BAUDOLINO - Umberto Eco
Eco, Umberto. Baudolino. Rio de Janeiro: Record,
2001
O QUE AMEI NESSE TRECHO É QUE NÃO FOI POSSÍVEL CONVENCER
GAVAGAI DE QUE ELE ERA DIFERENTE DE BLÊMIO...
Na história, os ciápodes são seres muito altos de
uma perna só, os blêmios são seres bem mais baixos, cuja altura termina nos
ombros, e que tem olhos, boca e nariz no peito. Baldolino e seus amigos
encontram Gavagai, um ciápode, e um blêmio cujo nome não é citado. Essa é parte
da conversa que eles têm com Gavagai:
“Não sois amigos porque sois diferentes?”, perguntou
o Poeta.
“O que ser diferentes?”
“Bem, no sentido de que és diferente de nós e...”
“Por que eu diferente de vós?”
“Santo Deus”, disse o Poeta, “tanto para começar
tens uma perna só! Nós e o blêmio temos duas!”
“Também vós e blêmio se levantar uma perna tem
apenas uma!”
“Mas não tens outra para baixar.”
“Por que devo eu baixar perna que não tem? Deve tu
baixar terceira perna que não tem?”
Boidi intrometeu-se, conciliador:
“Ouve, Gavagai, admitirias que o blêmio não tem
cabeça?”
“Como não tem cabeça? Tem olhos, nariz, boca, fala,
come. Como faz tu isso se não tem cabeça?”
“Mas não reparaste que não tem pescoço, e que depois
do pescoço, tem uma coisa redonda que tu também tens no pescoço e ele não?”
“O que quer dizer reparaste?”
“Viste, percebeste, que sabes quê!”
“Talvez tu diz que ele não é totalmente igual a mim,
que minha mãe não pode confundir eu com ele. Mas tu também não é igual a este
teu amigo, porque ele tem sinal no rosto e tu não tem. E teu amigo é diferente
daquele negro como um dos magos, e ele diferente daquele outro com barba de
rabino.”
(Baldolino – Umberto Eco - 323)
É POSSÍVEL
ESCAPAR DESSA?
Esse trecho é parte de uma conversa com uma “mulher”
fabulosa que Baudolino encontra em um bosque acompanhada por um unicórnio:
“Por que o erro da criação?”
“Mas Baudolino”, dizia ela rindo com cândida
surpresa, “achas que o mundo é perfeito? Olha para esta flor, olha para a
delicadeza do caule, olha para esta espécie de olho poroso que triunfa ao
centro, olha como suas pétalas são todas iguais, e um pouco arqueadas para
colher o orvalho pela manhã como uma concha, olha a felicidade com a qual se
oferece a este inseto que está sugando sua seiva... Não é lindo?”
“É lindo, realmente. Mas, justo por isso, não é bom
que seja lindo? Não é este o milagre divino?”
“Baudolino, amanhã de manhã esta flor estará morta,
e daqui a dois dias será apenas putrefação. Vem comigo.” Levou-o para o mato,
mostrando-lhe um cogumelo de cúpula vermelha listrado de chamas amarelas.
“É lindo?”, disse.
“É lindo.”
“É venenoso. Quem comer, morrerá. Pode parecer perfeita
uma criação na qual a morte está à espreita? Sabes que morrerei também, um dia,
e que também serei putrefação, se não me consagrasse à redenção de Deus?”
“A redenção de Deus? Explica-me...”
“Acaso não serás também um cristão. Baudlino, como
os monstros de Pndapetzim? Os cristãos que mataram Ipásia acreditavam numa
divindade cruel que criara o mundo, e com ele a morte, o sofrimento e, pior do
que o sofrimento físico, o mal da alma. Os seres criados são capazes de odiar,
de matar, de fazer sofrer os próprios semelhantes. Não acreditarás que um Deus
justo tenha destinado seus filhos a essa miséria...”
“Mas os homens injustos fazem essas coisas, e Deus
os castiga, salvando os bons.”
“Mas então por que este Deus nos criou, para depois
expor-nos ao risco da perdição?
“Mas porque o bem supremo é a liberdade de fazer o
bem ou o mal e, para dar a seus filhos semelhante bem, Deus deve aceitar que
alguns façam mal uso dele.”
“Por que dizes que a liberdade é um bem?”
“Porque se a subtraem de ti, se te acorrentam, se
não te deixam fazer o que desejas, sofres, e então a falta da liberdade é um
mal.”
“Acaso podes girar a tua cabeça de modo que vejas o
que está atrás de ti, mas girá-la de verdade, a ponto de poderes ver as tuas
costas? Podes entrar naquele lago e permanecer lá embaixo até à noite, mas digo
ali embaixo, sem nunca por a cabeça para fora?”, falava e ria.
“Não porque se tentasse girar completamente a cabeça
eu quebraria o pescoço e se ficasse debaixo d’água a água me impediria de
respirar. Deus criou-me com estes limites para impedir que eu causasse mal a
mim mesmo.”
“Mas dizes que tirou algumas liberdades para o teu
bem, não é verdade?”
“Ele as tirou para que eu não sofra.”
“Então por que te deu a liberdade de escolher entre
o bem e o mal, de modo que corres o risco depois de sofrer os castigos
eternos?”
“Deus nos deu a liberdade pensando que a usaríamos
bem. Mas houve a rebelião dos anjos, que introduziu o mal no mundo, e foi a
serpente que tentou Eva, razão pela qual sofremos todos o pecado original. Não é
culpa de Deus.”
“E quem criou os anjos e a serpente?”
“Deus, certamente, mas antes que se rebelassem eram
bons como ele os fizera.”
“Então o mal não foi criado por eles?”
“Não, eles o cometeram, mas existia antes, como
possibilidade de rebelar-se contra Deus.”
“Portanto, o mal foi criado por Deus?”
(Baudolino – Umberto Eco –
374/376)
IPÁSIA
EXPLICA O MAL A BAUDOLINO
“Então o mundo é uma doença de Deus?”
“Se é perfeito, não podes emanar, se emanas adoeces.
E depois procura entender que Deus, na sua plenitude, é também o lugar, ou o
não-lugar, no qual os opostos se confundem, não?”
“Os opostos?”
“Sim, nós experimentamos frio e calor, a luz e a
escuridão, e todas aquelas coisas que são contrárias umas às outras. Às vezes o
frio nos desagrada, e parece um mal comparado ao calor, mas às vezes faz muito
calor, e desejamos frescor. Somos nós
que, diante dos opostos, acreditamos, conforme o nosso desejo, e a nossa
paixão, que um deles seja o bem e o outro o mal. Ora, em Deus os opostos se
unem e encontram recíproca harmonia. Mas quando Deus começa a se emanar, não
consegue mais controlar a harmonia dos opostos, e estes se quebram e lutam uns
contra os outros. O Demiurgo perdeu o controle dos opostos, e crou um mundo
onde o silêncio e o ruído, o sim e o não, um bem combate com outro bem. Isto é
o que percebemos como mal.”
(Baudolino – Umberto Eco -
378)
“Mas e Noé sabia escrever?”, perguntou Boron.
“Noé sabia apenas bebericar um dos bons”, dizia
Boidi, “devia estar bêbado que nem uma vaca, quando carregou os animais para
dentro da arca, , exagerou com os mosquitos mas esqueceu os unicórnios, eis por
que já não os vemos.”
(Baudolino – Umberto Eco -
418)
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