécies em 1859 explodiu, na cabeça de muitos, em conflito aberto entre
ciência e religião. O fundamentalismo bíblico e o movimento criacionista são
dois produtos dessa disputa, mas estão longe de ser os únicos.
O pensamento é uma secreção do
cérebro. – Charles Darwin
A possibilidade de não haver nada
mais “mágico” por trás da condição humana, ainda hoje soa intolerável
para muita gente. Opções para aliviar essa angústia começaram a surgir.
A mais bem-sucedida foi a
proposta por Helena Petrovna Blavatsky. A teosofia de Blavatsky era uma mistura
de espiritismo, hinduísmo, budismo e ciência popular.
TEOSOFIA
Na narrativa teosófica, humanos
são entidades espirituais cuja existência na Terra se dá em ciclos históricos.
Cada ciclo é dominado por uma raça-raiz. A “atual” raça-raiz é a ariana.
“Raça ariana” é um
conceito difuso e impreciso. Em termos técnicos aplicava-se às populações de
língua nativa indo-europeia, o que talvez explique a cooptação como sinônimo de
“brancos não judeus”.
Durante anos, Steiner foi a
principal figura do movimento teosófico, mas sua visão foi divergindo. Steiner
se afastava das raízes budistas e hinduístas do sistema de Bravatsky. O
movimento levou à criação da antroposofia.
Steiner substituiu o caráter
cíclico da evolução teosófica por um de progresso contínuo, com raças
superiores surgindo em resposta ao aperfeiçoamento espiritual da espécie, num
processo de “eugenia cósmica”.
ANTROPOSOFIA E CIÊNCIA
Um sistema que se propõe a ser
capaz de produzir conhecimento sobre a realidade, com valor científico, precisa
passar pelos mesmos testes de qualidade e confiabilidade a que a ciência é
submetida, e nisso o “processo Steiner” falha miseravelmente.
Critérios fundamentais exigidos
da ciência comum: intersubjetividade (experimentos iguais devem produzir
resultados iguais, não importa quem os realiza) e verificabilidade empírica
(afirmações teóricas devem ter consequências práticas, consequências essas que
devem ser observadas e confirmadas).
No caso da antroposofia, é o
apelo à autoridade da palavra de Steiner que determina se uma visão espiritual
é “verdadeira” ou não.
O consenso atual entre
historiadores é de que o rei Arthur “não foi mais real do que Sherlock Holmes
ou Doutor Who”.
A insistência de que a mera
presença de negros na Europa ameaçava a “raça ariana” com
decadência física e espiritual mostra uma coleção de delírios, idiossincrasias
e ilusões de Rudolf Steiner e preconceitos comuns de seu país, sua classe
social e sua época.
MEDICINA
Na obra fundadora da medicina
antroposófica, lemos que introspecção e meditação dão acesso aos “mundos
superiores”. Diabete é causada por um adormecimento do ego; gota por um
excesso de espírito animal.
Doenças, nessa visão, têm causas
profundas que vão além da presença de microrganismos patogênicos, contaminantes
ambientais ou de predisposição genética. A farmacopeia antroposófica
assemelha-se à homeopática.
Essa ideia de que todos os
problemas de saúde têm uma única causa (desequilíbrio) e uma única cura
(equilíbrio) é comum a boa parte da medicina alternativa. O que estaria
desequilibrado varia de um esquema doutrinário para outro. A ideia do
desequilíbrio como causa universal do adoecimento não passa de superstição.
Em seus escritos, Steiner bate na
tecla de que as vacinas podem por em risco o desenvolvimento espiritual da
criança.
Artigo publicado em 2013 aponta
que, segundo a doutrina antroposófica. Doenças como rubéola e sarampo podem ser
benéficas para a criança.
Steiner dizia que avanços como
saneamento básico talvez estivessem retardando o progresso do homo sapiens.
Como até hoje faz muita gente que vive saudável e confortável, a ele também
parecia que a saúde e o conforto dos outros poderiam representar uma violação
das leis da Natureza.
BIODINÂMICA
Rudolf Steiner aparentemente foi
um daqueles egos monumentais incapazes de responder a qualquer pergunta com um
honesto “não sei”. Quando lhe pediram suas ideias sobre o cultivo da
terra, o resultado foi o início do movimento da agricultura biodinâmica.
