O QUE É POESIA NO 1º GRAU?


Explicação: Já li alguns livros na vida. Tenho o hábito de ler livros com uma caneta na mão. Depois de sublinhar o que me chama a atenção no livro, isso quando posso, digito os trechos grifados num fichamento sem critério que, até hoje esteve guardado com a intenção de ser apenas um material para a provável (ou não) necessidade de fazer uma revisão. Resolvi publicar esses fichamentos porque podem ser úteis para alguém. São palavras dos outros, mas são minhas porque fui eu quem as selecionou; e o fiz com base no meu próprio julgamento.


O QUE É POESIA NO 1º GRAU?


 -  Profª. Maria Rosa 

“Se me interrogam acerca do que eu quis dizer em um tal poema, respondo que eu não quis dizer, mas quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse” Paul Valéry

No ensino de primeiro grau a poesia vem sendo tratada por aspectos que não lhe dizem respeito: ou serve como instrumento pedagógico utilitário e ideológico ou, ao contrário, como um jogo de sons e figuras sem comprometimento com sentido e conhecimento.
Valéry compara o trabalho do poeta ao do homem quando descobre e trabalha as pedras e metais preciosos escondidas na terra.
A palavra do cotidiano, comum e corriqueira, é a matéria-prima do poeta que a trabalha de tal forma a torná-la em palavra preciosa. Para isso a inspiração não basta, há que trabalhar, sentimento e pensamento trabalham unidos. “Quem em mim sente, está pensando” (Fernando Pessoa)
A poesia vivifica a língua da qual se alimenta, é necessária no ensino da língua e na sobrevivência cultural e humana, não há povo, por mais primitivo que seja, que não tenha experimentado a poesia.
É a poesia que nos faz perceber toda a riqueza de uma língua, toda a riqueza semântica de uma palavra.
Daí a maior importância do querer fazer, plasmar um quase objeto por uma quase palavra. Por isso a palavra precisa ousar, mesmo que todas as regras gramaticais e lógicas a desautorizem por não fazerem sentido. Justamente nessa negação pode estar a ponta de uma palavra-cristal.

O capoeira

    Qué apanhá sordado?
    O quê?
    Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada.
                        Oswald de Andrade
Este poema de aparência espontânea e natural, visto de perto revela uma arquitetura traçada como uma equação de dois termos: De um lado a fala do iletrado, do outro a do letrado. A configuração da dança (negro X branco; dominador X autoridade) se concretiza na Segunda tomada através do uso da metonímia (pernas e cabeças) que sugere o todo.
Ao invés de falar, faz-se a capoeira dentro do próprio texto (cotidiano e poético; linguagem oral e linguagem poética)
“Figurar” pelo trabalho de seleção – combinação das partículas poéticas – é  muito diferente de simplesmente fazer uso de figuras de linguagem, rimas ou divisão das frases em versos.
Figurar = operação intelectual que consiste em traçar diagramas correlacionais nas quais os termos se vinculam por similaridade, esse é o modo dominante de raciocínio da função poética.
Figurar palavras ou termos é torná-los “coisas”, organismos vivos, é destacar o lado palpável da mensagem. (Jakobson).
A linguagem poética tem o poder de tornar um símbolo (palavra, que é convenção) semelhante à coisa representada, Torna ícone o símbolo. Por isso é possível dizer que surgem como “figuras”, independente das figuras de linguagem reconhecidas. É essa visão que permite a interrupção da leitura fluvial e automática do código da língua portuguesa.
Sob essa ótica, podemos perceber no poema de Oswald uma cena metafórica, fruto de uma montagem entre duas seqüências justapostas, cuja correlação pode sugerir três sentidos equivalentes possíveis.
1 – Capoeira (luta, dança) poética – poesia culta X a poesia que se nutre da contribuição milionária de todos os erros.
2 – Capoeira lingüística – Norma culta X irreverência da fala.
3 – Capoeira entre classes sociais – inversão de papéis. O discurso dominado inverte o jogo de poder na e pela linguagem.
Não é à toa que poeta na sua raiz grega = aquele que faz. Faz linguagem fazendo poema. Torna a língua eficiente, limpando-a de todas as palavras que não funcionam e deixando apenas aquelas carregadas de significado. O que é também, condensação: qualidade fundamental da poesia, segundo Paund.
Paund disse que “os artistas são as antenas da raça.” Poesia é, então, a antena da língua porque alarga os limites de combinatórias possíveis para determinado sistema lingüístico.
Baseado em semelhanças, dessemelhanças e afinidades possíveis entre palavras normalmente distintas, abre-se caminho para outro tipo de raciocínio que, a partir de associações por similaridades, rompe com a lógica do código da língua.
A esse raciocínio analógico cabe o fundamento da construção poética, capaz de alargar as fronteiras do codificáveis. Nesse espaço potencial imaginário tudo pode acontecer.

Desinventar objetos – O pente, por exemplo. Dar ao
pente funções de não pentear. Até que ele fique à
disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.

Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.”
                                   (Manuel de Barros)

Neste poema Manuel de Barros nos mostra que até mesmo a desinvenção de objetos-nomes conhecidos pode acontecer no fazer poético.
Por isso, incluir a poesia no ensino da língua é revigorar a capacidade de expressão lingüística e pensamental. É investir na capacidade que nos diferencia das outras espécies animais, a operação criativa, a capacidade de gerar idéias novas.
Imaginar ou simular correlações hipotéticas entre elementos nunca antes aproximados é o modo como opera a descoberta, no campo da arte ou da ciência. É assim também que o raciocínio poético se configura não apenas na poesia mas na linguagem cotidiana, que é por onde as preparações poéticas deveriam começar. Borges, pensando a palavra lua (moon) vê nela o ritmo pousado que obriga a voz a uma lentidão e a quase circularidade da palavra, que começa e termina com sons semelhantes que sugerem a própria lua, e daí conclui que “cada palavra é uma obra poética” mais eficaz do que a própria metáfora, que é uma obra de segundo grau já que, geralmente, compõe-se de mais de uma unidade enquanto a palavra talvez revele mais eficazmente o conceito que representa.
Pensando na maciez sibilante do vocábulo “macio”, na materialização da explosão bilabial  e sonora da palavra “bomba” ou na sibilação que torna audível o sussurro na própria palavra “sussurro”; concordaremos com Borges.
Exercitar o raciocínio analógico e a percepção de similitudes é o grande desafio que a escola e, principalmente, o ensino da língua, deveriam enfrentar para fertilizar a imaginação criadora e com ela a poesia e a própria competência lingüística. No entanto em metodologia analógica não há campo para as simulações imaginárias capazes de fecundarem o novo pela simples crença no poder de sugestão da hipótese. Crença na visibilidade daquilo que é ainda invisível e precário: um vazio cheio de promessas.
Quem sabe se a melhor lição de poesia para a criança que se inicia nessa arte, não seria esta:

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem
De longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de
Trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego de farfalha
1 encolhedor de rios — e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três
fios de teias de aranha. A coisa fica bem
esticada)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?)
                                               Manuel de Barros

Maiakovski disse que o ritmo poético “é a força, a energia básica do verso”. O verso é uma figura de som recorrente, o que vale dizer também que implica em paralelismo contínuo: no ritmo, no metro, na aliteração, na assonância e na rima. A força dessa recorrência é engendrar outro paralelismo correspondente nas palavras e nas idéias (semelhança ou diferença).
No todo do poema, o ritmo é o movimento de vai e vem, é o diagramador da sintaxe, que é o coração do poema e de qualquer outro discurso. Cada parte já contém em si o todo e não há sequer um elemento que não esteja funcionalmente vinculado a qualquer outro por algum tipo de correspondência. Tal é a definição de sistema (poema é um sistema). O eco que a alternância rítmica parece criar leva-nos para dentro do próprio poema, confirmando as origens da palavra “verso” como “aquele que retorna sobre seu próprio corpo, em circunvoluções que aproximam o discurso poético da dança, da música e da esfera.
A rima é o materializador do ritmo através da semelhança fonética. É um dos elementos reconhecidos pelo ensino de poesia como qualidade do ser poético. Mas o ensino não a trata como ocorrência que vai além do sonoro, que envolve alguma relação analógica com o sentido.
“A rima dá coesão ao verso, obriga a voltar à linha anterior. A rima deve materializar o pensamento.

CIDADEZINHA QUALQUER

Casa entre bananeiras                                        
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar                                    
                                                                      
Um homem vai devagar                                      
Um burro vai devagar
Um cachorro vai devagar

Devagar...as janelas olham

Eta vida besta, meu Deus.
                        CDA

Podemos distinguir nessa “cidadezinha”, quatro etapas que se alternam 2 a 2.
2 conjuntos de 3 versos e 2 de apenas 1 verso, entremeados por grandes pausas (silêncio, não-palavra, branco da página).
As 2 primeiras “tomadas” constróem um quadro visual fornecendo a “arquitetura da cidadezinha”; as 2 outras são momentos reflexivos sobre essa arquitetura.
Percebe-se o contraste feminino (casa, bananeiras, mulheres, laranjeiras) e o masculino (homem, cachorro, burro). Variação e dinamismo na primeira seqüência; monotonia na Segunda.
A condensação (feminino/masculino) pode sugerir os dois elos formadores de qualquer organismo vivo: masculino e feminino; amor e razão; liberdade e convencionalismos.
No “devagar” pode-se ouvir também o “divagar”.
A ação sugerida pelo “olham” pode Ter dois sujeitos, as janelas (as casas) e os olhos (janelas da alma) do poeta.
Na cidadezinha é possível traçar uma relação metafórica com a vida, o que faz dessa cidadezinha uma síntese do universo, como a palavra qualquer já havia sugerido.
O ensino poético no primeiro grau deveria atentar para esse “rio de sentido analógico” do poema ao invés de esvaziar todo o poema vendo-o apenas como um jogo lúdico que não se integra ao conhecimento ou transformá-lo em motivos para questões que não lhe dizem respeito, como a freqüente: “O que o poeta quis dizer?” que reduz a linguagem poética à redução para a linha plana da prosa.

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