A agricultura biodinâmica
partilha de boa parte das vantagens aparentes (e dos problemas reais) da
agricultura orgânica, mas com uma camada extra de magia e ocultismo.
ENSINO WALDORF
Rudolf Steiner elaborou um
sistema educacional baseado em suas revelações exotéricas, existem milhares de
escolar waldorf pelo mundo.
Entre as ideias de Steiner está a
de que é a troca de dentição que marca a libertação do corpo etérico.
Escolas que adotam o sistema têm
sido criticadas por desestimular vacinação, promover “curas”
pseudocientíficas e, é claro, usar os conceitos pseudocientíficos para definir
práticas pedagógicas, e usar material didático racista. Alguns desses problemas
começam também a vir a público no Brasil.
LEGADO
A antroposofia conta com uma
penetração especial no Brasil porque tem uma forte compatibilidade com o
espiritismo kardecista e com a homeopatia, as duas formas de “conhecimento
alternativo” mais populares deste país.
Além disso, ao reservar um espaço
de honra para a figura de Cristo, Steiner fez da antroposofia um sistema
mitológico bem adaptado ao gosto brasileiro por cristianismos sincréticos e
exotéricos.
Defensores do legado de Steiner
costumam minimizar suas ideias místicas e ocultistas mais obviamente ridículas,
além de seu racismo – uma linha comum é negar que ele fosse racista.
Edições “oficiais”
recentes da obra de Steiner têm sistematicamente omitido ou editado as
passagens mais constrangedoras.
Kafka parafraseia uma fala de
Steiner, pondo em evidência a megalomania do homem.
Submeter textos que dizem e
propõem atrocidades à interpretação criativa é o arroz com feijão de boa parte
da teologia liberal moderna e da fração considerável do proselitismo político
também.
PODER QUÂNTICO E
PENSAMENTO POSITIVO
A física quântica confrontou a
humanidade com a constatação de que escolhas feitas pelo observador afetam o
fato observado. Resultados assim acabam levando pessoas a imaginar que a
ciência estaria reconhecendo o poder da força de vontade e do pensamento
positivo para alterar a realidade.
Um dos principais determinantes
da crença em suposições é “o desejo universal do ser humano por autonomia e
controle”.
O pensamento supersticioso
costuma ser definido com a crença de que eventos que não guardam nenhuma
relação entre si estariam unidos por elos de causa e efeito.
Assim, a ideia de que usar uma
touca feita com as plumas de um pássaro sagrado pode curar câncer de próstata
talvez não encante ninguém, mas e se for câncer de cérebro? Ou enxaqueca?
O planeta Marte estimula a
violência; uma planta em forma de rim é remédio para problemas renais; fios de
cabelo ou aparas de unha para trazer o amor ou causar doenças.
A galáxia das superstições é
vasta, assim como são inesgotáveis as roupagens que pode assumir, e as
roupagens que pode se apropriar. Há dois mil anos, luzes estranhas no céu
evocavam a ideia de anjos; hoje, de extraterrestres.
Dependendo do extrato
sociocultural, apelos diretos à superstição ou às formas de religiosidade
tendem a ser malvistos. A saída é disfarçar o pensamento supersticioso como
esoterismo sofisticado – ou ciência. Ou ambos.
HERMÉTICO
Hermes Trismegisto é uma figura
mítica. Textos atribuídos a ele datam dos primeiros anos da era comum. Essa
imagem ainda é cultivada em certos círculos exotéricos. Vale como princípio que
“O TODO É MENTE”; o Universo é mental. A implicação de que pensar faz
acontecer.
Essa afirmação – você é o que
você pensa – carrega uma infinidade de nuances de significado, dos mais
metafóricos aos estritamente literais.
Essa é a “Lei da Atração”
alardeada em O segredo, best seller de 2006.
Autores, como Amit Goswami e
Deepak Chopra tinham como cabide para pendurar sua crença supersticiosa algo
mais espantoso que a capacidade da atração gravitacional: toda a área da física
quântica encontrava-se à disposição.
QUÂNTICO
No início do século passado, os
físicos viram-se diante de um grande problema: algumas previsões das leis da
física clássica não estavam batendo com a realidade. A partir de determinado
momento, não só as previsões teóricas divergiam da realidade, como às vezes
apontavam para valores infinitos.
Procurando uma solução para o
problema, propuseram que a energia seria formada por partículas individuais.
Essa mudança trouxe consequências revolucionárias para a ciência. Uma dessas
foi a constatação de que a Física Quântica é eminentemente probabilística.
Certas propriedades das partículas só podem ser previstas como probabilidade.
Na versão caricatural, isso se
traduz na ideia de que quem olha tem autonomia para decidir o que essa tal de
realidade vai ser. Essa leitura amalucada acontece pela mistura entre o sentido
técnico com que certos termos são usados na ciência.
Um dos (vários) problemas que
esse sabor de Quântica da Prosperidade enfrenta é explicar como o Universo
poderia ter existido antes de haver alguém para olhar para ele.
As saídas usuais são propor um “campo
de consciência” ou trazer algum tipo de olhar divino para a jogada.
Manobras que destroem as pretensões científicas da área. Não há evidência
nenhuma de “campo de consciência”, e quando se põe Deus no meio a
conversa passa a ser sobre religião, não ciência.
Às vezes tenta-se salvar o “campo
de consciência” igualando-o a outra entidade supostamente misteriosa, o
vácuo quântico.
Há muitas pseudociências propondo
que essa propriedade do espaço, de nunca estar completamente vazio, poderia ser
usada como uma fonte inesgotável de energia.
A aproximação espúria entre o “vácuo”
da Teoria Quântica e o “vazio” da meditação remete à superstição
simpática e à magia de contágio, ilusão de substância que não passa de faz de
conta e pensamento mágico.
Figuras como Chopra misturam “observação”
no sentido de “interação com outro objeto” com “observação” no
sentido de “alguém vê”, e vendem a ideia de que o Universo só assume uma
forma definida quando alguém repara nele.
Chopra escreve que “consciência
cria realidade”. Mas a ciência mostra exatamente o contrário.
Energia emocional e a “energia”
que aparece nas equações da Física não são a mesma coisa. Afirmar que “segundo
a Física Quântica” os pensamentos devem “vibrar na frequência da
prosperidade” para atrair dinheiro revela uma confusão conceitual
comparável à de achar que Coca-Cola é um tipo de adesivo, porque tem “cola”
no nome.
Existem, enfim, duas físicas
quânticas. Uma, estudada e produzida por cientistas, desvenda a estrutura
microscópica da matéria, busca respostas para questões fundamentais da
natureza, do tempo e do espaço e torna possíveis tecnologias como a televisão,
o raio laser e a internet.
A outra é promovida por gente que
acha que E=mc2 quer dizer que pensamentos viram dinheiro quando estamos muito
motivados; que a série de filmes Matrix era uma espécie de documentário; que o
DNA humano pode ser programado pelo pensamento.
E essa segunda “Física
Quântica”, infelizmente, é a que aparece mais nos discursos atuais do
cotidiano.
Os teosofistas do início do
século passado falavam num “corpo etéreo”. O “éter” era um
material hipotético, alvo de intensa especulação científica. Essa hipótese foi
abandonada ao longo dos anos 1910, mas a pseudociência em geral tem uma forte
tendência conservadora.
Esse fenômeno da “Quântica
popular” é uma tentativa de recrutar jargão das ciências para fazer com que
crenças infundadas ou supersticiosas soem razoáveis ou, mesmo, verdadeiras.
Na maior parte do tempo, a
Quântica de verdade ignora solenemente a existência desse parasita, a Quântica
da Prosperidade. Cientistas precisam fazer ciência, afinal. Mas ignorar
parasitas nunca é uma boa ideia.
QUÂNTICO E HERMÉTICO
Ver-se ao sabor da sorte e do
acaso produz a tentação de aderir a superstições e a linguagem de “New
Thought”. Dá a oportunidade de praticar superstição de forma sofisticada. É
óbvio que o mundo ia se encher de gente vendendo isso. E vendendo caro.
E tudo fica bem. Exceto quando
não fica. Quem fracassa não volta para contar a história, não entra nos
comerciais e “documentários” promovidos no YouTube.
Existem estudos que mostram que
visualizações positivas mais atrapalham do que ajudam a atingir o objetivo e
podem favorecer o desenvolvimento de problemas como depressão. Outros estudos
mostram como a pressão de patrulhar os próprios pensamentos e emoções,
forçando-se a só pensar o que é positivo, pode ser estressante e desestabilizante
A ilusão de poder trazida por
esse tipo filosofia pseudocientífica torna muito mais fácil culpar a vítima, e
até mesmo culpar pacientes de terem provocado, em si mesmos, doenças muitas
vezes terminais. Afinal, se o Universo manda de volta para nós o que “investimos”
nele, de onde teria vindo esse tumor?
IMORTALIDADE
Muitas vezes é difícil distinguir
o vendedor de pensamento positivo de suas vítimas.
Em 1938, James Bernard Schafer,
líder de um grupo que misturava esoterismo e autoajuda, anunciou que seu grupo
iria adotar um bebê e criá-lo num ambiente tão puro e saudável que ele viveria
para sempre.
Schafer não era um excêntrico que
andava pelas ruas embrulhado num lençol, descalço e fumando maconha. Era o que
hoje poderíamos chamar de palestrante motivacional e coach. Falava para
milhões no Carnegie Hall.
O plano da criança imortal era
uma consequência lógica natural da crença de que o éter no qual essa pequena
Terra flutua, é uma forma de energia que se move a uma taxa de vibração
inconcebivelmente alta e que esse éter é preenchido com uma forma de poder
universal que se adapta à natureza dos pensamentos que temos em nossa mente e
nos influencia, de maneira natural, a transmutar nossos pensamentos em seu
equivalente físico.
Schafer convenceu a garçonete Catherine
Gaunt (ou Gauntt), que cedeu a filha de três (ou cinco) meses, Jean, para o
experimento. A fraternidade assumiu todas as responsabilidades e despesas
relativas à bebê.
Mais uma vez, trata-se de uma
extrapolação perfeitamente lógica do princípio de que pessoas atraem para suas
vidas aquilo em que pensam e de que falam.
Schafer: “Continuaremos a
impressioná-la com a beleza da vida. Se uma criança nunca pensar nada que seja
mau ou destrutivo, não haverá como derrubá-la”.
O experimento de vida eterna
durou dois anos. Catherine pediu a criança de volta.
A fraternidade entrou em colapso.
Schafer tornou-se sócio numa revista de autoajuda. A revista não foi pra frente
e o metafísico acabou preso por fraudar investidores. Tentou voltar ao mercado
de cursos sobre sucesso e palestras de autoajuda sem sucesso. Cometeu suicídio,
junto com a esposa, em 1955.
Padrinho e inspirador-mor de
Schafer, Napoleon Hill, morreu em 1970. Dizia ter recebido ligações de grandes
magnatas com quem, na verdade, nunca se encontrou, ou com quem esteve por
poucos minutos, apenas para tirar uma foto de fã e ir embora. Passou a maior
parte da vida adulta sendo sustentado por pequenas falcatruas ou pela caridade
da esposa, ou ex-esposa, da ocasião (casou-se pelo menos cinco vezes).
Trechos onde a “tecno-baboseira”
está envelhecido podem ser facilmente atualizados. Exemplo: “Vibrações de
uma taxa extremamente elevada são as únicas captadas e transmitidas pelo éter,
de um cérebro para outro”.
Nova edição [porque ficou comprovado que o éter não existe]
constrói o mesmo trecho da seguinte forma: “Pensamento manifesta-se como energia
elétrica dentro do cérebro humano. Apenas impulsos de pensamento altamente
‘energizados’ são transmitidos de um cérebro para outro”.
Pessoas usam uma linguagem que
imita a ciência mais avançada de cada época – gravidade e eletromagnetismo no
início do século XX, Física Quântica agora, no século XXI – para revestir de
plausibilidade o que não passa de superstição.
EPÍLOGO
Certa vez, em uma festinha
infantil, um de nós (Natalia), envolveu-se numa discussão com outros pais e
mães sobre alergias em crianças. Logo alguém sugeriu: “Sabe o que é bom para
isso? Homeopatia!” Natalia então perguntou se todos ali sabiam o que era
homeopatia. E explicou. Uma das mães reagiu chocada: “Mas, então, não tem
nada lá? É só água? Mas que bobagem!”
A semente desse Que Bobagem! Está
aí. Não se trata de desqualificar ou demonizar gente que acredita em práticas
de saúde sem comprovação científica ou que tem ideias exóticas.
Martin Gardner conta na
introdução à segunda edição do seu livro (Manias e crendices em nome da ciência.
trad), onde cada capítulo denunciava uma forma de pseudociência popular nos
anos 1950, que recebeu muitas cartas revoltadas de pessoas extremamente
ofendidas com livro. Para sua surpresa, a maior parte dos queixosos atacava um
capítulo específico e considerava os demais excelentes. Sabemos da
probabilidade de isso acontecer também conosco: a maioria das pessoas parece
ter, pelo menos, uma pseudociência de estimação.
O apelo ao “melhor dos dois
mundos” e a “outras epistemes e paradigmas” são argumentos comuns do
vendedor de ilusões.
Se essa ideia de “o melhor dos
dois mundos” fosse utilizada em outras áreas além da medicina. Biólogos teriam
que integrar o criacionismo. Químicos teriam que integrar alquimia. Geólogos
poderiam integrar a crença de que a Terra tem apenas 6 mil anos (e é plana);
Físicos integrariam máquinas de moto perpétuo. Astrônomos poderiam integrar
astrologia.
Como lidar com o argumento de que
nem tudo pode ser avaliado pelo método científico? Afinal, nem tudo na vida é
ciência. Música, arte, esportes, literatura não podem ser julgados por
critérios científicos, e não são menos valiosos por isso.
Dizer que algo funciona em outra
episteme (ou, como dizem às vezes, confundindo conceitos, “paradigma”) é
admitir que não joga pelas regras da ciência e não deve, portanto, partilhar da
sua credibilidade quando o assunto é a realidade concreta.
Episteme: “O que é para uma
ciência ser ciência”
Paradigma: “O conjunto de
compromissos compartilhados de uma comunidade científica”.
Uma episteme é um sistema
compartilhado por várias ciências.
Bobagens pseudocientíficas se
recusam a aceitar as regras do jogo. Mas querem ser reconhecidas como ciência
mesmo assim.
Assim chegamos ao paradoxo de
algo se vender como científico ao mesmo tempo que alega que a ciência é
incompetente para testá-lo.
Digamos que você quer mudar de
sua cidade e ir a Paris. Não importa o quanto de elaboração teórica demonstrar
que a diferença entre tapete voador e avião a jato é apenas uma questão de “paradigma”
ou “episteme”. O fato concreto é que as leis da física são capazes de
transportar seres humanos e bagagens até a Cidade Luz, e as leis que regem o
tapete voador, sejam lá quais forem, não são.
Ah, mas a ciência já esteve
errada no passado. Então, quem me garante que não está errada agora?
Embora as ideias da ciência sobre
a realidade sempre estejam, de algum modo, erradas – afinal, a ciência progride
a partir da crítica e da revisão das próprias descobertas – elas estão menos
erradas hoje do que estavam há cem, ou duzentos anos. A ciência progride e
acumula novas evidências, mas para mudar consensos científicos bem
estabelecidos, como todos os fundamentos químicos e físicos que embasam a
medicina moderna, para incorporar o conceito de que quanto mais se dilui uma substância
mais potente ela fica, ou que a mecânica quântica explica mau olhado, novas
evidências teriam que ser tão revolucionárias a ponto de jogar fora o
conhecimento científico que permitiu todos os avanços tecnológicos alcançados
até hoje no lixo, de uma vez só.
Porque é importante apontar
bobagens pseudocientíficas?
Parecem crenças inofensivas? Mas
não são. Compartilham algo: o pensamento mágico. Pensamento mágico pode levar
pessoas em situações de vulnerabilidade e desespero a tomarem decisões perigosas
e irreversíveis. Pessoas são rotineiramente enganadas por charlatões, em um
mercado perverso altamente especializado em vender bobagens.
NOTAS
[Essa
parte do livro contém 22 páginas de referências, com literatura e artigos
científicos. Fica a critério da pessoa que tiver qualquer dúvida consultar e
constatar a validade de tais referências. Para isso, recomendo fortemente que
leia o livro, uma vez que eu, aqui, coloco apenas alguns trechos que podem dar
alguma ideia a quem interessar sobre o conteúdo do livro e sua importância como
fonte de informação e conhecimento]
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